Edição Nº 129 • 19/06/2000 | |
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MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
(Trabalhadores da Sapec sequestram administrador e exigem intervenção do Estado) |
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Numa intervenção fracassada na Sapec Trabalhadores sequestram administrador
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– Onde é que estava no dia 23 de Junho de 1975? Virgílio Paulino Inácio – Estava na Sapec, em Setúbal, onde trabalhava. Nessa altura era presidente do Sindicato dos Químicos. Nesse dia assisti à acção desencadeada pelos trabalhadores, e decidida pela maioria dos cerca de mil funcionários, que tinha por objectivo solicitar a intervenção do Estado na empresa e sanear a administração. Nessa acção, os trabalhadores sequestraram o administrador, o belga Marc Velge, que esteve retido no escritório durante todo o dia. Contudo, as reivindicações dos trabalhadores acabaram por não ser aceites e as coisas morreram por ali. Não me recordo bem, mas o que aconteceu é que as pessoas desmobilizaram e o administrador da fábrica acabou por sair do escritório no dia seguinte. SR – Porque é que as reivindicações não foram aceites? VPI – Primeiro porque o Governo achou por bem não intervir numa fábrica de capital totalmente estrangeiro por achar isso perigoso. E até concordo, uma vez que isso poderia significar o fim da empresa e fazer dela mais uma empresa destruída como tantas outras que desapareceram durante o período revolucionário. Por outro lado o administrador Marc Velge não aceitou o saneamento e permaneceu no local. Estas duas posições levaram a que os trabalhadores recuassem na posição inicial e tudo voltou ao que era antes. SR – O que é que levou os trabalhadores a exigirem a intervenção do Estado e o saneamento do administrador? VPI – As pessoas viviam um período de revolução, queriam fazer coisas e alterar o que existia antes do 25 de Abril. Na Sapec passou-se o mesmo, os trabalhadores foram levados naquela onda de alterações que se vinha verificando, particularmente no sector dos químicos e adubeiros, dado que a CUF tinha acabado de entrar num processo idêntico. Mas a CUF era de capital português e tinha um peso enorme para o país, daí que o Estado tenha decidido intervir e nacionalizar a empresa. Mas ali nem toda a gente estava de acordo com as exigências dos trabalhadores que queriam tomar a administração da empresa, e um deles era eu. Não parecia a muitos trabalhadores que fosse correcto o que se pretendia fazer, uma vez que aquela empresa sempre nos foi muito chegada. Embora se trabalhasse muito, nunca demos por repressões dentro da fábrica e o clima de trabalho não era mau. E a prova de que não havia problemas com a política, antes do 25 de Abril, é o facto de, nas anos 60, eu ter sido preso por pertencer ao PCP e depois de saído da prisão o meu lugar continuava à espera na fábrica. SR – O facto de ter sido contra a ocupação da empresa quer dizer que era contra a política de nacionalizações? VPI – Eu era favorável às nacionalizações das grandes empresas, mas achava que as coisas tinham de ser feitas com calma e com gente preparada para isso. Nunca da maneira como alguns trabalhadores impreparados o tentaram fazer, de uma forma desordenada e à pressa. As nacionalizações são positivas desde que o Estado intervenha para gerir de forma correcta. Mas isso eram coisas naturais num processo revolucionário como aquele que o país viveu, onde as pessoas cometiam alguns erros de forma involuntária pelo facto de quase nenhum de nós ter experiência e poucos serem esclarecidos e politizados. Saímos de anos de ditadura e as pessoas queriam era mudar o estado de coisas, fazendo-o com a melhor das boas vontades. SR – Depois deste episódio, como é que administrador e trabalhadores se encararam no dia seguinte? VPI – Não ocorreu problema algum nem ouve qualquer represália sobre os que tentaram o saneamento. Um dos trabalhadores saiu, mas isso teve a ver com o facto de não se ter dado bem no trabalho, foi uma opção pessoal e nada teve a ver com a tentativa de ocupação. Claro que o administrador ficou magoado com as pessoas durante uns dias mas a fábrica continuou a laboração normal com todos os que lá estavam a trabalhar. Lembro-me muito bem que as pessoas eram todas muito chegadas e tínhamo-nos quase como de família. Para além disso, a empresa tinha começado a melhorar as condições de trabalho que, nessa altura, eram muitíssimo melhores do que no início da sua implantação, nos anos 30. Pelo caminho, as unidades foram sendo substituídas e o trabalho foi melhorando com novas tecnologias. E as coisas melhoraram de tal forma que os trabalhadores que antes tinham de percorrer quilómetros a pé de Setúbal para irem para fábrica viram construído um bairro dentro do próprio complexo fabril. SR – A tomada de decisões dos trabalhadores teve a influência política de algum partido? VPI – Naquela altura não havia grandes tendências partidárias na fábrica, embora estivesse lá gente do PCP, do MRPP, da UDP e da LUAR. Lembro-me que apesar das várias tendências políticas de cada trabalhador e de cada membro da Comissão de Trabalhadores, nunca se verificaram lutas pelo poder dentro da fábrica. SR – Pode dizer-se que o processo revolucionário não afectou muito a Sapec? VPI – De certo modo não afectou grandemente, uma vez que a empresa continuou a laborar de forma relativamente normal, embora de acordo com as flutuações que a economia do país sofria naquela época. Nunca nos faltaram encomendas, nem mesmo depois da CUF ter feito o acordo com as adubeiras para se transformar na Quimigal. Nós ficámos de fora desse grupo de adubeiras nacionais, uma vez que tínhamos capital exclusivamente estrangeiro, e ficámos com cerca de 20% do mercado contra os cerca de 80% da Quimigal. Mas como a família Velge era um grupo empresarial muito forte e tinha várias empresas espalhadas pelo mundo, nunca nos faltou carteira de clientes nos adubos e nos químicos. SR – O que é que trabalhadores ganharam com a revolução? VPI – Ganharam aumentos salariais, mais condições de vida e melhores condições de trabalho. Recordo-me muito bem que a fábrica inicial era muito primitiva e que, com o tempo, as coisas foram mudando para melhor. Houve uma altura em que o pessoal que mexia com os químicos não tinha sítio para tomar banho e, quando lá fizeram um espaço para isso, tinha de ser com água fria. Recordo-me que, para aguentar a água fria o pessoal tinha de aquecer primeiro, varrer e correr por ali para transpirar e poder suportar as temperaturas. Depois foram construídos os balneários que depois vieram a ter esquentadores. Entretanto, a poluição de algumas unidades foi diminuindo e as pessoas foram ficando menos expostas aos químicos. SR – Como é que os trabalhadores da Sapec viam Setúbal durante o período revolucionário? VPI – Foi uma época fantástica que mobilizou todo o distrito. Para além de estar no Sindicato dos Químicos e trabalhar na Sapec, ajudei na Reforma Agrária e participei em lutas nas cooperativas agrícolas. Lembro-me de reuniões em que um partido dizia uma coisa e outro dizia outra, mas recordo-me também de ter visto gente a defender o que o seu partido dizia embora não concordasse. Até 1976, Setúbal era um caldeirão de emoções e de contestações, mas a população teve bom senso e conseguiu aguentar os embates, nomeadamente o 11 de Março, o Verão Quente e o 25 de Novembro. Foram anos de muitas lutas e de uma grande aquisição de experiência política por parte da população. SR – 25 anos depois, valeu a pena passar pelas convulsões da revolução? VPI – Valeu a pena porque Portugal mudou muito, valeu a pena porque, apesar de tudo, os trabalhadores vivem melhor do que viviam antes de 1974. Hoje em dia já não se vai para a Sapec a pé e descalço. Só é pena que quem passou pela experiência e recebeu ensinamentos da revolução não consiga transmitir essas experiências aos mais novos, por forma a que não se cometam erros do passado. Hoje em dia, as novas gerações não estão muito receptivas a isso, mas era importante que as pessoas continuassem atentas, no sentido de garantirem os seus direitos enquanto cidadãos. |
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Entrevista de Etelvina Baía [email protected] |