Edição Nº 125 • 22/05/2000 | |
MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
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(Encerramento das sedes do MRPP pelos militares do COPCON) |
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COPCON fechou sedes do MRPP Militantes foram parar a Caxias No dia 28 de Maio de 1975, os militares do COPCON irromperam pela sede do MRPP, em Setúbal, e prenderam os militantes a meio de uma reunião. A acção dos militares foi concertada em todo o país, tendo resultado no encerramento de todas as sedes do MRPP e na prisão dos militantes que lá se encontravam. João Bacalhau, na altura funcionário da Sociedade Portuguesa de Ar Líquido, era o dirigente do MRPP de Setúbal e foi também parar a Caxias. 25 anos depois, este advogado de renome continua a defender que o mandante da operação foi o PCP por recear a força do MRPP nos sindicatos e nas comissões de trabalhadores. Presos sem acusação formal, os militantes foram alvo de perseguição e de humilhações, o que levou a movimentações populares por todo o distrito. Hoje filiado no PS, João Bacalhau continua a defender ideais de igualdade mas admite utopia no MRPP, pelo que garante que a existência deste partido na actual conjuntura já não faz sentido. |
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– Onde é que estava na noite de 28 de Maio de 1975? João Bacalhau – Estava na sede do MRPP, em Setúbal, como era habitual todas as noites, numa reunião política. Por volta da meia noite, e de surpresa, entraram as forças do COPCON para nos prenderem. Nessa altura apercebemo-nos do que se estava a passar, até porque há uns dias que vínhamos analisando o seu comportamento e de quem mexia os seus cordelinhos. Embora a figura dominante fosse a de Otelo Saraiva de Carvalho, estávamos convencidos – e ainda hoje acredito nisso – que o que estava por trás do COPCON era o PCP. Nessa noite resolveram invadir as sedes do MRPP em todo o país, pelo que fomos presos e levados para os camiões que eles tinham à porta do edifício. Éramos cerca de 12 pessoas e quando chegámos à rua vimos que havia pessoas a ver, por isso como era natural nos militantes do MRPP, desatámos a gritar palavras de ordem como protesto contra a detenção. Nessa noite fomos levados para Caxias. SR – Foram detidos sob que acusação? JB – Não nos disseram nada, mas acredito que tivesse sido para desmembrar o MRPP que tinha uma certa força a nível nacional e angariava uma grande simpatia entre muita gente. Combatíamos frontalmente, não só o fascismo que tinha sido derrubado, como aquilo a que na altura chamávamos o social fascismo, encabeçado pelo PCP. Havia uma luta muito grande entre o MRPP, de extrema esquerda, e o PCP que nós apelidávamos de social fascista. Dizíamos que eles eram socialistas nas palavras e fascistas nos actos. Pensamos que teria sido por causa dessa rivalidade na influência da classe operária, que surgiu esta decisão de fechar as sedes e prender os militantes do MRPP. Realmente, o partido incomodava, incomodou logo no dia 25 de Abril porque demarcou-se de imediato da chamada revolução dos cravos ao dizer que tinha sido um golpe de Estado. Ou seja, uma parte da burguesia tinha sido derrubada por outra parte da burguesia e, por isso, tinha havido um golpe de Estado e não uma revolução. Logo aí deu-se uma clivagem entre o MRPP e os outros partidos, nomeadamente com o PCP. SR – O que é que lhes aconteceu em Caxias? JB – Fomos todos metidos numa cela grande, homens para um lado e mulheres para outro. Entretanto, o COPCON e as forças que os ajudava, nomeadamente alguns órgãos de comunicação social dominados pelo PCP, publicaram artigos dizendo que nós éramos uns drogados e que as raparigas eram umas prostitutas. Fomos caluniados de várias formas, com o intuito de desacreditar o MRPP junto das populações. O certo é que, na altura, não tiveram pejo em prender fosse quem fosse, incluindo mulheres com filhos de meses que também foram levados para a prisão. Era o tempo dos mandatos em branco, assinados por Otelo Saraiva de Carvalho. Na altura, até o secretário geral do partido, Arnaldo Matos, foi preso e esteve em Caxias. Como éramos um partido ainda com muitos laivos de clandestinidade, precisamente pelo facto de acharmos que aquilo não era uma revolução, todos nos tratávamos por pseudónimos e só muitos anos mais tarde é que vim a saber os nomes de alguns dos meus camaradas. Por isso, não sei identificar com precisão todos os que estiveram comigo na sede do partido e que foram presos comigo naquela noite. SR – Lembra-se de alguns nomes hoje famosos? JB – Lembro-me bem de Durão Barroso porque tive alguns contactos com ele, embora sem grande intimidade, mesmo partidária. Ele pertencia ao grupo dos intelectuais do MRPP, vindo da universidade, enquanto eu fazia parte do grupo de militantes da classe operária. Lembro-me de algumas pessoas de Setúbal, que inclusivamente hoje estão no PS, que é também o meu caso. Como não nos queríamos identificar, assim que entrámos na cadeia queimámos todos os documentos pessoais e eles ficaram sem saber quem era quem. Mas a nossa identificação era um dos objectivos do COPCON, naturalmente para nos fazerem um ficheiro actualizado. SR – Como é que encararam a prisão sem acusação? JB – Protestávamos constantemente contra isso porque entendíamos que se tratava de uma injustiça. E o curioso é que os guardas de Caxias, que eram militares dos Fuzileiros, tinham muita simpatia por nós e avisavam-nos sobre o que o COPCON ia fazer a seguir e o que pretendia de nós. Assim que lá chegámos, resolvemos barricar-nos com as camas encostadas à parede e à porta da cela. Lutámos à nossa maneira e a luta dentro da prisão era tanto maior quanto maiores eram os protestos dos nossos camaradas na rua contra a repressão exercida sobre o MRPP. Para acabar com os nossos protestos, resolveram pôr-nos um dia e uma noite debaixo de mangueiradas de água e de alguns tiros disparados para o ar. Estivemos em Caxias uma série de dias e perdemos um pouco a noção do tempo que lá estivemos. Fomos vigiados por todo o lado e fotografados como presos, mas para as fotografias não nos identificarem desatámos a fazer caretas. Depois de toda esta agitação, alguns identificaram-se e foram para casa e outros, como eu, um belo dia foram metidos em carros celulares rodeados de chaimites. Saímos de Caxias sem saber com que destino, até que a dada altura eu espreitei por uma frecha e reconheci Alcácer do Sal, onde nasci. Então percebi logo que estávamos a ser levados para Pinheiro da Cruz. Lá, as coisas foram diferentes, pois cada um de nós ficou numa cela. Como ficámos isolados, resolvemos comunicar pelas janelas. Numa situação destas consegue-se inventar processos de comunicação, pelo que utilizámos vários. Lembro-me de um soldado que entregava um maço de cigarros a um e, com um cordel, enviar um cigarro ou os fósforos a outro camarada. E até reuniões fizemos pela janela, falávamos aos gritos de umas celas para as outras, sobre a situação política e o nosso próprio caso. E tal como em Caxias, continuámos os protestos diários contra a nossa prisão. Estávamos junto de presos de delito comum, que não éramos. Ficámos muitos dias em Pinheiro da Cruz, onde já não sofremos a pressão que tivemos em Caxias. Dois ou três dias depois de lá termos chegado, precisávamos de tomar banho e então levaram-nos para os duches e deram-nos fardas de presos. Claro que todos nós recusámos porque não éramos presos de delito comum. Resultado, enquanto lá estivemos andámos sempre com a mesma roupa que íamos lavando como podíamos. SR – Quando é que foi libertado? JB – Eu saí antes de outros camaradas porque, entretanto, cedi e identifiquei-me. Na altura era parecido com João Machado, um dirigente do Comité Central do MRPP, e eles julgavam que eu era mesmo ele. Então iam à cela perguntar-me e eu não dizia que sim nem que não. Enquanto estávamos em Pinheiro da Cruz, muitos militantes manifestavam-se lá fora contra a nossa prisão. A minha mulher era um desses manifestantes, pois também era do MRPP, e passava os dias à porta da prisão em protesto. Um certo dia, um camarada conseguiu entrar na cadeia e levou a minha mulher para me ver. Resultado, ao fim de algum tempo isolado sabendo que tinha mulher e dois filhos pequenos lá fora e, ainda por cima, com o vencimento no bolso – que por sorte eles não viram senão ficava sem ele – acabei por quebrar, identifiquei-me e fui logo libertado. Não queria fazê-lo mas, depois de 15 dias preso, não aguentei mais. Sei que os outros ficaram até ao fim e estiveram lá cerca de 40 dias. SR – O facto de se ter identificado trouxe-lhe problemas? JB – Sim, porque quando voltámos à actividade política houve uma reunião onde os chamados traidores foram muito criticados. Eu era militante muito antes do 25 de Abril de 1974 e não concordava que, depois do golpe continuássemos a manter a nossa identidade em segredo. Já não estávamos sob o jugo da PIDE, embora continuássemos a defender que em 1975 tínhamos uma nova PIDE porque o PCP queria por força fazer um ficheiro de todos os militantes do MRPP. Aliás, esta foi uma das razões da nossa prisão porque os comunistas receavam a força do MRPP. E isso ficou patente na proibição de concorrermos às eleições para a Assembleia Constituinte, alegando que utilizávamos a foice e o martelo, tal como o PCP. Nós protestámos, mas como os comunistas tinham mais força acabaram por conseguir que fossemos proibidos de concorrer. Ainda hoje estou convencido de que, se o partido tivesse concorrido, nós tínhamos conseguido eleger deputados. SR – Porque é que o MRPP era considerado um partido incomodativo? JB – Foi mesmo muito incomodativo, antes e depois do 25 de Abril. Nós tínhamos muita força junto das comissões de trabalhadores e lembro-me que as primeiras pinturas de parede, efectuadas durante a ditadura, foram feitas pelo MRPP. Na altura o PCP tinha pouca força porque os seus dirigentes estavam exilados no estrangeiro. Portanto, quem fazia as manifestações e a oposição ao regime era o MRPP. Antes do 25 de Abril havia uma ficha minha na PIDE, tal como havia da minha mulher e do meu sogro. A minha casa era vigiada de um terceiro andar em frente porque durante muito tempo ela serviu para esconder contestatários ao regime. Depois do 25 de Abril continuámos a ser perseguidos por termos muita força junto dos trabalhadores e dos sindicatos e o PCP disputava connosco essa força. Com uns sindicatos conseguimos continuar e noutros outros fizemos alianças com o PS. Foi o caso do Sindicato dos Escritórios. SR – O MRPP era mesmo um movimento intelectual de meninos da universidade? JB – De maneira nenhuma. O MRPP era um partido de intelectuais e de operários. Na altura éramos acusados de tudo e mais alguma coisa, inclusivamente de que éramos pagos pela CIA. Mas como nós não tínhamos dinheiro nenhum, se calhar a CIA era pobre. Fomos caluniados a torto e a direito pelo PCP durante muito tempo. Quando, em manifestações, eles diziam “morte à CIA”, nós respondíamos “e à KGB também”. SR – Chegaram aos confrontos directos? JB – Sim, especialmente durante as colagens de cartazes. Como o PCP tinha mais cartazes que nós, as paredes nunca chegavam para todos e resolvemos colar os nossos cartazes por cima dos deles. Então não estavam com meias medidas, apareciam com a tropa, cercavam-nos e levavam-nos presos para o quartel do 11. Era uma luta constante e, com o PCP permanentemente contra nós, resolvemos fazer vigílias na sede para que não fosse ocupada pelos comunistas. SR – Quando é que as coisas acalmaram? JB – A luta do PCP contra nós nunca abrandou, o que aconteceu foi que as pessoas foram desmobilizando e o MRPP entrou em decadência. Depois das prisões, ocorreram algumas lutas internas com um grupo mais radical e um outro mais moderado. Havia a chamada linha vermelha, dos ortodoxos, e a linha negra que correspondia aos mais moderados. Então as clivagens foram aumentando, alguns foram expulsos e outros foram-se afastando. Lembro-me de um homem do Comité Central, o Saldanha Sanches, que hoje é professor universitário, que foi um dos primeiros a encabeçar a linha negra do MRPP e por isso saiu. Havia directrizes com que muita gente não concordava, o partido era um bocado rígido para a época e as pessoas foram saindo. Por outro lado, o idealismo que nos movia foi-se diluindo à medida em que a democracia se foi instalando. O que defendíamos era o povo em luta armada e, aos poucos, isso começou a deixar de fazer sentido. Alguns integraram outros partidos, como o PCP e o PS, mas ainda hoje encontro muita gente que, embora tenha saído do MRPP, não conseguiu integrar-se noutro partido. Muitos anos depois, eu fui para o PS mas não estou nada arrependido por ter sido do MRPP. Aprendi a estar na sociedade, aprendi a estar com as pessoas e a defender valores e princípios. Essas coisas nunca se perdem e, por isso é muito difícil a pessoas como nós entrarmos noutros partidos onde se encontra muita gente cujo objectivo é subir e não o de defender ideais. SR – Então, como é que consegue estar noutro partido? JB – Fui para o PS muitos anos depois e só quando Mário Soares deixou de ser secretário geral. Aliás, essa era a condição para eu militar no partido porque, na altura, eu achava que ele não estava a encaminhar o partido para aquilo que eu achava que devia ser o PS. Neste momento identifico-me com o partido. SR – O que é que mudou em si, para aceitar agora o partido em que milita? JB – Mudou a pessoa e mudou a conjuntura. Com o tempo comecei a perceber que aquilo que, na altura, o MRPP defendia não era viável, era quase uma utopia. Para aplicar o que nós pretendíamos, seria necessário modificar a mentalidade do mundo inteiro. Fui fazendo esse raciocínio ao longo dos anos e conclui que seria impossível a um país, só por si, manter um regime chamado comunista ou socialista, tendo o capitalismo do outro lado em grande maioria. SR – O MRPP de hoje faz sentido? JB – Acho que não. Sem desprimor, acho que neste momento é um partido simpático. O Garcia Pereira é uma pessoa muitíssimo inteligente, mas acho que o MRPP já não faz sentido, até porque nem sequer tem força para sair na comunicação social com as suas posições. Mais ainda, está um bocado ultrapassado porque hoje o Garcia Pereira diz as mesmas coisas que nós dizíamos em 1975. Isso quer dizer que, se calhar, o partido não se actualizou. SR – O seu sonho de Abril foi cumprido? JB – Em parte foi porque o que pretendia era liberdade para o país. Mas admito que outras coisas não foram conseguidas, nomeadamente a aplicação dos ideais do MRPP. Actualmente, a situação do país reflecte um bocado aquilo que na altura chamávamos golpe de Estado de uma parte da burguesia contra a outra parte. SR – Como é que se posiciona face a este estado de coisas? JB – Não é este o meu ideal mas adaptei-me ao sistema. Estudei, sou advogado e não vivo mal. Apesar de tudo, valeu a pena todo o esforço que despendemos porque os princípios continuam cá. Sei que, por mais que queira, não vou conseguir modificar a situação. No entanto, acho que devo continuar a lutar pelos meus ideais na medida do possível. Por isso estou num partido onde, à minha maneira, tento modificar as coisas. |
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Entrevista de Etelvina Baía [email protected] |