Edição Nº 127 • 05/06/2000 | |
MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
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(Bandeira soviética hasteada na Câmara de Setúbal durante visita de cosmonauta russa) |
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Por causa de uma bandeira soviética MFA e Governador demitem Câmara de Setúbal No primeiro dia de Junho de 1974, Setúbal assistiu atónita ao içar da bandeira da então União Soviética no mastro principal do edifício da Câmara Municipal. Um acto atribuído à Comissão Administrativa, onde predominavam elementos do PCP, e que colocou alguns sectores da sociedade em polvorosa. O então capitão Adelino Reis Moura, na altura delegado do MFA em Setúbal, foi quem reuniu com o Governador Civil para analisar as queixas de alguns cidadãos. O caso terminou no gabinete do ministro da Administração Interna, com o Governo e Salgueiro Maia a exigirem medidas reparadoras. 25 anos depois, Reis Moura recorda o poder do PCP no distrito de Setúbal, a insatisfação de alguns sectores da sociedade civil pelo domínio comunista e o que a cidade sofreu no Verão Quente de 1975. |
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– Onde é que estava no dia 1 de Junho de 1975? Adelino Reis Moura – Estava na varanda do gabinete do MFA na cidade de Setúbal, instalado na Praça de Bocage. Esse gabinete era dirigido pelo então major Pontes Miquelina, eu era capitão e tinha sido indigitado pelo COPCON como delegado do MFA em Setúbal, e o então capitão Herlander Chumbinho, hoje comandante da PSP do Porto, era oficial de operações. Nesse dia estávamos à varanda do gabinete quando ocorreu um episódio que nos chamou a atenção. A Praça de Bocage tinha alguns locais com história na cidade, nomeadamente o café O Reno, em cuja esplanada estavam sempre presentes várias pessoas de esquerda em encontros que quase deram tertúlias. Estavam eles na esplanada quando lhes detectámos uma situação estranha, de alguma indignação e preocupação. Foi quando nos apercebemos que algo de diferente se passava na Câmara Municipal, cujo edifício ficava mesmo em frente. Eu sabia que, na altura, estava de visita à Câmara de Setúbal uma cosmonauta soviética e que, naquele momento decorria uma cerimónia de cumprimentos absolutamente normal tendo em conta as circunstâncias. Mas as coisas não correram de forma muito normal, e o episódio que se passou ilustra bem o que era viver a revolução. Acontece que, por lapso ou porque as pessoas que estavam à frente da Câmara ainda não estavam familiarizadas com as questões do protocolo, no mastro principal do edifício da Câmara de Setúbal foi içada a bandeira da então União Soviética. Daí, o mau estar das pessoas que estavam na esplanada do Reno. SR – Embora defenda que esse episódio terá ocorrido por lapso, na altura não foi entendido com tal. ARM – Hoje sou capaz de admitir que tenha sido por lapso. Contudo, há que ver os fenómenos que ocorriam em Setúbal, naquela altura, que a levavam a ser conhecida em todo o país como a cidade vermelha. Foi um gesto que tenho alguma dificuldade em classificar de intencional, mas o certo é que as pessoas da frente da Comissão Administrativa, que se diziam do MDP/CDE, eram na sua maioria do PCP, como veio a verificar-se mais tarde. Uns tempos antes deste episódio tinha-se demitido o presidente da Comissão Administrativa, Júlio Santos – um verdadeiro republicano da oposição democrática que não tinha filiação partidária – que embora não pertencesse a qualquer partido situava-se muito próximo do PS. Na altura em que ocorreu o episódio da bandeira, Júlio Santos já tinha sido substituído por Vítor Zacarias, pelo que na maioria das 13 câmaras do distrito de Setúbal liderava a tendência do PCP. SR – O que é que se passou depois de içada a bandeira da União Soviética no mastro principal do edifício da Câmara? ARM – As pessoas que se indignaram com tal facto, fizeram questão de fazer chegar o seu protesto junto do Governador Civil porque era a bandeira nacional que estava em causa e a cidade de Setúbal que, mais uma vez, via novamente perturbado o seu ambiente. Na altura, como delegado do MFA, eu trabalhava bastante perto do Governador Civil, o então capitão de fragata Fuzeta da Ponte. Depois das queixas, entendeu-se fazer uma reunião entre o Governador, enquanto representante do poder civil, e o delegado do COPCON enquanto representante do poder militar. Na sequência da reunião, e numa decisão perfeitamente acertada, o Governador Civil decidiu apresentar o caso ao ministro da Administração Interna, que também era militar. Fomos lá no mesmo dia e ele ficou muito preocupado com o que se tinha passado. Mas ao mesmo tempo a sua preocupação transmitiu-nos algum receio sobre as medidas a tomar porque elas poderiam perturbar ainda mais a situação me Setúbal. Depois de uma longa conversa mais militar que política, falámos com o gabinete do então Primeiro Ministro, na altura o brigadeiro Vasco Gonçalves. Quando chegámos ao gabinete, por mero acaso encontrava-se lá o saudoso capitão Salgueiro Maia. Contámos o episódio e Salgueiro Maia disse-nos que as pessoas que permitiram a troca das bandeiras não podiam continuar na Câmara, mesmo sendo essas as mesmas pessoas que haviam lutado por um regime democrático em Portugal. Foi decidido demitir a Comissão Administrativa e assim aconteceu. Chamámos os diversos elementos da Comissão ao Governo Civil e demitimo-los. Isto gerou alguma celeuma, mas tudo foi rapidamente ultrapassado. SR – Como é que a Comissão Administrativa encarou a demissão? ARM – Encarou muito mal porque os elementos da Comissão defendiam que a troca das bandeiras tinha sido apenas um descuido. Mas a verdade é que havia uma forte indignação na cidade por causa desse episódio e Setúbal não merecia um lapso daqueles. Havia que tomar uma atitude firme em relação a este assunto para que Setúbal não sofresse mais ainda, numa altura em que a região fervilhava de conflitos, com problemas na Setenave, na Inapa, na Sapec e no Gabinete da Área de Sines, entre muitos outros. Na altura, o distrito já era visto como vermelho e não podíamos deixar de dar um sinal contrário acerca disso. Para além de que era necessário dar um sinal claro de que aqui havia ordem. Tenho de salientar a generosidade com que, apesar de tudo, muita gente trabalhou na região. Até porque estávamos todos a aprender política naquela época. A dinâmica e a força do povo davam ao militares formas diferentes de ver a revolução: por um lado a vontade das pessoas e por outro a organização, protagonizada pelo PCP, que estava por trás dos cidadãos. Portanto havia que contrabalançar essa organização com o entusiasmo e a vontade de participar de uma população inteira que estava ébria de liberdade. Este entusiasmo foi muito bem aproveitado pelo PCP que fez aqui coisas que apenas um partido organizado é capaz de fazer. SR – Ao tomarem a decisão de demitir a Comissão Administrativa, foram considerados reaccionários? ARM – Fomos considerados altamente reaccionários. Recordo-me que imediatamente após essa tomada de decisão, passámos de democratas a reaccionários. Antes dessa decisão, no jornal O Setubalense haviam saído notícias onde éramos considerados democratas, mas depois de termos demitido a Comissão Administrativa passámos a ser apontados quase como fascistas. As coisas eram assim naquela época. E tudo era muito rápido e um pouco confuso naquela época, lembro-me de coisas que se passaram, nomeadamente no que toca à informação que me chegava de Lisboa, enquanto delegado do MFA, que quando a recebia já vinha de forma totalmente distorcida. Ou seja, era a táctica da informação e da contra-informação. E nós sabíamos isso perfeitamente pois conhecíamos estes métodos. Numa cidade onde tinha ocorrido o fenómeno do içar da bandeira da União Soviética e onde nós sabíamos que haviam já algumas forças que queriam era democracia e liberdade, ainda hoje compreendo a dificuldade que gente como os elementos do PS e do PPD tinham em expressar-se. Isto porque havia uma organização que trabalhava de uma forma tão pouco transparente que quem quisesse pôs as coisas à discussão e analisar os problemas não tinha qualquer hipótese. E este fenómeno da bandeira teve um grande significado porque foi exactamente o despoletar de um conjunto de democratas que não tinham voz em Setúbal. E acho que viram naquele momento uma oportunidade de questionar o MFA sobre se as coisas poderiam chegar ao ponto de se içar uma bandeira da União Soviética no mastro destinado à bandeira de Portugal. SR – A Comissão Administrativa seguinte conseguiu representar aqueles que não tinham voz? ARM – Depois apareceram várias pessoas, de cujos nomes não me lembro na totalidade. Mas lembro-me que o presidente da Comissão era Francisco Lobo, do PCP. Mas acho que foi nesta altura que as coisas começaram a mudar. Em Setúbal, há uma outra história sobre a qual gostaria de falar porque toda a gente fala do 11 de Março mas pouca gente se lembra de que antes desse dia houve um episódio em Setúbal, em que o PPD foi quase aniquilado. Foi no dia 7 de Março. Na altura, quem estava de serviço no hospital de Setúbal era o médico Lemos Cabral, uma das pessoas mais importantes do PPD. Mas a mulher de Lemos Cabral era irmã do Governador Civil. Na sequência da violência do 7 de Março, uma pessoa foi abatida a tiro e levada para o hospital. O que aconteceu foi que muita gente entrou por ali a exigir a Lemos Cabral, que tinha uma especialidade completamente diferente, que interviesse clinicamente. Mas ele não queria fazê-lo porque era dermatologista e isso, aliado a todos os acontecimentos anteriores, aniquilou completamente o PPD em Setúbal. E o PS não o foi graças a três ou quatro pessoas que recordo perfeitamente: o actual Governador Civil, Alberto Antunes, Fernando Mendes, do Seixal, e Fernando Sacramento, do PS de Azeitão. São homens de grande resistência e a quem o PS deve muito. Eram as figuras visíveis do PS em Setúbal, e os políticos com quem o MFA dialogava. Isto numa altura em que em Lisboa se dizia que o MFA tinha uma conotação de extrema esquerda, que estava muito ligado à LUAR, ao PRP, a Isabel do Carmo e Carlos Antunes. Toda esta baralhação trazia-nos algumas dificuldades de interpretação. E não conseguíamos reflectir sobre isso porque, sempre que tentávamos rebentava outro problema qualquer em Setúbal. Lembro-me de, por diversas vezes, ter perguntado a mim mesmo como é que era capaz de responder a solicitações quase em simultâneo para uma fábrica, para uma herdade, para um corte de estrada e por aí fora. O que pretendíamos era sermos o fiel da balança em todos esses acontecimentos, mas aquela era uma tarefa difícil e muitas vezes andávamos a reboque dos acontecimentos. A certa altura éramos quase como bombeiros e íamos para fazer o rescaldo. E havia um grupo de pessoas, nomeadamente oficiais milicianos, que desempenhavam muito bem o seu papel dentro do quartel do 11, entre eles Ricardo Botas e um alferes chamado Pereira. Depois haviam os problemas no quartel, os chamados problemas de organização militar. SR – Pode dizer-se que, com o advento da liberdade a organização militar estaria um pouco anarquizada? ARM – Noutros quartéis talvez, mas no 11 não senti isso. Numa chamada de recrutas onde apareciam desde licenciados a pessoas com a 4ª classe, eram todos misturados num só contingente como soldados. Depois dizia-se que os melhores é que seriam oficiais e esses melhores eram sempre indivíduos licenciados. A seguir apareciam como alferes mas vinha-se a saber que o eram mas por terem saído de determinado partido. Aqui em Setúbal, a tal anarquia não se verificou muito porque, no meu entender, havia uma célula muito forte do PCP no próprio quartel. Por isso o próprio Partido Comunista não estava interessado em que o quartel do 11 fosse alvo de uma situação de anarquia. SR – Contudo, o PCP era constantemente confrontado com a ‘agitação’ dos chamados partidos de extrema esquerda. ARM – Sem dúvida. Recordo um episódio caricato, quando o ditador romeno Nicolau Ceausecu veio visitar o estaleiro da Setenave com o general Costa Gomes, então presidente da República. O PCP tinha preparado algo importante para o receber e acabou simplesmente cilindrado pelo MRPP e pela UDP. Os dois presidentes foram vaiados numa empresa como a Setenave, onde se pensava que as células mais fortes eram do PCP. Fomos todos apanhados de surpresa pela força dos protestos e a dedução que fizemos era de que, na realidade, o PCP não controlava assim tanto as empresas. O MRPP tinha força, mas ainda hoje tenho dificuldade em percebê-lo. Na altura dizia-se que andava a soldo da CIA e isso aparecia escrito nas paredes. E nós, do MFA, como fiel da balança e defensores da revolução, como dizia o povo, éramos permanentemente questionados sobre a situação. O curioso é que havia um tratamento diferenciado em relação ao MFA, pois quando estive no norte do país, reparei que o tratamento dado ao MFA era quase oposto ao que era dado no sul do país. Mas aqui também tivemos coisas difíceis de digerir. A Armada Portuguesa tem a maior parte dos seus efectivos na margem sul do Tejo e o que acontecia é que, já naquela altura, a Marinha tinha homens muito politizados. Acontece que houve muito militar oportunista no meio disto tudo, começando pela revolução. Alguns começaram a embandeirar em arco, naturalmente pensando tirar dividendos mais tarde. As pessoas esquecem-se de que com ferros matam e com ferros morrem. E em Setúbal, de facto, as coisas eram difíceis, de tal modo que todas as manhãs nos perguntávamos o que ia acontecer a seguir. E por mais que não quiséssemos, quando íamos acorrer a um acontecimento qualquer, a maior parte das vezes tínhamos de tomar partido sobre o que estava a ocorrer. Foi uma época extraordinariamente difícil. Entretanto, as mesmas pessoas que haviam contestado a bandeira começaram a desconfiar de que existia alguma tendência de empurrar o país para uma determinada área, e houve como que um despertar, uma tomada de consciência de muita gente. Mas penso que já era tarde porque se esta intervenção e consciencialização tivessem ocorrido antes, Setúbal nunca tinha passado pelas crises que passou. Conheço o país todo e posso dizer que, de facto, Setúbal é uma região onde se vive e respira democracia. Há alguns atropelos, como em todo o lado, mas aqui as pessoas são capazes de falas olhos nos olhos. E esta foi a grande lição que Setúbal me deu, apesar de ter passado aqui alguns maus bocados. SR – Quais foram as impressões mais fortes que o período revolucionário lhe deixou? ARM – Uma das mais fortes foi uma manifestação convocada pelo PS e pelo PPD, com a população a dizer que queria caminhar por uma revolução onde todos participassem. Tudo isto teve a ver com a CGTP, a unicidade sindical e a necessidade de travar o avanço do PCP. Sobre isto houve manifestações e as célebres barricadas pelo país inteiro. Penso que isto foi o início da constatação de que não havia só um partido a dirigir as coisas. E, de facto, foi um incentivo para uma maior participação das pessoas na revolução. Recordo-me das pessoas a quererem ir de Setúbal para Lisboa em autocarros e as barricadas não os deixavam passar. Os que barricavam as estradas diziam que se tratava da reacção e não deixava passar os autocarros. Eu fui mandado para junto das bombas da Shell, à saída de Setúbal para Lisboa, e tive um bate papo com um deputado que, numa discussão acesa dizia que os autocarros só passavam por cima do cadáver dele. E eu disse-lhe: “desculpe lá, mas o senhor só é cadáver depois de morto, de maneira que eles passam e passar a cadáver a gente só tem que tomar nota”. E assim acabou este episódio, contudo as coisas demoraram a regularizar noutros locais onde muita gente ficou impedida de passar por causa das barricadas. E o pessoal dos autocarros já vinha armado de paus porque as pessoas estavam fartas de serem insultadas e agredidas. O que se via era que as pessoas queriam participar livremente nas acções e sentiam-se puxadas para um determinado lado a que não queriam pertencer. Um outro momento de grande espectacularidade em Setúbal foi o dia 26 de Novembro. Foi desencadeado o golpe, as forças saíram mas nós sabíamos que haviam movimentações no Forte de Almada e em Setúbal. Recebemos instruções para irmos buscar uma coluna militar a Estremoz e vimo-nos muito atrapalhados para chegar cá com essa coluna. Quando chegámos, estava a porta do quartel do 11 barricada com um carro, de forma a impedir a entrada da coluna. Foi a atitude de um oficial que resolveu o assunto, ao dizer para darmos cabo da viatura. Atirámos à viatura e as pessoas tiveram medo. É que, nessa altura, havia centenas de pessoas à volta do quartel do 11 aos gritos de “queremos armas”. SR – O que é que estava em jogo, um dia depois do 25 de Novembro? ARM – O posto de comando da Amadora dirigia as forças que se opunham a quem tinha iniciado o golpe. E em virtude da situação em Setúbal ser extraordinariamente preocupante, recebemos instruções para irmos buscar uma força que garantisse a segurança e essa força foi o Regimento de Cavalaria de Estremoz. Depois ocorreram distúrbios na avenida 5 de Outubro, mas para aí foram destacada a companhia de infantaria do então quartel de Brancanes. Foi muito difícil trazer mais forças para Setúbal e chegou a ser preciso ir à paisana buscar viaturas à Marateca e a Pegões. A certa altura, o posto de comando indicou-nos que já tinha sido efectuado o controle de Monsanto e partir daí as coisas acalmaram. Entretanto, os militares de Estremoz que vieram ajudar-nos eram considerados uma força amiga e, mais que isso, o garante que a situação não se descontrolaria pois, como se sabe, o quartel do 11 tinha uma grande célula do PCP. Logo a seguir ao 25 de Novembro, o major Melo Antunes afirmou publicamente que o PCP não podia ser excluído da democracia. E isso, de alguma forma, acalmou o desejo de muita gente, por vingança. Mais uma vez, o MFA teve alguma estratégia e capacidade para gerir os conflitos, nomeadamente em Setúbal, onde quem tinha maior força política era o PCP. E isso era coisa que não desaparecia de um dia para o outro. Lembro-me também que no dia 28 de Maio de 1975, a 5ª Divisão deu ordem para uma operação ao nível das sedes do MRPP. Isso também foi feito em Setúbal e o Regimento de Infantaria 11 deteve os militantes e levou-os para a cadeia de Pinheiro da Cruz. Não estive nessa operação mas contam-se episódios sobre os elementos do MRPP. Perguntavam-lhes pela identidade das mães e eles diziam que não sabiam. Já quanto aos pais já sabiam porque se intitulavam filhos de Rosa Coutinho. Foi uma época muito complicada para todos nós e o regimento de Setúbal manteve sempre a mesma postura. Isso era difícil naquela altura e, para mais, tenho a consciência de que a minha experiência política não era grande. Os acontecimentos surgiam como uma espécie de turbilhão, o que nos provocava algumas restrições na actuação. E eu era, de alguma forma, condicionado no que dizia respeito a dar a minha opinião sobre certos assuntos, nomeadamente as ocupações agrícolas. Por isso, cheguei a fazer intervenções com as quais não concordava. Na maior parte das vezes não as podia evitar, mas como não podia pactuar com certas coisas, fazia o relatório indicando que houve ocupação sem que a pudesse evitar. Ou seja, também não valia a pena porque não havia ordens para actuar com força. O que me interessava mandar uma força ao local, se logo a seguir o Otelo dizia que não era para actuar? SR – Quando é que as coisas acalmaram em Setúbal? ARM – Este foi um processo demorado e a calmaria não regressou de imediato. As coisas foram melhorando aos poucos e parece-me que a partir de 25 de Abril de 1976, com a aprovação da Constituição da República e as eleições que se lhe seguiram, o país deu início ao processo de democratização. E isso notou-se num fenómeno que ocorreu com as muitas organizações de base, como as comissões de moradores existentes em Setúbal, e que eram nitidamente direccionadas. A partir do momento em que deixaram de ter uma força de fora a direccioná-las, elas deixaram de ter influência e começaram a desmembrar-se. Foi aí que surgiu muita gente que antes não podia falar. Depois aconteceu o inverso e passou a assistir-se à caça aos comunistas. Mas é preciso dizer que no meio disto tudo houve muito oportunismo. Cheguei a ver gente de Comissões de Trabalhadores a defenderem coisas que não tinham nada a ver com nada e que eram mero oportunismo. Aquele foi um período extraordinariamente difícil para todos e acho que a generosidade com que as pessoas se empenharam foi um pouco atraiçoada. SR – 25 anos depois, que balanço faz do período revolucionário? ARM – Faço um balanço positivo, embora ache que agora há a tendência de se pedir perdão por tudo e mais alguma coisa. Mas apesar dos maus momentos, estou convencido de que valeu a pena. Foi um período conturbado em que toda a gente pensava que as coisas iam correr mal, mas mais uma vez o povo português foi bom e se a História for contada de forma correcta, o 25 de Abril e o período revolucionário serão contados como coisas bonitas. Foi um povo que viu abrir uma porta e entrou de cabeça a dizer: “estou aqui para participar”. E só não participaram mais porque o PCP, estando fortemente organizado, cortou essa participação e deixou apenas acontecer aquilo que estivesse no âmbito das suas intenções. SR – Como é que vê o Portugal de hoje? ARM – Um dia destes estava a ouvir rádio e, num programa, perguntava-se que revolução falta fazer em Portugal? Digo que falta-nos fazer uma coisa muito difícil que é a revolução das mentalidades. Tem de ser feita uma grande aposta na educação logo desde o pré-escolar. Não somos gerações perdidas, somos gerações viciadas em hábitos que dificilmente se perdem, por isso, tem de haver uma mudança de mentalidade nas camadas mais jovens. |
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Entrevista de Pedro Brinca [email protected] |