Edição Nº 128 • 12/06/2000 | |
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MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
(Trabalhadores da CUF aprovam nacionalização e saneamento de administradores) |
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Barreiro tomou o controlo operário Trabalhadores da CUF sanearam administração
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– Onde é que estava no dia 23 de Junho de 1975? Cardoso da Silva – Estava num plenário de trabalhadores da CUF do Barreiro, onde trabalhava. Fazia parte da Comissão de Trabalhadores e nesse dia houve um plenário muito bem participado onde aprovámos a nacionalização da empresa e o saneamento de alguns elementos da administração. Na CUF do Barreiro trabalhavam cerca de cinco mil pessoas interessadas em travar a possibilidade de se verificar uma contra-revolução por parte dos detentores do capital que estavam ligados ao regime anterior. A aprovação da nacionalização da empresa surgiu exactamente como uma forma de travar um eventual golpe contra a revolução de Abril, ou seja, retirar daquele pequeno grupo de famílias que detinham o dinheiro em Portugal, a capacidade de continuarem a gerir os trabalhadores da forma que pretendiam. E não nos podemos esquecer do facto da CUF do Barreiro representar dois factores importantes: a concentração do capital e a concentração da mão de obra. Estes dois pólos eram opostos e viviam em luta permanente porque a empresa sempre explorou muito os trabalhadores. SR – Antes do 25 de Abril a CUF era conhecida pela resistência à repressão exercida na empresa. Os saneamentos vieram como resposta a essa repressão? CS – A exploração dos trabalhadores tinha sido mantida através de forças militares, uma vez que dentro da fábrica havia forças da GNR armadas até aos dentes. A PIDE também intervinha na fábrica, mas a questão da polícia política não era só com a CUF Barreiro. O problema estendia-se a toda a vila do Barreiro onde a PIDE estava em força. E muitos dos trabalhadores sofreram na pele as consequências dessa repressão. Neste grupo repressivo entrava também a Legião Portuguesa que praticamente obrigava os trabalhadores a pertencerem ao movimento para poderem ter uma casa onde morar. Ou seja, o esquema estava tão bem montado que as pessoas estavam nas mãos do poder e da administração da empresa. Contudo as pessoas não se calavam e ao longo dos anos de ditadura continuaram a lutar e a promover greves. O 25 de Abril deu-se com este quadro de luta entre a administração que queria explorar os trabalhadores e estes que faziam tudo para o impedir. E este quadro alterou-se porque logo após a revolução os trabalhadores apoderaram-se da força do capital até então liderado por Jorge de Mello. A tal ponto que passaram a ter poder decisivo na gestão da empresa. Exemplo disso é a actual Casa da Cultura da Quimigal que existe graças aos trabalhadores porque estes impediram a administração de fazer daquilo um armazém de ferro. Outro exemplo é o da zona textil, onde se fabricava a juta, que foi preservada porque os trabalhadores opuseram-se veementemente a que se destruísse a zona da tinturaria. Isto dá para compreender até que ponto é que os trabalhadores tomavam medida enérgicas no controlo da gestão da CUF. Quando se deu o plenário para aprovar a nacionalização, os trabalhadores decidiram afastar pessoas da administração que não eram gratas ao processo e que, inclusivamente, poderiam criar problemas à gestão operária da empresa. SR – Os trabalhadores sanearam toda a administração? CS – Curiosamente saneámos apenas cerca de meia dúzia de pessoas. Mas o caso da CUF era muito especial, as coisas foram feitas com muito cuidado e bom senso para não provocar estragos na empresa que dava trabalho a cerca de cinco mil pessoas. Só se mexeu onde se devia porque os trabalhadores estavam muito politizados, eram conhecedores das coisas e tinham por trás a estrutura experiente do PCP. Aliás, a massa trabalhadora da CUF confundia-se com o PCP, de tal modo que esta era a maior célula do partido em tudo o que era empresa. E isso não é de espantar porque, para além de ser a fábrica com maior número de trabalhadores era a mais antiga do Barreiro, uma vez que a CUF tem perto de uma centena de anos. A questão dos saneamentos era uma questão perigosa, por isso tivemos muito cuidado. Sei que chegaram a ocorrer muitas reuniões nos Penicheiros, para se proceder aos saneamentos, mas o problema é que aquilo era muito desorganizado. E às tantas, corríamos o risco de sanear o Barreiro já que muita gente pertenceu à Legião Portuguesa. Contudo havia que lembrar que as pessoas foram obrigadas a isso e, por essa razão, não tinham nada que ser saneadas. Portanto, pegámos no processo e fizemo-lo com bom senso. Lembro-me que entre os administradores saneados estava um cunhado de Jorge de Mello, o engenheiro Frederico da Cunha, que agora é um dos donos da Quinta do Perú. Curiosamente quem acompanhou este saneamento foram quadros superiores da CUF, entre os quais eu me encontrava, enquadrados neste processo através da Comissão de Quadros integrada no Conselho Geral de Trabalhadores que unia todos os grupos profissionais ali representados. Depois do saneamento, passámos de uma Comissão designada para uma Comissão de Trabalhadores eleita. Esta era composta por três representantes dos quadros, um deles era eu, e representantes de todos os outros sectores da fábrica da CUF. E a CUF tinha gente de áreas muito diversas, basta dizer que o Amoníaco Português também pertencia à empresa. E isto deveu-se unicamente aos trabalhadores que, para dominarem politicamente a situação, decidiram promover a fusão das empresas adubeiras: a Sapec, o Amoníaco Português, a Nitratos de Portugal e a CUF. Com muito trabalho, conseguimos a fusão de três delas e isso resultou na constituição da Quimigal/Química de Portugal. Entretanto, por razões várias a SAPEC não quis entrar e ficou com 20% do mercado de adubos e nós ficámos com 80%. Ou seja, a Quimigal comandava o mercado todo. SR – O processo de saneamento ocorreu em simultâneo em todas as unidades do grupo CUF? CS – Não, a CUF do Barreiro iniciou o processo e depois comandou-o até ao fim. E isso explica-se pelo facto de ali se concentrar a maioria dos trabalhadores e pelo facto destes serem fortemente politizados. A sede, por seu lado, estava muito atrofiada por sofrer muito com a influência do patrão e dos seus maiores representantes, uma vez que eles estavam mais lá que no Barreiro. Mas de qualquer modo, os trabalhadores da sede tiveram um papel muito importante neste período. SR – Como é que as coisas correram após a decisão de sanear os administradores? CS – Os saneados tomaram logo conhecimento da decisão, uma vez que alguns deles estavam presentes no plenário. Eles ainda tentaram protestar, mas os trabalhadores insurgiram-se porque consideravam aquela atitude ofensiva. No dia seguinte eles já não voltaram à fábrica e a CUF continuou a funcionar sem problemas. De imediato, sentimos que havia necessidade de retomar o trabalho da administração, pelo que se decidiu arranjar nomes para administrarem a empresa. Então foram indigitadas pessoas como Vístulo de Abreu, Mota Guedes, Eduardo Catroga, que mais tarde foi ministro, Brito Apolónia que anos depois foi presidente da Câmara da Moita, e fui eu. Os trabalhadores decidiram que nós seríamos a Comissão Administrativa da CUF. Esta decisão foi levada ao Governo e aprovada em Conselho de Ministros. SR – Como é que decorreu a gestão da empresa neste período? CS – Sem grandes problemas, uma vez que contávamos com pessoas de larga experiência nesta matéria. A estratégia foi muito simples, a CUF era uma coisa enorme e complexa e, como no tempo dos Mello, o Vístulo de Abreu era o administrador delegado da empresa, e aliás muito bom, nós propusemos que fizesse parte desta administração. Assim, ele passou a presidente da Comissão Administrativa e com isso ganhámos muito. Especialmente porque tinha um grande ascendente sobre todos os quadros e chefes de divisão da CUF. Na altura do 25 de Abril, Eduardo Catroga não era administrador da empresa mas sim director financeiro e a sua experiência foi-nos muito preciosa nesta nova administração dos trabalhadores. Mota Guedes também ficou a administrar, a mim coube-me a área do consumo, rações e óleos, e o Brito Apolónia ficou com a parte dos adubos e dos químicos. SR – Então nunca se deu uma auto-gestão? CS – Nunca caímos nesse erro que até foi o responsável pela perda de algumas empresas do distrito nessa época. Nós fizemos as coisas com bom senso, de maneira a manter a fábrica e os postos de trabalho. Reunimos, discutimos e tomámos decisões conjuntas sempre com esse fim em vista. Claro que havia algumas forças políticas dentro da fábrica a puxarem para o outro lado, nomeadamente o MRPP e a UDP, que por vontade delas tinham rebentado com a CUF e dado cabo dos postos de trabalho. Contudo, os trabalhadores e o PCP estavam muito unidos e a irresponsabilidade acabou por não ir em frente. Embora estes dois partidos tivessem uma força muito reduzida em relação ao PCP dentro da CUF, por vezes conseguiam destabilizar e provocar distúrbios. Lembro-me que no 11 de Março queriam induzir a população a abrir o portão do posto da GNR dentro da fábrica e retirar de lá as armas. No 25 de Novembro, não houve grandes distúrbios e passámos o dia e a noite em reuniões. Lembro-me de ter ido aos fuzileiros com um conjunto de trabalhadores para saber o que se passava. Foi o comandante Albuquerque que nos recebeu, infelizmente mais tarde foi saneado e maltratado. Esta foi uma daquelas vergonhas que ocorreram na sequência do 25 de Abril e que nada tiveram a ver com o PCP mas sim por algumas pessoas que hoje andam por aí a dizer bazófias sem porem a mão na consciência. Na altura em que fomos saber o que se passava, o comandante Albuquerque sossegou-nos ao dizer que os fuzileiros não iam a lado nenhum porque se saíssem seria desastroso. Assim regressámos à CUF, fizemos as nossas reuniões políticas e fomos para casa. SR – O que é que os trabalhadores ganharam com esta nova administração? CS – Ganharam muitos direitos, mas o mais importante foi conquistado por altura da unicidade sindical, quando conseguimos verticalizar os sindicatos dentro da CUF. E isso foi muito importante porque a situação era muito grave, os sindicatos eram mais que muitos e aquilo era uma confusão em que ninguém se entendia. Os sindicatos mais fortes eram o dos Escritórios e o da Química e Farmacêutica e, neste processo de verticalização, foi delegado na Federação da Química e Farmacêutica a orientação de todo o processo sindical e de negociações com a administração. Mas estivemos sempre juntos porque os sectores estavam ali todos representados. SR – Esta nova conjuntura conseguiu assegurar o futuro da empresa? CS – A CUF era uma grande empresa a nível nacional e alguma importância no contexto europeu. Tínhamos uma grande carteira de projectos que, inclusivamente, tinha efeitos multiplicadores junto de outras fábricas. Do ponto de vista internacional a CUF era muito importante para o país porque, com a inflação diabólica que se verificava naqueles tempos, era o garante do Governo para conseguir créditos junto do Banco Mundial. Ou seja, a CUF passou a ser a garantia para os empréstimos internacionais que o Governo pedia. A empresa era, de facto, muito importante para o país e só se desmantelou graças às asneiras que os sucessivos governantes de direita fizeram. A nossa gestão durou até ao fim de 1976 sem grandes problemas, uma vez que quer Vístulo de Abreu quer Mota Guedes sabiam o que faziam. Por outro lado, Eduardo Catroga foi uma peça fundamental neste processo de gestão por causa das decisões financeiras que na altura tinham de ser tomadas para garantir o futuro da CUF. Foi nessa altura que saí da Comissão Administrativa para dirigir as empresas que a CUF tinha em Moçambique: a Socajú, a SICOM, e a Companhia Têxtil do Pua. Estive lá quatro anos e ia acompanhando o processo ao longe, conforme ia recebendo notícias. SR – Se esta administração funcionava bem, porque é que se extinguiu? CS – Extinguiu-se devido a alterações profundas na correlação de forças políticas. O PS ganhou as eleições e colocou gente de sua confiança na administração. A partir daí as coisas alteraram-se, embora os trabalhadores continuassem a ter muita força dentro da empresa, que já se chamava Quimigal. Quatro anos depois, quando cheguei a Portugal senti um choque enorme ao ver a empresa porque, entretanto, muita coisa tinha piorado. Embora os trabalhadores continuassem a ser respeitados, a postura da administração já não era a mesma. E apesar de termos continuado a levar à letra a lei que contemplava o controlo operário, eles escondiam-nos coisas e só ouviam os nossos pareceres debaixo de muita pressão dos trabalhadores. SR – Como é que uma empresa tão poderosa acabou por desapareceu anos mais tarde? CS – Uma das lutas que acabámos por não ver aceite foi a que se relacionava com os ácidos e metais. Como se sabe a CUF viveu sempre da exploração da pirite, que vinha de Aljustrel, daí fazia-se ácido sulfúrico e metais como o chumbo, ferro, cobre e zinco. Pensámos fazer o aproveitamento dos óxidos de ferro resultantes da queima da pirite e, assim, investimos numa grande fábrica para dar continuidade à linha da exploração integrada das pirites e os óxidos iam para a Siderurgia Nacional. Só que a Siderurgia nunca quis aceitar os óxidos, ou cinzas, porque os técnicos nunca o aceitaram. Por outro lado, o Champallimaud era casado com uma irmã de Jorge de Mello e as duas famílias não se davam lá muito bem. Depois disso, e por via da entrada de Portugal na Comunidade Europeia, os sucessivos governos começaram a destruir toda a nossa força de produção. Ao mesmo tempo, apareceu muito ácido sulfúrico nos mercados internacionais e, tal como fizeram com a Siderurgia e com a Lisnave, os sucessivos governos viram-se pressionados pela Europa e começaram a desmantelar a nossa capacidade de produção. O culminar foi em 1982, quando se deu a greve geral que levou à rua os trabalhadores da já então Quimigal. Ou seja, se os governos tivessem aceite a exploração integrada, que ainda hoje os trabalhadores defendem, a empresa não tinha sofrido o que sofreu. Depois veio o minério de Neves Corvo e a metalurgia do cobre mas também não o quiseram e o Governo PS impediu mais uma exploração integrada. Hoje a empresa não existe e a zona está transformada num parque industrial. SR – Considera a luta da CUF um exemplo nacional? CS – Nunca escrevi nada sobre aquela época porque o tempo não dava para mais, mas foi pena porque daquele luta há lições muito grandes a tirar em termos de movimento operário, do 25 de Abril e do próprio processo revolucionário. E nisto estiveram também todas as outras empresas do grupo CUF, com quem tivemos contactos muito íntimos ao longo desse tempo. Lembro-me que saíamos do Barreiro às cinco da manhã, visitávamos empresas do grupo pelo país todo e regressávamos no dia seguinte outra vez às cinco da manhã. SR – 25 anos depois valeu a pena o esforço que fez por uma empresa que acabou por desaparecer? CS – Quando voltei de África não me puseram na rua porque era complicado, mas puseram-me a trabalhar como se tivesse acabado de sair da faculdade. Aliás, isso aconteceu com muitas outras pessoas que participaram na luta da CUF até 1976. A partir daí fui muito maltratado até ao momento em que saí, em 1994, para assumir as funções de vereador na Câmara do Seixal. Mesmo assim, e mesmo sabendo que a empresa foi destruída, acho que valeu a pena toda a luta. Basta ler o livro “A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril/A Contra-Revolução Confessa-se”, de Álvaro Cunhal. A vida tem mudanças, ela evolui e esta não é uma situação acabada. O que se passa hoje não é um produto acabado da contra revolução, as forças existem e os trabalhadores também, pelo que mereceu e merece a pena continuar a lutar por uma sociedade mais justa. |
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Entrevista de Etelvina Baía [email protected] |