[ Edição Nº 126] – Manuel Salazar, do Grupo de Cidadãos pela Arrábida.

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Edição Nº 12629/05/2000

Contra co-incineração na Serra da Arrábida
Cidadãos acusam governo de ilegalidades

          Setúbal quer ver a co-incineração de resíduos industriais tóxicos longe da Serra da Arrábida por esta ser uma zona natural protegida e parte integrante da Rede Natura 2000. Por isso, o Grupo de Cidadãos pela Arrábida, constituído há dois anos, regressou à luta nos tribunais contra a decisão do ministro do Ambiente José Sócrates. De acordo com o jurista Manuel Salazar, que integra este grupo constituído por gente dos mais diversos estratos sociais e cores políticas, mais do que rebater as questões ambientais e política em volta da co-incineração, o trunfo está em discutir o caso nos tribunais porque “a decisão do Governo é ilegal”.


Setúbal na Rede

Porque é que o Grupo de Cidadãos pela Arrábida se manifesta contra a co-incineração de resíduos tóxicos na Secil?

Manuel Salazar

– Este grupo de cidadãos foi formado em 1998, altura em que surgiu a ameaça de queimar resíduos industriais tóxicos no Outão. Decidimos fazer um trabalho em várias vertentes, entre elas, a jurídico processual, com o objectivo de desencadear os meios necessários para evitar a concretização da ameaça que paira sobre a Serra da Arrábida. O caso foi participado junto do Tribunal Administrativo para que, logo que houvesse acto administrativo, o Ministério Público desencadeasse uma providência cautelar. No pedido que fizemos, indicámos que a providência adequada seria uma intimação às empresas encarregadas da produção do sistema de co-incineração, ou seja, o grupo Scoreco que envolve a Cimpor e a Secil.

Em 1998, a providência cautelar não chegou a ser desencadeada porque em 28 de Dezembro do mesmo ano, a então ministra do Ambiente, Elisa Ferreira, recuou e resolveu localizar o sistema em Souselas e Maceira. Entretanto, o Governo não avançou com este sistema porque a questão transitou para o parlamento que, em 20 de Janeiro de 1999, emitiu a resolução 6/99 suspendendo a co-incineração. Em 15 de Abril do mesmo ano, o parlamento aprovou a lei 20/99 que incumbiu o Governo de proceder à inventariação e caracterização dos resíduos tóxicos e perigosos e, com prioridade absoluta, praticar uma política de redução, reutilização e reciclagem.

E só depois disso é que se iria ver que resíduos restavam, sendo então incumbida uma comissão científica para estudar a forma de tratar, as modalidades de tratamento a dar a esses resíduos que sobravam. O Governo nunca quis aceitar esta metodologia, pelo que logo no dia 16 de Abril emitiu dois decreto lei, o 120 e o 121. Supostamente cumprindo a lei 20/99 mas prevaricando em relação a ela, avançou com um dado adquirido para ele, Governo, de que a co-incineração é que era o sistema. Foi pelo decreto lei 121 de 16 de Abril que acabou por ser constituída a Comissão Científica com o objectivo de estudar e dar parecer sobre a co-incineração, quando não era isso que a lei do parlamento dizia.

E tanto assim é que, detectando este não cumprimento por parte do Governo, em 3 de Setembro de 1999 a Assembleia da República veio revogar os decretos lei 120 e 121 através das leis 148 e 149. Mas o Governo não fez nada disto, não adoptou a estratégia que lhe era apontada pelo parlamento e continuou a reafirmar que a co-incineração era o processo adoptado. Ora isso não é verdade, o processo não está adoptado e a co-incineração não tem protecção legal para prosseguir. Daí que dizemos que a Comissão Científica trabalhou em bases erradas.

SR

– Está a defender que os dados podem estar viciados?

MS

– Claro que estão viciados. O Governo nunca desistiu de avançar com este sistema de tratamento porque em 9 de Maio de 1997, através da então ministra do Ambiente Elisa Ferreira, tinha feito um acordo com a Cimpor e a Secil já então associadas no consórcio Scoreco, onde as cimenteiras ficam incumbidas de proceder à eliminação dos resíduos perigosos através da incineração. Obviamente estamos perante um acordo que representa uma auto-vinculação do Governo perante as cimenteiras.

E o Governo, agora através do ministro do Ambiente, José Sócrates, que na altura era secretário de Estado e conhecia muito bem o acordo, quer levar por diante um compromisso assumido com as cimenteiras antes de qualquer legislação. Por isso é que se compreende que o Governo continue a prevaricar e a violar as leis da Assembleia da República. Está a insistir na co-incineração porque se comprometeu com a Scoreco.

SR

Parece-lhe haver alguma razão para esse acordo com as cimenteiras?

MS

– A Comissão Científica e o próprio Governo têm reafirmado que incinerar resíduos tóxicos em cimenteiras é a solução mais correcta do ponto de vista económico porque é a mais barata. Ora é preciso denunciar isto porque, em termos ambientais, não se pode pensar no mais barato mas sim no ambiente. Se pensarmos na solução mais barata, eventualmente estaremos a lesar outros valores. É efectivamente mais barato não construir um forno e, ainda por cima, ter a solicitude, por razões económicas, das próprias indústrias cimenteiras que estão, também elas, interessadas em proceder à co-incineração. Isto porque, não só reduzem a despesa nos produtos a queimar como ainda recebem para queimar os resíduos que irão substituir esses produtos.

É uma solução vantajosa para o Governo porque gasta menos do que se tivesse de adoptar uma política que o obrigasse a procurar outro sistema de tratamento. Isto é lamentável porque em termos de ambiente não se pode adoptar soluções baratas. O ambiente tem de ser preservado e se a solução é cara paciência. O Governo não pensou em valores quando fez a

Expo’98 para relançar o país e promover o seu desenvolvimento e toda a gente concorda que essa solução foi boa. Mas não se fizeram contas à exposição, ou seja, as contas feitas inicialmente nunca foram cumpridas. Contudo, não interessa o valor que foi gasto porque o objectivo foi amplamente alcançado. Agora, em termos de ambiente faz-se contas à vida e isso não tem cabimento nenhum.

SR

Se o Governo e os cientistas dizem que a co-incineração não é prejudicial, porque é que rejeita a instalação do sistema nesta cimenteira?

MS –

Com a legislação criada desde 1976, no sentido de proteger o Parque Natural da Arrábida, chega-se à conclusão de que é impossível equacionar a inclusão deste sistema de tratamento dentro da área do Parque que abrange, não só o concelho de Setúbal como os concelhos de Palmela e Sesimbra. Nesta área natural não se podem desenvolver muitas actividades, todas elas enumeradas no estatuto do Parque, porque estão expressamente proibidas. Segundo o princípio lógico da interpretação, sabe-se que a lei que proíbe o menos também proíbe o mais, pelo que outras actividades mais gravosas do que as previstas no regulamento também estão proibidas no Parque Natural da Arrábida.

SR

Como é que rebate o argumento do ministro do Ambiente, de que as regras do Parque Natural não serão violadas porque o equipamento a usar já lá está?

MS

– Desde o início do processo que o Governo adoptou o argumento de que não vai construir uma fábrica. Claro que isto é um sofisma, não precisam de construir uma instalação fabril porque a cimenteira já lá está. Mas o Governo vai mais longe porque chega a dizer, por escrito, e disse-o à Comissão Europeia, que a Secil não estava no Parque Natural da Arrábida porque a fábrica já lá estava quando foi criado o Parque.

Isto é anedótico porque toda a gente sabe que o ambiente não tem paredes, a Secil não está fechada e propaga poluentes para todo o lado. Para além disso, há que dizer que qualquer acesso à cimenteira só pode ser feito pelo interior do Parque Natural porque não há outro acesso possível. Sendo assim, não tem qualquer cabimento o argumento do ministro Sócrates.

SR

Como é que o Grupo de Cidadãos interpreta os erros detectados no estudo científico que defende a co-incineração como o melhor método de tratamento?

MS

– Conhecemos os argumentos dos ambientalistas que são mais uma achega para este caso. Eles fazem muito bem em esmiuçar o trabalho da Comissão Científica, criticá-lo e contrariá-lo. No entanto, estou convencido de que isso está num plano diferente e que não devo meter-me nessa área. Como se sabe, o Grupo de Cidadãos é muito anterior a isso e, pelo caminho, já demonstrou que a Comissão Científica tem pés de barro. Foi constituída violando a lei e fez um trabalho encomendado pelo Governo e, nessa medida, não tem credibilidade sob o ponto de vista jurídico.

Para além disso, a comissão tem falta de multidisciplinaridade, ou seja, foi constituída por químicos e por pessoas ligadas às empresas interessadas e à própria co-incineração, mas não tem ninguém com formação jurídica. É que se estivesse lá gente com formação jurídica, se calhar o estudo teria outros resultados porque as coisas têm de ser enquadradas nas normas jurídicas que regulamentam o Parque Natural da Arrábida e a saúde pública. E é claro que o Direito português impede a adopção deste sistema de tratamento na Arrábida.

SR

A ser verdadeiro o argumento de que a co-incineração iria reduzir a emissão de poluentes da Secil, faria sentido instalar o sistema de tratamento?

MS

– Esse argumento coloca qualquer pessoa de bom senso numa posição de desconfiança. Se neste momento a Secil emite um determinado número de partículas poluentes e depois da colocação dos filtros de mangas poderá ter uma menor emissão, não se percebe como é que os filtros ainda não foram colocados se a cimenteira está ali há décadas. Se os tivessem colocado havia uma redução de poluentes, mas não estando colocados até agora é legítimo as pessoas desconfiarem de que alguma vez os filtros venham a ser postos.

E como depois as emissões serão muito mais fortes do que as que agora são produzidas, é legítima a desconfiança da população sobre a capacidade de fiscalização e de intervenção das entidades públicas. Em termos ambientais há que evitar o risco e não mitigar os efeitos ou reparar o dano. E só se pode evitar o risco, não instalando o sistema de co-incineração. Ainda para mais, num país em que as instituições de fiscalização não funcionam e numa altura em que esta questão do ambiente está nas mãos de empresas que apenas visam o lucro.

SR

– Como é que reage à argumentação de que a Secil deve sair dali?

MS – Essa questão também está a ser analisada pelo Grupo de Cidadãos. Efectivamente, a concessão foi atribuída à Secil em 1936, por cinquenta anos, e sabemos que já foi renovada. Em matéria jurídica, as concessões não podem ser feitas por mais de cem anos no caso dos prazos não ficarem assente nos contratos. Em relação à Secil, o primeiro contrato foi por 50 anos e creio que o segundo foi por 25 anos. Por isso, a concessão termina em 2010. E uma das vertentes da luta dos cidadãos será precisamente a de não ver renovado o contrato de concessão da Secil. Obviamente que o risco da renovação do contrato existe se forem dados balões de oxigénio à cimenteira.

Como a fábrica tem um limite de exploração de matéria prima na Serra da Arrábida, e como essa matéria prima está a terminar – sabe-se que tem vindo a importar matéria prima porque não consegue escavar o suficiente na Arrábida para a produção de cimento de que necessita – pela lógica ela está a terminar como cimenteira. Se lhe dão um balão de oxigénio como o da co-incineração, ela poderá transformar-se em incineradora de resíduos tóxicos e perigosos ou de outros resíduos quaisquer, até porque já lá queimou carcassas de bovinos e alimentos estragados e drogas. E como isto não se justifica só com resíduos nacionais, o receio é de que a Secil venha a ser uma incineradora dos lixos da Europa.

SR

A mobilização da população contra a co-incineração é a que esperava?

MS

– Apesar do divórcio entre o poder local e os que o elegeram, já que o presidente da Câmara e a maioria socialista se mantêm ao lado do Governo, surpreendeu-me imenso a adesão dos setubalenses à primeira acção realizada pelo Grupo de Cidadãos, que extravasou tudo o que estava previsto. As pessoas estão conscientes do que está em risco porque não se esquecem de que a luta contra os lixos tóxicos tem muitos anos.

Se a incineradora dedicada, prevista há oito anos pelo Governo PSD para a Mitrena, em zona de Reserva Natural do Estuário do Sado, não passou foi graças aos protestos da população e se o processo de co-incineração foi suspenso há dois anos, foi também graças à luta do povo de Setúbal.

Entrevista de Etelvina Baía
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