Edição Nº 126 • 29/05/2000 | |
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MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
(Luta dos 500 escudos por assoalhada) |
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Luta pelas rendas de casa em Setúbal Leva Governo a dar melhor crédito à habitação
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– Onde é que estava no dia 30 de Maio de 1975? Hernâni Caldas – Estava numa reunião no ginásio do então Liceu de Setúbal. Havia um grupo de cidadãos dos bairros da Azeda, da Quinta das Amoreiras e São Gabriel, que desejava levar em frente uma luta pelas rendas de casa, no sentido de se pagar 500 escudos por assoalhada. Mas como eles não iam a lado nenhum por lhes faltar suporte logístico, decidimos fazer uma reunião para discutir o assunto. A maioria das pessoas eram professores e operários que pagavam rendas muito altas porque, como se sabe, naquele tempo 4 contos por três assoalhadas era muito dinheiro. Nessa reunião, decidiu-se avançar com a reivindicação e começámos a fazer cartazes para essa luta. SR – Porque é que decidiram pelos 500 escudos por assoalhada? HC – Para nós, os 500 escudos por assoalhada significava uma luta reformista. Na altura, a Siderurgia, os cimentos e a cerâmica já estavam nacionalizadas e isso era uma pressão enorme sobre o Governo para que fosse o Estado a construir e a distribuir pelas famílias as casas e as respectivas rendas. Esta luta dos 500 escudos, surge então como uma proposta ao Governo nesse sentido. Estávamos a tentar olhar para o futuro e prever o que acabou por acontecer, ou seja, cada um dono da sua casa. Por incrível que pareça até tivemos o apoio de alguns senhorios, tendo alguns deles três e quatro assoalhadas alugadas entre os 500 e os 800 escudos, numa altura em que as rendas estavam congeladas. Portanto, se a luta dos 500 escudos fosse em frente, eles só tinham a lucrar com isso. SR – Na altura em que surgiu esta reunião, já as reuniões de moradores eram uma prática frequente em Setúbal? HC – Sim, já existiam comissões de moradores em luta. Essas comissões, quer de moradores quer de trabalhadores, não se limitaram às suas reivindicações e, em conjunto com a Comissão de Militares do quartel do 11, formaram uma organização chamada Comité de Luta de Setúbal entre os finais de Maio e o início de Junho de 1975. Este Comité fazia as suas reuniões sem qualquer controlo de partidos, na Câmara Municipal de Setúbal. Ali era decidido quase tudo, se íamos ajudar os trabalhadores de Gâmbia a tirar o sal e limpar as salinas, se íamos levar em frente a luta das rendas de casa que nasceu em Setúbal e depois se estendeu por todo o país, e íamos ou não, promover uma manifestação em Lisboa sobre esta reivindicação. Poios essa manifestação foi feita e só de Setúbal foram mais de cinco mil pessoas. SR – Ao promover essas reuniões e a decidir o que fazer em Setúbal, o Comité de Luta não estava a sobrepor-se à própria Comissão Administrativa da Câmara? HC – O Comité não estava só a sobrepor-se à Câmara ou a substitui-la. O Comité era um Soviet com todo o poder que se lhe devia dar. Não éramos leninistas, mas queríamos cumprir mais do que cumpriu Lenine. Tínhamos uma enorme representatividade em termos de população, ela era tão grande que isso media-se com a participação das pessoas e com as casas cheias. SR – Como é que a Comissão Administrativa e respectivos partidos lá representados viam a actuação do Comité de Luta? HC – Viam com bons olhos porque a Comissão fugia ao seu controle. Lembro-me que a certa altura um jornal da cidade – que era do PCP – não chegou quando devia e eles resolveram emitir comunicados a apelar aos seus militantes para que não entrassem na luta. E o nosso maior espanto foi quando chegaram as ordens de despejo e vimos que a esmagadora maioria era de militantes do PCP que se tinham envolvido na luta pelas rendas de casa. SR – A reunião de 30 de Maio foi participada? HC – O ginásio do antigo Liceu de Setúbal comporta uns bons milhares de pessoas em pé e, nessa reunião, não estava ninguém sentado. Isto demonstra que a luta pelas casas já vinha de trás. A ideia dos 500 escudos foi arranjada pelo secretariado do Comité de Luta que fez contas aos rendimentos médios das pessoas. Concluímos que uma renda de casa de quatro assoalhadas não valia mais que dois mil escudos e, sendo assim, dava 500 escudos por assoalhada. Avisámos as pessoas, os representantes dos moradores e os senhorios e começámos a implementar a medida. Lembro-me de que no meu prédio foi eleito um representante e depois levámos a proposta ao nosso senhorio. Ele era militante do PS e aceitou a proposta. E isto aconteceu com a maioria dos senhorios dos senhorios de Setúbal. SR – Então, se a proposta foi aceite, a reivindicação dos 500 escudos não chegou a ser uma luta propriamente dita? HC – Aquilo foi expontâneo, da parte dos moradores, e os senhorios aceitaram muito rapidamente a exigência. A partir daí, a medida foi sendo aplicada sem problemas. Isto até ao 25 de Novembro porque, a partir daí, começaram as surgir ordens de despejo. É que, logo após o 25 de Novembro, os senhorios desencadearam uma luta sem ouvirem os inquilinos e isto foi injusto porque, antes, os moradores não foram para a luta sem ouvirem os senhorios. Sem nos consultarem, foram imediatamente com todos os processos para tribunal. E não venha o então juiz conselheiro José Ramos dos Santos dizer que ficou com ‘o menino nas mãos’ porque nós tivemos uma audiência com o então ministro da Justiça, que depois de ter analisado o problema disse-nos que só podia fazer uma coisa: desencadear a ordem de despejo. Então conseguiu-se acrescentar uma alínea à lei no sentido de levar à tentativa de conciliação. Portanto, se o réu dissesse que estava disposto a pagar a dívida já não havia ordem de despejo. Foi uma vitória importante para os moradores porque impediu imediatamente que as pessoas fossem postas na rua. Depois desta luta, o então ministro das Finanças, Salgado Zenha, e o então ministro da Habitação, Eduardo Pereira, que fizeram parte do primeiro governo constitucional, em 1976, chamaram-me para saber como é que íamos resolver definitivamente a questão. E foi proposto avançar com um decreto para a compra de habitação própria com benefícios através de um juro bonificado de 7%, o que era muito bom para a época já que naquela altura os juros à ordem estavam nos 36%. SR – As pessoas aderiram a esta medida? HC – A partir daí começaram outras lutas, como na empresa onde trabalhava, a Setenave, onde foi criado um Grupo de Habitação. Então, conseguimos que a empresa emprestasse, sem juros, 50 contos a cada trabalhador para dar como entrada na compra das respectivas casas. Assim que a empresa fez isso, as casas vagas em Setúbal acabaram porque as pessoas começaram a comprar casa própria, incluindo eu. SR – A luta das rendas de casa valeu a pena? HC – Sim, efectivamente o poder esteve na mão das massas durante o Verão Quente e logo a seguir ao 25 de Novembro. Lembro-me que, após o 25 de Novembro, eu e o Daniel Pires, que também fazia parte da luta, recuámos e desaparecemos durante dois dias. Não sabíamos se as coisas podiam virar-se contra nós, por isso decidimos esperar para ver. Mas quando vimos o Melo Antunes na televisão a dizer que a democracia não podia ir para a frente sem o PCP fomos para casa. No dia 28 de Novembro promovi uma reunião da luta das rendas de casa, no INATEL, – com um cartaz preto em sinal de luto – e a reunião encheu as instalações. Isto mesmo depois do 25 de Novembro. O que só prova que, em Setúbal, ninguém tinha medo de nada. SR – Contudo, o 25 de Novembro veio trazer mudanças ao país? HC – Sim, mudou completamente o rumo das coisas. Mas não foi tão fascista – e hoje reconheço isso – como na altura se pensava que pudesse vir a ser. Pensámos que era um golpe à Pinochet e, consequentemente, o fim do 25 de Abril. Efectivamente, o 25 de Novembro cortou a dinâmica dos trabalhadores, principalmente os rurais, e em todas as lutas em que estavam envolvidos. Foi um processo vagaroso, com o capital a absorver novamente esta dinâmica. SR – Se a reunião no INATEL teve participação, isso quer dizer que o 25 de Novembro não teve resultados imediatos junto da população? HC – Foi um processo lento, particularmente em Setúbal, onde teimámos na continuação da luta, no esclarecimento das pessoas. Em 1976, quando começámos o esclarecimento das populações, já Pinheiro de Azevedo tinha dado lugar a Mário Soares no cargo de Primeiro Ministro, fomos avisando de que se quisessem ficar com as casas de renda teriam de aceitar a conciliação com o senhorio. Daniel Pires é um exemplo disso porque conseguiu fazer as pazes com o senhorio. Pagou o que devia e começou a pagar quatro contos em vez dos dois previstos na luta dos 500 escudos. Eu é que fui mais teimoso e, neste processo, quis mesmo ir para a rua. SR – Até onde se prolongou a luta pelas rendas de casas? HC – Lembro-me que a luta continuava muito acesa durante o primeiro governo constitucional, tendo sido exactamente nessa altura que reuni com Eduardo Pereira e Salgado Zenha. Até tenho uma recordação caricata da época de mudança governamental. Lembro-me que o anterior ministro responsável pela questão das casas era um comunista que nunca quis reunir connosco. Então, quando descobriu que existia um grupo na Setenave para compra de habitação própria mandou-nos chamar. Nessa altura ele já não tinha esse cargo porque, entretanto, a pasta tinha sido assumida por Eduardo Pereira. E reuniu connosco para avisar que a habitação já não passava por ele, que isso agora era com um tipo muito sacana e por aí fora. Mas eu perguntei-lhe porque é que, depois de nunca nos ter querido ouvir, ele queria falar connosco exactamente quando já não detinha a pasta da habitação. E ele perguntou-me: “se estiver fechado num quarto escuro com um gato bravo, não tenta abrir um buraco para ele sair?”. Então respondi que não e que eu tentava era comer o gato. SR – As outras empresas acompanharam o processo criado pelos trabalhadores da Setenave? HC – A luta passou a todas as empresas e o processo generalizou-se a todo o país. E nós acompanhávamos tudo de muito perto, de tal maneira que descobrimos que andaram muitas empresas à frente desta luta. Por exemplo, a Secil teve o cuidado de construir um bairro para os seus operários e os que não couberam lá viram a empresa pagar-lhes a renda das casas que alugaram em Setúbal. Portanto, a Setenave estava muito longe daquilo que a Secil já fazia. Ou seja, a fábrica foi pioneira neste aspecto, porque precisava de pessoal. SR – A luta pelas habitações decorreu sem influências partidárias? HC – De facto, decorreu sem quaisquer influências partidárias e, por incrível que pareça, foi mesmo uma luta contra os partidos. Embora o assédio fosse permanente, nunca ninguém do Comité de Luta foi influenciado por isso. Aproveitávamos o apoio logístico e quem estava ligado aos conselhos revolucionários dos trabalhadores, soldados e marinheiros, que foi uma criação do PPD. Mas aproveitávamos estes apoios porque tínhamos autonomia e isso fez com que nunca tivéssemos permitido intromissões partidárias. SR – O Comité de Luta existiu durante quanto tempo? HC – O Comité sobrepunha-se muito à Comissão Administrativa da Câmara que, como todos sabemos, era constituída maioritariamente por gente do PCP. E andavam aflitos por causa das massas, até porque no Comité de Luta predominavam os militantes de base do PCP que se estavam marimbando para o partido e que não gostavam de ser controlado. Entretanto, fui escolhido pelas bases para recolher fundos para o Comité de Luta. Assim, com Zeca Afonso e Francisco Fanhais, fui a Bruxelas, à Holanda e à Alemanha buscar dinheiro para o Comité. Tínhamos milhares de autocolantes e vendíamos para recolher fundos. Quando chegámos a Setúbal, reuni o Comité de Luta e tive o cuidado de, pessoalmente e à vista de toda a gente, entregar-lhes o dinheiro que recolhemos. Depois disso o Comité organizou um espectáculo e uma reunião no Clube naval Setubalense, onde compareceram também os partidos de extrema esquerda, entre os quais o MES e o PRP. Entretanto, nas primeiras eleições autárquicas foi eleito um executivo do PS e nunca mais houve reuniões na Câmara. Assim, o Comité de Luta começou a usar o INATEL e um ou outro ginásio. Mas com o tempo o Comité foi desaparecendo, até porque as ordens de despejo pararam. A última acção foi o espectáculo no Clube Naval, nos finais de 1976, e depois o Comité de Luta esvaziou-se e desapareceu. SR – A partir daí a luta da população, em geral, não esmoreceu? HC – Com o 25 de Novembro, as pessoas foram atraídas pelos seus dirigentes que diziam para saírem para a rua e os setubalenses saiam mesmo. E saímos para a rua, tivemos condições de isolar Setúbal mas isso só não aconteceu porque a ordem final não chegou. Eis senão quando, viemos a saber que os nossos dirigentes tinham recolhido a bons hotéis e alguns deles até mesmo para o estrangeiro. Foi o caso de Isabel do Carmo, de Carlos Antunes, de Isabel Guerra, Fernando Caria, ou seja, meteram a cabeça entre os pés e foram-se embora. SR – Havia mesmo um plano para fazer de Setúbal um reduto da resistência? HC – Havia um plano para criar a comuna de Setúbal. O Jaime Neves não tinha hipótese nenhuma de ir para Monsanto porque o Sindicato da Construção Civil era todo do Comité de Luta e não estava ligado a partidos. Tínhamos escavadoras para abrir buracos suficientemente grandes nas estradas que não deixariam entrar um único chaimite em Setúbal e só poderíamos ser bombardeados pelo ar. Estava tudo previsto mas as coisas não resultaram porque os militante de base do PCP – que queriam mesmo fazer a resistência – começaram a ser chamados pelos seus dirigentes e foram andando. Foram de tal maneira que no dia 25 de Novembro acabei sozinho na rua a ver os aviões Fiat a sobrevoarem a cidade. E embora depois disto, ainda tivéssemos conseguido desencadear várias lutas, foi a partir daqui que a revolução e a força das populações esmoreceu. SR – 25 anos depois, o país é aquilo que esperava? HC – Não é nada do que eu tinha sonhado. Esperava um povo que não fosse banana e, efectivamente, cheguei à conclusão que somos um povo de bananas. Hoje as coisas são muito difíceis e, para que o país andasse para a frente, era necessário que os cidadãos pura e simplesmente cortassem com todos os partidos políticos. Quando se constitui um partido está a constituir-se uma parte e, por isso, seja quem for que já para o poder é beneficiado com isso. Por outro lado se fossemos todos nós – sem qualquer partido, a criar a Assembleia Nacional Popular, tudo seria muito diferente. O concelho de Setúbal elegeria uma direcção que delegaria um representante para a distrital, os outros concelhos também e, por sua vez, a distrital elegeria representantes para a Assembleia Nacional. E nem sequer existiria Presidente da República. Podem chamar-lhe utopia mas esta é a terceira via. A utopia é coisa que nunca se deve perder e, se reconheço e respeito o milhão de pessoas que vai a Fátima, peço a esse milhão que reconheça e respeite a minha utopia. |
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Entrevista de Pedro Brinca [email protected] |