[ Edição Nº 130] – “O Diário de Lina” – parte XXVI.

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Edição Nº 13026/06/2000
“O Diário de Lina” – parte XXVI (por Salvador Peres)
Produção de Arte Dabliu, Produtos Culturais, Lda.

(Vou casar sem dar cavaco a ninguém!)

Fui apresentar o Pedro à minha família. Foi na passada Terça-feira. Lá estava a famelga mais chegada: os meus pais, o meu irmão e a minha avó materna, que está a viver connosco há já uns meses, desde que o meu avô, depois de uma última aventura com uma mulher trinta anos mais nova que ele, lhe deu um ataque de coração e morreu. Só lá faltava o Arlindo para compor o ramalhete.

O Pedro estava descontraído, como sempre. Quem estava nervosa era eu. E tinha muitas razões para isso, conhecendo eu a minha família como conheço. Chegámos o mais próximo possível da hora do jantar para não dar espaço a grandes conversas. Sentados à mesa e de boca cheia tudo seria mais fácil. Enganei-me.

Para começar, a minha mãe atrapalhou-se com o jantar. Como achou que o repasto era de cerimónia resolveu fazer uma coisa complicada e deu tudo para o torto. Quando chegámos, um fumo espesso com forte cheiro a peixe incinerado, cobria já a quase totalidade da sala. Na cozinha ouvia-se um ruído surdo de luta, com a voz da minha mãe e da minha avó berrando três tons acima da do meu pai.

Quem veio abrir a porta foi o meu maninho. Assim que olhou para o Pedro ia-lhe dando um desmaio. Quando apresentei o Pedro, “a minha maninha” abraçou-se a ele e parecia que nunca mais o queria largar. O Pedro achou piada mas eu fiquei logo de trombas e não me coibi de dizer:

– Tó, estás-te a passar! Vê lá se tens maneiras. E, já agora, que tal se fosses vestir qualquer coisa masculina, para variar?

A minha avó veio logo a correr cumprimentar o Pedro:

– Lina, que lindo rapagão que tu aqui tens. Este tem ar de homem, não é como o outro, como é que ele se chamava, Arlindo, não é? Este sim, olha-me só para esta peitaça!

– Ó avó!


– interrompi, orgulhosa, mas incomodada com o despropósito –, não é preciso apalpar o Pedro como se ele fosse um melão! Não lhe basta olhar?

Nisto, entra a minha mãe, com um ar esgazeado, mãos esfregando o avental sujo de gordura:

– Filhinha, querida, vê lá tu que o pargo se incendiou. O teu pai, com a mania que sabe cozinhar, em vez de vinho branco, regou o peixe com álcool etílico: deu-se uma explosão, filha, e a tua avozinha saiu disparada contra o lava-loiça. Capaz de se finar ali. Ai filha, o teu pai está cada vez pior.

E vendo o Pedro:

– Então este é que é o teu noivo?

– É sim, mãe. É o Pedro. Já lhe falei dele, lembra-se?

– disse eu, enfadada com o ar esgrouviado da mamã.

– Leva-o para a sala, filha. O teu pai já lá vai ter, assim que mudar de roupa. Imagina como é que ele ficou, Lina, quando tentou apagar o fogo ao pargo. Até nos ouvidos tem pedaços de peixe! Quando abriu o forno, queimou as unhas, o lado esquerdo do cabelo desapareceu e largou fogo às pegas de cozinha que tinha enfiadas nas mãos. O teu irmão já telefonou para a Telepizza. Não tarda temos aí o jantarinho, querida.

O Pedro ria, derretido com a avó, que, enlevada com os bíceps dele, já tinha deixado cair dois pratos e tropeçara por três vezes no fio do telefone. Depois, o meu pai apareceu quase ao mesmo tempo que retinia a campainha da porta anunciando o homem da Telepizza. Já à mesa, o meu pai começou a partir o resto da loiça:

– Então, o senhor Arlindo que idade tem?

– Papá, o meu namorado chama-se Pedro. O Arlindo era o outro. Acabámos tudo a semana passada, lembra-se?

– Ah sim! Ó Fernanda

– disse ele dirigindo-se à minha mãe -, que idade tinha eu quando te pedi em casamento?

– Já não me lembro bem, mas eras muito mais velho que eu!

– informou a minha mãe.

– A idade não conta quando há paixão

– disse o meu irmão, acalorado, arregalando os olhos para o Pedro. – O João Maria, por exemplo, tem mais dez anos que eu e não se nota diferença nenhuma.

– E o meu amigo o que é que faz na vida?

– perguntou o meu pai ao Pedro.

– Sou taxista.

– Então, não te lembras

– virou-se a minha mãe para o meu pai -, o Pedro foi aquele que fingiu que violava a nossa Lina no táxi, e, afinal, era para os apanhados da TVI? O que eu me ri!

– Quer então dizer que o amigo Arlindo tem um táxi seu

– disse o meu pai, distraído, a trinchar uma fatia de pizza.

– Papá! Este não é o Arlindo, é o Pedro!

– Mas afinal quem é o dono do táxi

– perguntou a minha avó, atarantada -: o Arlindo ou o Pedro?

– O táxi não é meu

– informou o Pedro. – Pertence a uma cooperativa. Eu ganho à percentagem.

– E então você simulou a violação da minha mana no táxi de uma cooperativa, seu malandro?

– gingou-se o Tó, rindo.

– Isso foi só a brincar… Foi para os apanhados

– defendeu-se o Pedro. – Tenho muito respeito pela Lina.

– A brincar, a brincar acabou por ser apanhada, a minha querida menina

– disse a minha mãe, romântica, já toldada por três copos de vinho.

– E quanto é que o amigo Arlindo tira por mês?

– perguntou o meu pai.

– Isso depende

– informou o Pedro. – Mas estou a pensar dar umas aulas de bodyboard, em Tróia, no próximo Verão. Sempre vem mais algum.

– Há desconto para futuros cunhados?

– perguntou o Tó, com um brilhozinho nos olhos.

Farta já da conversa, anunciei, de rajada:

Vamos casar no mês que vem. Andamos à procura de casa em Setúbal. Já arranjei emprego no Centro Comercial do Jumbo, numa loja de electrodomésticos. Até casar fico na casa da Sónia.

A minha mãe desatou a chorar e emborcou mais um copo de vinho. O meu irmão foi abrir a porta ao João Maria que o vinha buscar para irem ao cinema. A minha avó, sem perceber muito bem o que se estava a passar, insistia:

– Mas a quem é que pertence o táxi, afinal?

E o meu pai, já com os olhos na Bola, ainda perguntou ao Pedro:

– A quanto é que está agora a bandeirada?

Saí porta fora, empurrando o Pedro, que parecia estar a gostar do ambiente, com uma decisão bem vincada na minha cabeça: vou casar sem dar cavaco a ninguém da família. Chega, querido Diário!

Lina

(Continua)

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