[ Edição Nº 126] – “O Diário de Lina” – parte XXII.

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(Pelo Sonho é Que Vamos)

Querido Diário,

Fiquei apaixonada pela Arrábida. Aquele imenso verde, com o mar muito azul ali tão perto e a perder de vista. Aquele silêncio que se respira na Serra, todos aqueles cheiros, o rosmaninho, a alfazema, o alecrim, a urze, o hálito da folhagem pisado durante milénios que amortece os nossos passos, local de poetas, como não se cansa de me dizer a minha amiga Sónia, a tal que é jornalista e mora na cidade do Sado.

Imagino a tua surpresa, querido Diário, vendo-me assim, tão poética, falando intensamente de um lugar que, ainda há bem pouco tempo, só conhecia longinquamente, de ouvir falar.

Tudo começou com um passeio à Arrábida com o Arlindo, há uma semana atrás. Entrámos na Serra pelo lado de Azeitão, subimos ao alto da montanha por uma estrada sinuosa, com uma vegetação cerrada e muito verde, passámos o Conventinho, sempre com aquele azul profundo ao nosso lado direito, depois, entrámos numa língua de estrada de onde se via Tróia à direita e o imenso vale do Tejo à esquerda. Foi o deslumbramento. Uma súbita vontade de ali ficar para sempre, respirando aquele perfume raro e misterioso.

Depois, repentinamente, já com a cidade de Setúbal à vista, aparecendo por entre uma ligeira névoa lá muito ao fundo, surgiu-nos o susto de uma instalação sujíssima, coberta de um pó cinzento, e, a quase toda a volta dos edifícios medonhos que a compunham, feridas dolorosas na encosta da Serra, cicatrizes de milhares de explosões que foram expondo o ventre inocente da Arrábida.

Que tristeza, imensa e repentina, se apoderou de mim quando o Arlindo me disse que era ali, nos fornos daquela coisa inacreditável e obscena, que o Governo queria queimar lixos tóxicos e perigosos. Na altura, recusei-me a acreditar. Mas, infelizmente, é verdade. Já vi o ministro na televisão a confirmá-lo. Vi-o e achei-o feio. Porque a arrogância cola nas pessoas uma máscara grotesca que causa repulsa. E a figura dele, gritando e esbracejando no esforço de esgrimir os seus duvidosos argumentos, não era nada bonita de se ver.

Mas as notícias dos jornais e das televisões dos últimos dias animaram-me. Um grupo de gente de Setúbal, que escolheu a feliz denominação de “Cidadãos pela Arrábida” está já a lutar para que não seja cometido um atentado que arrastaria, nas suas nefastas consequências, gerações e gerações de setubalenses e não só. Ontem, vi-os, cheios de força e determinação, com uma multidão em volta que emoldurava a beleza serena das arcadas do edifício da Câmara Municipal, na linda Praça de Bocage, erguendo a voz em coro contra aqueles que querem manchar a beleza antiga, doce e resplandecente da Arrábida. Chamem-me romântica, se quiserem, mas foi lindo!

E lá estava o Pedro. Lembras-te, querido Diário?, o do táxi, aquele borracho que me “apanhou” para o “Ri-te, Ri-te” da TVI! A Sónia conhece-o. Quando nos viu, aproximou-se e esteve connosco até ao fim da sessão de esclarecimento. Quando lhe disse que ia ficar por Setúbal, até ao próximo fim-de-semana, em casa da Sónia, fez um sorriso rasgado, e disse-me: “Vamos a ver se é desta que te apanho a sério”. Rimo-nos e a Sónia teve um daqueles movimentos de cabeça que bem lhe conheço, como que a dizer ‘Vê lá no que te metes, rapariga! Estás aqui, estás a apaixonar-te outra vez!’. Esbocei um sorrisinho amarelo e não lhe respondi.

Eu, para já, estou apaixonada pela Arrábida. E pelo Poeta que a cantou, Sebastião da Gama, que deixou para a eternidade, em belos versos, que não me contenho em transcrever, a frase sublime que vale por toda uma vida:

PELO SONHO É QUE VAMOS

É também assim que quero conduzir a minha vida. Porque ela só tem sentido quando é movida pelo sonho. Digo isto com o pensamento e a alma na Arrábida. Mas também, tenho de o confessar, a pensar no calor do sorriso do Pedro e naqueles olhos cheios de luz que faiscaram para mim, num clarão de luz intensa, naquela noite mágica de Setúbal.

Não há remédio: sou mesmo uma romântica.