(Em busca do encanto tranquilo e poético de Setúbal)
O Pedro andou a mostrar-me Setúbal. Cidade que tem fama de ser bela, uma pérola encastoada no azul profundo do Sado. Um diamante por lapidar, como me sussurrava ele, naqueles acessos de intimidade que já nos vão marcando os encontros. Lá fomos conhecer, então, essa extraordinária Setúbal, terra de Bocage e Luísa Todi, como ele gosta de referir, não sem um ponta de orgulho.
Mas o que ele me mostrou foi os arredores. Fomos, enlevados e românticos, até à Arrábida, que eu já conhecia levemente, desde aquele passeio com o Arlindo. Mas o Pedro levou-me a penetrar mais profundamente nela. Entrámos, de mãos dadas, como se fôssemos os primeiros seres do Paraíso, por uma vereda coberta de arvoredo, junto ao Convento Velho, em direcção à Mata Coberta, descemos por um trilho escondido até à Mata do Vidal, visitámos o espaço secreto e misterioso da Lapa de Santa Margarida, andámos, praia fora, enlaçados, pela areia aveludada do Portinho e descemos, com o ar puro da Arrábida a encher-nos os pulmões de vida e felicidade, ao imenso e luminoso vale que descansa, sereno, no sopé da Serra do Risco.
Depois, andámos por Azeitão, por alamedas cheias de arvoredo e ruas silenciosas, onde ainda se respira uma calma e um perfume do passado, por Palmela, com as suas ruas alvíssimas e o seu castelo magnífico, de onde se avista a imensidade verdejante dos vales do Tejo e do Sado.
Setúbal, como qualquer visitante acaba por perceber mal dê a primeira volta pela cidade, vale pela moldura de paisagem magnífica que a cerca. A fotografia, a cidade propriamente dita, não passa, infelizmente, de um amontoado de casario baço, desalinhado e deprimido. E é uma pena que assim seja, querido Diário. Porque Setúbal tem tudo para ser a mais bonita cidade do País.
Tem um rio magnífico, uma baía larga e suave com a linda península de Tróia em frente; tem uma frente ribeirinha de quilómetros, mas que asfixia lentamente, atulhada de sucata, de equipamentos portuários e de fábricas que vomitam para o azul do Sado líquidos malcheirosos, de cores iníquas, suspeitas; tem uma avenida imensa, frondosa, desafogada, que se cola a quase toda a frente ribeirinha, mas que está completamente divorciada do Rio; tem bairros históricos, de uma beleza poética admirável, completamente degradados, arruinados, humilhados por alumínios nas portadas e nas janelas e pela sujidade das ruas.
Que pena, querido Diário, que Setúbal não esteja à altura do paraíso que a envolve, que o negue e empobreça, porque Setúbal, Sado e Arrábida parecem realidades distintas, universos diferentes, entidades incompatíveis, que nada dizem uma à outra, degradação e elevação convivendo porta com porta, ignorando-se, afastando-se irremediavelmente.
Mas o Pedro, e todos os setubalenses, afinal, vivem na doce e enganadora ilusão de que a sua cidade pode continuar a ser uma parte da realidade espiritual e paradisíaca do Sado e da Arrábida. Que Setúbal pode continuar para sempre a viver dessa herança que lhe legou a Natureza. Como ele se engana. A herança está a ser delapidada, dia após dia, e a suprema riqueza que a geografia lhe ofereceu de mão beijada, vai-se afogando no mar oleoso e poluído das fábricas.
Para quem vem de fora, Setúbal, Sado e Arrábida já nada têm em comum. Sado e Arrábida, sim, fazem parte de um mesmo universo de beleza e harmonia. Mas a cidade, querido Diário, aquela Setúbal de Bocage e Luísa Todi há muito que se divorciou do esplendor que a envolve e lhe deu fama.
O Pedro, quando lhe digo tudo isto, mansamente, envolvendo-o em beijos e carícias, olha-me como se eu fosse uma extraterrestre. Acha que eu exagero, que sou pessimista, que não tenho os pés bem assentes na terra. E tenta convencer-me que o anel de sujidade que envolve Setúbal é o preço que temos de pagar pelo progresso e desenvolvimento das sociedades, pelo bem-estar dos povos e pelo avanço da civilização.
Não posso estar mais em desacordo com ele. Que me importa a mim esse progresso e esse bem-estar se corro o risco de perder o perfume da Arrábida, a carícia aveludada das areias de Tróia, a frescura límpida das águas do Sado e o encanto tranquilo e poético da cidade de Setúbal?
Que ganho eu com isso, querido Diário?
Lina