Comissão Científica Independente?!
“Porque é que a ciência se desviou da liberdade relativa de tempos passados até ao seu estado actual, transformando-se numa ciência “industrializada”, cheia de normativos, conduzida unicamente pelo interesse económico, compartimentada, dogmática e com uma formidável estreiteza de horizontes?”
A pergunta é colocada por Arpaud Pusztai, cientista de origem húngara que trabalhou durante 35 anos no Rowett Research Institut, na Escócia, e que foi despedido e ridicularizado por ter meramente sugerido que os alimentos geneticamente modificados poderiam colocar em perigo a saúde humana e que era preciso realizar mais trabalhos de investigação relativamente a este tema.
Num artigo publicado no primeiro número da edição espanhola da revista “The Ecologist”, este cientista conta a sua história, que apresenta como exemplo do “perigo de extinção da investigação científica ética e da liberdade de expressão dos cientistas”. Denuncia que os investigadores de temas relacionados com a industria “não possuem liberdade de acção, são contratados para realizar um conjunto de tarefas muito concretas, sempre debaixo de uma estreita supervisão que assegura que as suas tarefas não saem do âmbito dos projectos pré-estabelecidos. Na maior parte dos casos, o cientista não tem qualquer direito de contestar ou publicar os resultados das suas investigações sem a autorização da empresa e esta pode suspender a sua publicação durante cinco anos, sobretudo no caso de os resultados serem patenteáveis”.
Deste referência não pretendo extrapolar quaisquer conclusões para o caso da chamada Comissão Científica Independente (CCI). Até porque, como ficou sobejamente patente neste caso, as extrapolações podem dar resultados errado e facilmente desmontáveis. Quero apenas sublinhar a dificuldade de ter, numa sociedade, submetida ao poder económico, resultados isentos de uma pesquisa científica, alheia a qualquer tipo de pressão, para além do rigor e da ética.
O “Parecer relativo ao tratamento de resíduos industriais perigosos” (denominação oficial) é demonstrativo de que na própria Comissão reinava a confusão quanto ao seu mandato, e mesmo quanto ao seu nome. Logo, não tinha claros quais os objectivos que o seu parecer deveria cumprir. Ou melhor, trocou a ordem desses objectivos.
“Nos termos da Lei nº20/99 de 15 de Abril e do Decreto-Lei nº120/99 de 16 de Abril compete à “Comissão Científica Independente para o Tratamento de Resíduos Industriais Perigosos”, ou na designação do citado decreto-lei “Comissão Científica Independente de Controlo e Fiscalização Ambiental da Co-incineração”, adiante designada por CCI, dar parecer sobre o tratamento de Resíduos Industriais Perigosos (RIP) e, numa primeira fase, pronuncia-se igualmente sobre a implementação da co-incineração de resíduos industriais perigosos.”
Nesta frase, a primeira do parecer, fica bem patente a deturpação introduzida neste processo, quer pelo governo, quer, parece-me a mim, pela própria Comissão. É que a lei nº20/99, uma lei da Assembleia da República, cria uma comissão para “relatar e dar parecer relativamente ao tratamento de resíduos industriais perigosos, incluindo, nomeadamente, o impacte de cada uma das possíveis modalidades de tratamento sobre o ambiente e a saúde pública, a sua segurança e fiabilidade, os limites e condições da localização das respectivas instalações em relação às zonas habitadas”.
Já o Decreto-Lei nº120/99, aprovado em Conselho de Ministros antes da decisão da Assembleia da República, cria uma comissão para “a definição, o acompanhamento da montagem e a aferição de todos os aspectos relacionados com o sistema de monitorização ambiental da actividade de co-incineração”.
Claramente se constata que estamos a falar de coisas que não se podem confundir, uma vez que o tratamento de resíduos industriais perigosos não se pode reduzir à queima dos mesmos. Trata-se de um problema grave para o ambiente e a saúde pública que exige um conhecimento global da situação, uma visão integrada do problema, o estudo de todas as alternativas possíveis e a escolha do tratamento que se demonstre ser o mais adequado para cada tipo de resíduo.
O governo tinha criado uma comissão de âmbito reduzido, restringindo-o àquilo que lhe interessava: legitimar um negócio das cimenteiras, há muito “apadrinhado” pelo governo PS. O governo não pretendia resolver o problema dos resíduos industriais. Pretendia, e pretende, apenas dar a imagem de que está a fazê-lo, quando na verdade está a responder aos anseios de um lobby de interesse económico.
Quando a Assembleia cria uma comissão de âmbito mais alargado, o governo aprova então uma Decreto-Lei (121/99) no qual atribui à sua comissão as competências previstas para a comissão entretanto aprovada pela Assembleia da República. Mas este decreto diz que o parecer a elaborar sobre as várias alternativas de tratamento é prévio ao “parecer sobre a concessão de licença industrial provisória e autorização prévia provisória necessárias à realização dos testes de co-incineração”, para a emissão do qual a comissão estava mandatada pelo governo.
Ou seja, a Comissão alterou, por iniciativa sua ou não, a ordem dos pareceres que estava mandatada para emitir. E se dúvidas houvesse sobre as prioridades que a Comissão tomou, atentem-se nas palavras do próprio parecer: “dado que… se encontra suspensa a aplicação dos prazos estabelecidos para o licenciamento e autorização… sobre as operações de co-incineração de RIP em unidades cimenteiras, a CCI deu prioridade à abordagem da gestão de RIP por processo de queima…”.
Ora, a autorização da co-incineração encontra-se suspensa precisamente porque a Assembleia da República entendeu que antes de se decidir pela co-incineração, ou não, era necessário ter primeiro um conhecimento dos resíduos industriais, sua tipificação e composição, analisar todas as hipóteses de redução na produção, de reutilização e de reciclagem, todas as alternativas de tratamento, para finalmente, dar o melhor destino a cada tipo de resíduos. Quem julga a Comissão que é para entender que, afinal, o que é urgente é dar parecer sobre a co-incineração porque esta se encontra suspensa?
Ao tomar conhecimento do parecer, um governo empenhado em resolver o problema dos resíduos industriais perigosos deveria tê-lo recusado por não responder ao solicitado. Um governo apenas interessado em resolver um negócio que ficou pendurado há alguns anos, fez o que lhe convinha: aceitou de braços abertos um parecer que contraria um decreto-lei do próprio governo, mas que legitima esse negócio.
Aliás, de estudo em estudo, parecemos aproximar-nos da solução desenhada inicialmente pela SCORECO, a empresa criada pelas cimenteiras para a co-incineração. Se bem me recordo, todo este processo iniciou-se com o pedido de licenciamento das operações de co-incineração nas cimenteiras do Outão e Alhandra, depois de estabelecido em “Memorando de entendimento” entre o governo e as cimenteiras. Depois, por exigência do governo, em resposta à contestação que se iniciava, nomeadamente fruto da denúncia que “Os Verdes” oportunamente fizeram do processo, entraram na dança mais dois locais: Maceira e Souselas. A SCORECO nunca escondeu que lhe interessava sobretudo os dois primeiros locais. Ditou o processo de Avaliação de Impacte Ambiental que fossem os dois últimos os escolhidos. Ditou o parecer da CCI uma terceira solução: Souselas e Outão. Talvez um outro relatório venha a legitimar a escolha inicial das cimenteiras. Para já, o actual parecer vai abrindo a porta ao referir que “por isso se propõe o alargamento destas unidades a uma das outras cimenteiras de Outão ou de Alhandra, devendo a opção ser a favor da unidade que apresente um melhor desempenho ambiental”.
Mas mais do que falar do cal A ou B, o que interessa é não nos deixarmos enganar por discursos governamentais: a co-incineração não é uma solução. A co-incineração muito menos é “a” solução. É tão simplesmente um negócio!