Edição Nº 127 • 05/06/2000 | |
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MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
(Bandeira soviética hasteada na Câmara de Setúbal durante visita de cosmonauta russa) |
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Por causa de uma bandeira soviética MFA e Governador demitem Câmara de Setúbal
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– Onde é que estava no dia 1 de Junho de 1975? Adelino Reis Moura – Estava na varanda do gabinete do MFA na cidade de Setúbal, instalado na Praça de Bocage. Esse gabinete era dirigido pelo então major Pontes Miquelina, eu era capitão e tinha sido indigitado pelo COPCON como delegado do MFA em Setúbal, e o então capitão Herlander Chumbinho, hoje comandante da PSP do Porto, era oficial de operações. Nesse dia estávamos à varanda do gabinete quando ocorreu um episódio que nos chamou a atenção. A Praça de Bocage tinha alguns locais com história na cidade, nomeadamente o café O Reno, em cuja esplanada estavam sempre presentes várias pessoas de esquerda em encontros que quase deram tertúlias. Estavam eles na esplanada quando lhes detectámos uma situação estranha, de alguma indignação e preocupação. Foi quando nos apercebemos que algo de diferente se passava na Câmara Municipal, cujo edifício ficava mesmo em frente. Eu sabia que, na altura, estava de visita à Câmara de Setúbal uma cosmonauta soviética e que, naquele momento decorria uma cerimónia de cumprimentos absolutamente normal tendo em conta as circunstâncias. Mas as coisas não correram de forma muito normal, e o episódio que se passou ilustra bem o que era viver a revolução. Acontece que, por lapso ou porque as pessoas que estavam à frente da Câmara ainda não estavam familiarizadas com as questões do protocolo, no mastro principal do edifício da Câmara de Setúbal foi içada a bandeira da então União Soviética. Daí, o mau estar das pessoas que estavam na esplanada do Reno. SR – Embora defenda que esse episódio terá ocorrido por lapso, na altura não foi entendido com tal. ARM – Hoje sou capaz de admitir que tenha sido por lapso. Contudo, há que ver os fenómenos que ocorriam em Setúbal, naquela altura, que a levavam a ser conhecida em todo o país como a cidade vermelha. Foi um gesto que tenho alguma dificuldade em classificar de intencional, mas o certo é que as pessoas da frente da Comissão Administrativa, que se diziam do MDP/CDE, eram na sua maioria do PCP, como veio a verificar-se mais tarde. Uns tempos antes deste episódio tinha-se demitido o presidente da Comissão Administrativa, Júlio Santos – um verdadeiro republicano da oposição democrática que não tinha filiação partidária – que embora não pertencesse a qualquer partido situava-se muito próximo do PS. Na altura em que ocorreu o episódio da bandeira, Júlio Santos já tinha sido substituído por Vítor Zacarias, pelo que na maioria das 13 câmaras do distrito de Setúbal liderava a tendência do PCP. SR – O que é que se passou depois de içada a bandeira da União Soviética no mastro principal do edifício da Câmara? ARM – As pessoas que se indignaram com tal facto, fizeram questão de fazer chegar o seu protesto junto do Governador Civil porque era a bandeira nacional que estava em causa e a cidade de Setúbal que, mais uma vez, via novamente perturbado o seu ambiente. Na altura, como delegado do MFA, eu trabalhava bastante perto do Governador Civil, o então capitão de fragata Fuzeta da Ponte. Depois das queixas, entendeu-se fazer uma reunião entre o Governador, enquanto representante do poder civil, e o delegado do COPCON enquanto representante do poder militar. Na sequência da reunião, e numa decisão perfeitamente acertada, o Governador Civil decidiu apresentar o caso ao ministro da Administração Interna, que também era militar. Fomos lá no mesmo dia e ele ficou muito preocupado com o que se tinha passado. Mas ao mesmo tempo a sua preocupação transmitiu-nos algum receio sobre as medidas a tomar porque elas poderiam perturbar ainda mais a situação me Setúbal. Depois de uma longa conversa mais militar que política, falámos com o gabinete do então Primeiro Ministro, na altura o brigadeiro Vasco Gonçalves. Quando chegámos ao gabinete, por mero acaso encontrava-se lá o saudoso capitão Salgueiro Maia. Contámos o episódio e Salgueiro Maia disse-nos que as pessoas que permitiram a troca das bandeiras não podiam continuar na Câmara, mesmo sendo essas as mesmas pessoas que haviam lutado por um regime democrático em Portugal. Foi decidido demitir a Comissão Administrativa e assim aconteceu. Chamámos os diversos elementos da Comissão ao Governo Civil e demitimo-los. Isto gerou alguma celeuma, mas tudo foi rapidamente ultrapassado. SR – Como é que a Comissão Administrativa encarou a demissão? ARM – Encarou muito mal porque os elementos da Comissão defendiam que a troca das bandeiras tinha sido apenas um descuido. Mas a verdade é que havia uma forte indignação na cidade por causa desse episódio e Setúbal não merecia um lapso daqueles. Havia que tomar uma atitude firme em relação a este assunto para que Setúbal não sofresse mais ainda, numa altura em que a região fervilhava de conflitos, com problemas na Setenave, na Inapa, na Sapec e no Gabinete da Área de Sines, entre muitos outros. Na altura, o distrito já era visto como vermelho e não podíamos deixar de dar um sinal contrário acerca disso. Para além de que era necessário dar um sinal claro de que aqui havia ordem. Tenho de salientar a generosidade com que, apesar de tudo, muita gente trabalhou na região. Até porque estávamos todos a aprender política naquela época. A dinâmica e a força do povo davam ao militares formas diferentes de ver a revolução: por um lado a vontade das pessoas e por outro a organização, protagonizada pelo PCP, que estava por trás dos cidadãos. Portanto havia que contrabalançar essa organização com o entusiasmo e a vontade de participar de uma população inteira que estava ébria de liberdade. Este entusiasmo foi muito bem aproveitado pelo PCP que fez aqui coisas que apenas um partido organizado é capaz de fazer. SR – Ao tomarem a decisão de demitir a Comissão Administrativa, foram considerados reaccionários? ARM – Fomos considerados altamente reaccionários. Recordo-me que imediatamente após essa tomada de decisão, passámos de democratas a reaccionários. Antes dessa decisão, no jornal O Setubalense haviam saído notícias onde éramos considerados democratas, mas depois de termos demitido a Comissão Administrativa passámos a ser apontados quase como fascistas. As coisas eram assim naquela época. E tudo era muito rápido e um pouco confuso naquela época, lembro-me de coisas que se passaram, nomeadamente no que toca à informação que me chegava de Lisboa, enquanto delegado do MFA, que quando a recebia já vinha de forma totalmente distorcida. Ou seja, era a táctica da informação e da contra-informação. E nós sabíamos isso perfeitamente pois conhecíamos estes métodos. Numa cidade onde tinha ocorrido o fenómeno do içar da bandeira da União Soviética e onde nós sabíamos que haviam já algumas forças que queriam era democracia e liberdade, ainda hoje compreendo a dificuldade que gente como os elementos do PS e do PPD tinham em expressar-se. Isto porque havia uma organização que trabalhava de uma forma tão pouco transparente que quem quisesse pôs as coisas à discussão e analisar os problemas não tinha qualquer hipótese. E este fenómeno da bandeira teve um grande significado porque foi exactamente o despoletar de um conjunto de democratas que não tinham voz em Setúbal. E acho que viram naquele momento uma oportunidade de questionar o MFA sobre se as coisas poderiam chegar ao ponto de se içar uma bandeira da União Soviética no mastro destinado à bandeira de Portugal. SR – A Comissão Administrativa seguinte conseguiu representar aqueles que não tinham voz? ARM – Depois apareceram várias pessoas, de cujos nomes não me lembro na totalidade. Mas lembro-me que o presidente da Comissão era Francisco Lobo, do PCP. Mas acho que foi nesta altura que as coisas começaram a mudar. Em Setúbal, há uma outra história sobre a qual gostaria de falar porque toda a gente fala do 11 de Março mas pouca gente se lembra de que antes desse dia houve um episódio em Setúbal, em que o PPD foi quase aniquilado. Foi no dia 7 de Março. Na altura, quem estava de serviço no hospital de Setúbal era o médico Lemos Cabral, uma das pessoas mais importantes do PPD. Mas a mulher de Lemos Cabral era irmã do Governador Civil. Na sequência da violência do 7 de Março, uma pessoa foi abatida a tiro e levada para o hospital. O que aconteceu foi que muita gente entrou por ali a exigir a Lemos Cabral, que tinha uma especialidade completamente diferente, que interviesse clinicamente. Mas ele não queria fazê-lo porque era dermatologista e isso, aliado a todos os acontecimentos anteriores, aniquilou completamente o PPD em Setúbal. E o PS não o foi graças a três ou quatro pessoas que recordo perfeitamente: o actual Governador Civil, Alberto Antunes, Fernando Mendes, do Seixal, e Fernando Sacramento, do PS de Azeitão. São homens de grande resistência e a quem o PS deve muito. Eram as figuras visíveis do PS em Setúbal, e os políticos com quem o MFA dialogava. Isto numa altura em que em Lisboa se dizia que o MFA tinha uma conotação de extrema esquerda, que estava muito ligado à LUAR, ao PRP, a Isabel do Carmo e Carlos Antunes. Toda esta baralhação trazia-nos algumas dificuldades de interpretação. E não conseguíamos reflectir sobre isso porque, sempre que tentávamos rebentava outro problema qualquer em Setúbal. Lembro-me de, por diversas vezes, ter perguntado a mim mesmo como é que era capaz de responder a solicitações quase em simultâneo para uma fábrica, para uma herdade, para um corte de estrada e por aí fora. O que pretendíamos era sermos o fiel da balança em todos esses acontecimentos, mas aquela era uma tarefa difícil e muitas vezes andávamos a reboque dos acontecimentos. A certa altura éramos quase como bombeiros e íamos para fazer o rescaldo. E havia um grupo de pessoas, nomeadamente oficiais milicianos, que desempenhavam muito bem o seu papel dentro do quartel do 11, entre eles Ricardo Botas e um alferes chamado Pereira. Depois haviam os problemas no quartel, os chamados problemas de organização militar. SR – Pode dizer-se que, com o advento da liberdade a organização militar estaria um pouco anarquizada? ARM – Noutros quartéis talvez, mas no 11 não senti isso. Numa chamada de recrutas onde apareciam desde licenciados a pessoas com a 4ª classe, eram todos misturados num só contingente como soldados. Depois dizia-se que os melhores é que seriam oficiais e esses melhores eram sempre indivíduos licenciados. A seguir apareciam como alferes mas vinha-se a saber que o eram mas por terem saído de determinado partido. Aqui em Setúbal, a tal anarquia não se verificou muito porque, no meu entender, havia uma célula muito forte do PCP no próprio quartel. Por isso o próprio Partido Comunista não estava interessado em que o quartel do 11 fosse alvo de uma situação de anarquia. SR – Contudo, o PCP era constantemente confrontado com a ‘agitação’ dos chamados partidos de extrema esquerda. ARM – Sem dúvida. Recordo um episódio caricato, quando o ditador romeno Nicolau Ceausecu veio visitar o estaleiro da Setenave com o general Costa Gomes, então presidente da República. O PCP tinha preparado algo importante para o receber e acabou simplesmente cilindrado pelo MRPP e pela UDP. Os dois presidentes foram vaiados numa empresa como a Setenave, onde se pensava que as células mais fortes eram do PCP. Fomos todos apanhados de surpresa pela força dos protestos e a dedução que fizemos era de que, na realidade, o PCP não controlava assim tanto as empresas. O MRPP tinha força, mas ainda hoje tenho dificuldade em percebê-lo. Na altura dizia-se que andava a soldo da CIA e isso aparecia escrito nas paredes. E nós, do MFA, como fiel da balança e defensores da revolução, como dizia o povo, éramos permanentemente questionados sobre a situação. O curioso é que havia um tratamento diferenciado em relação ao MFA, pois quando estive no norte do país, reparei que o tratamento dado ao MFA era quase oposto ao que era dado no sul do país. Mas aqui também tivemos coisas difíceis de digerir. A Armada Portuguesa tem a maior parte dos seus efectivos na margem sul do Tejo e o que acontecia é que, já naquela altura, a Marinha tinha homens muito politizados. Acontece que houve muito militar oportunista no meio disto tudo, começando pela revolução. Alguns começaram a embandeirar em arco, naturalmente pensando tirar dividendos mais tarde. As pessoas esquecem-se de que com ferros matam e com ferros morrem. E em Setúbal, de facto, as coisas eram difíceis, de tal modo que todas as manhãs nos perguntávamos o que ia acontecer a seguir. E por mais que não quiséssemos, quando íamos acorrer a um acontecimento qualquer, a maior parte das vezes tínhamos de tomar partido sobre o que estava a ocorrer. Foi uma época extraordinariamente difícil. Entretanto, as mesmas pessoas que haviam contestado a bandeira começaram a desconfiar de que existia alguma tendência de empurrar o país para uma determinada área, e houve como que um despertar, uma tomada de consciência de muita gente. Mas penso que já era tarde porque se esta intervenção e consciencialização tivessem ocorrido antes, Setúbal nunca tinha passado pelas crises que passou. Conheço o país todo e posso dizer que, de facto, Setúbal é uma região onde se vive e respira democracia. Há alguns atropelos, como em todo o lado, mas aqui as pessoas são capazes de falas olhos nos olhos. E esta foi a grande lição que Setúbal me deu, apesar de ter passado aqui alguns maus bocados. SR – Quais foram as impressões mais fortes que o período revolucionário lhe deixou? ARM – Uma das mais fortes foi uma manifestação convocada pelo PS e pelo PPD, com a população a dizer que queria caminhar por uma revolução onde todos participassem. Tudo isto teve a ver com a CGTP, a unicidade sindical e a necessidade de travar o avanço do PCP. Sobre isto houve manifestações e as célebres barricadas pelo país inteiro. Penso que isto foi o início da constatação de que não havia só um partido a dirigir as coisas. E, de facto, foi um incentivo para uma maior participação das pessoas na revolução. Recordo-me das pessoas a quererem ir de Setúbal para Lisboa em autocarros e as barricadas não os deixavam passar. Os que barricavam as estradas diziam que se tratava da reacção e não deixava passar os autocarros. Eu fui mandado para junto das bombas da Shell, à saída de Setúbal para Lisboa, e tive um bate papo com um deputado que, numa discussão acesa dizia que os autocarros só passavam por cima do cadáver dele. E eu disse-lhe: “desculpe lá, mas o senhor só é cadáver depois de morto, de maneira que eles passam e passar a cadáver a gente só tem que tomar nota”. E assim acabou este episódio, contudo as coisas demoraram a regularizar noutros locais onde muita gente ficou impedida de passar por causa das barricadas. E o pessoal dos autocarros já vinha armado de paus porque as pessoas estavam fartas de serem insultadas e agredidas. O que se via era que as pessoas queriam participar livremente nas acções e sentiam-se puxadas para um determinado lado a que não queriam pertencer. Um outro momento de grande espectacularidade em Setúbal foi o dia 26 de Novembro. Foi desencadeado o golpe, as forças saíram mas nós sabíamos que haviam movimentações no Forte de Almada e em Setúbal. Recebemos instruções para irmos buscar uma coluna militar a Estremoz e vimo-nos muito atrapalhados para chegar cá com essa coluna. Quando chegámos, estava a porta do quartel do 11 barricada com um carro, de forma a impedir a entrada da coluna. Foi a atitude de um oficial que resolveu o assunto, ao dizer para darmos cabo da viatura. Atirámos à viatura e as pessoas tiveram medo. É que, nessa altura, havia centenas de pessoas à volta do quartel do 11 aos gritos de “queremos armas”. SR – O que é que estava em jogo, um dia depois do 25 de Novembro? ARM – O posto de comando da Amadora dirigia as forças que se opunham a quem tinha iniciado o golpe. E em virtude da situação em Setúbal ser extraordinariamente preocupante, recebemos instruções para irmos buscar uma força que garantisse a segurança e essa força foi o Regimento de Cavalaria de Estremoz. Depois ocorreram distúrbios na avenida 5 de Outubro, mas para aí foram destacada a companhia de infantaria do então quartel de Brancanes. Foi muito difícil trazer mais forças para Setúbal e chegou a ser preciso ir à paisana buscar viaturas à Marateca e a Pegões. A certa altura, o posto de comando indicou-nos que já tinha sido efectuado o controle de Monsanto e partir daí as coisas acalmaram. Entretanto, os militares de Estremoz que vieram ajudar-nos eram considerados uma força amiga e, mais que isso, o garante que a situação não se descontrolaria pois, como se sabe, o quartel do 11 tinha uma grande célula do PCP. Logo a seguir ao 25 de Novembro, o major Melo Antunes afirmou publicamente que o PCP não podia ser excluído da democracia. E isso, de alguma forma, acalmou o desejo de muita gente, por vingança. Mais uma vez, o MFA teve alguma estratégia e capacidade para gerir os conflitos, nomeadamente em Setúbal, onde quem tinha maior força política era o PCP. E isso era coisa que não desaparecia de um dia para o outro. Lembro-me também que no dia 28 de Maio de 1975, a 5ª Divisão deu ordem para uma operação ao nível das sedes do MRPP. Isso também foi feito em Setúbal e o Regimento de Infantaria 11 deteve os militantes e levou-os para a cadeia de Pinheiro da Cruz. Não estive nessa operação mas contam-se episódios sobre os elementos do MRPP. Perguntavam-lhes pela identidade das mães e eles diziam que não sabiam. Já quanto aos pais já sabiam porque se intitulavam filhos de Rosa Coutinho. Foi uma época muito complicada para todos nós e o regimento de Setúbal manteve sempre a mesma postura. Isso era difícil naquela altura e, para mais, tenho a consciência de que a minha experiência política não era grande. Os acontecimentos surgiam como uma espécie de turbilhão, o que nos provocava algumas restrições na actuação. E eu era, de alguma forma, condicionado no que dizia respeito a dar a minha opinião sobre certos assuntos, nomeadamente as ocupações agrícolas. Por isso, cheguei a fazer intervenções com as quais não concordava. Na maior parte das vezes não as podia evitar, mas como não podia pactuar com certas coisas, fazia o relatório indicando que houve ocupação sem que a pudesse evitar. Ou seja, também não valia a pena porque não havia ordens para actuar com força. O que me interessava mandar uma força ao local, se logo a seguir o Otelo dizia que não era para actuar? SR – Quando é que as coisas acalmaram em Setúbal? ARM – Este foi um processo demorado e a calmaria não regressou de imediato. As coisas foram melhorando aos poucos e parece-me que a partir de 25 de Abril de 1976, com a aprovação da Constituição da República e as eleições que se lhe seguiram, o país deu início ao processo de democratização. E isso notou-se num fenómeno que ocorreu com as muitas organizações de base, como as comissões de moradores existentes em Setúbal, e que eram nitidamente direccionadas. A partir do momento em que deixaram de ter uma força de fora a direccioná-las, elas deixaram de ter influência e começaram a desmembrar-se. Foi aí que surgiu muita gente que antes não podia falar. Depois aconteceu o inverso e passou a assistir-se à caça aos comunistas. Mas é preciso dizer que no meio disto tudo houve muito oportunismo. Cheguei a ver gente de Comissões de Trabalhadores a defenderem coisas que não tinham nada a ver com nada e que eram mero oportunismo. Aquele foi um período extraordinariamente difícil para todos e acho que a generosidade com que as pessoas se empenharam foi um pouco atraiçoada. SR – 25 anos depois, que balanço faz do período revolucionário? ARM – Faço um balanço positivo, embora ache que agora há a tendência de se pedir perdão por tudo e mais alguma coisa. Mas apesar dos maus momentos, estou convencido de que valeu a pena. Foi um período conturbado em que toda a gente pensava que as coisas iam correr mal, mas mais uma vez o povo português foi bom e se a História for contada de forma correcta, o 25 de Abril e o período revolucionário serão contados como coisas bonitas. Foi um povo que viu abrir uma porta e entrou de cabeça a dizer: “estou aqui para participar”. E só não participaram mais porque o PCP, estando fortemente organizado, cortou essa participação e deixou apenas acontecer aquilo que estivesse no âmbito das suas intenções. SR – Como é que vê o Portugal de hoje? ARM – Um dia destes estava a ouvir rádio e, num programa, perguntava-se que revolução falta fazer em Portugal? Digo que falta-nos fazer uma coisa muito difícil que é a revolução das mentalidades. Tem de ser feita uma grande aposta na educação logo desde o pré-escolar. Não somos gerações perdidas, somos gerações viciadas em hábitos que dificilmente se perdem, por isso, tem de haver uma mudança de mentalidade nas camadas mais jovens. |
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Entrevista de Pedro Brinca [email protected] |