Edição Nº 130 • 26/06/2000 | |
MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
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(Funcionários da Junta Autónoma do Porto de Setúbal criam Conselho Revolucionário dos Trabalhadores) |
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Porto de Setúbal cria Conselho Revolucionário Trabalhadores ao lado dos Soldados Unidos No dia 4 de Julho de 1975, os funcionários da então Junta Autónoma do Porto de Setúbal decidiram criar o Conselho Revolucionário dos Trabalhadores à imagem dos SUV/Soldados Unidos Vencerão. O objectivo era criar um grupo de intervenção na vida política do concelho e seguir as regras do COPCON. Rogério Severino, conhecido jornalista setubalense, na altura funcionário administrativo da JAPS, foi o principal impulsionador do CRT que acabou por se extinguir com o 25 de Novembro. Bastante crítico em relação ao percurso que o processo revolucionário tomou, Rogério Severino continua a defender ideias de extrema esquerda e a garantir que a única coisa de que se arrepende foi ter colaborado no saneamento do então director do porto que diz ter sido uma vítima da revolução. |
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– Onde é que estava no dia 4 de Julho de 1975? Rogério Severino – Estava na Junta Autónoma do Porto de Setúbal, onde era funcionário administrativo. Nesse dia os trabalhadores de todos os sectores, desde os das gruas aos indiferenciados passando pelos poucos administrativos, decidiram criar uma estrutura designada Conselho Revolucionário dos Trabalhadores, conhecido por CRT. Era uma altura em que Setúbal vivia muito a agitação do período pós 25 de Abril e desde cedo a JAPS se destacou na mudança ao ter tido uma Comissão de Trabalhadores por eleição directa. O CRT não tinha nada a ver com a Comissão de Trabalhadores, uma vez que não se ocupava das reivindicações laborais específicas da JAPS. SR – De quem partiu a proposta? RS – Eu avancei com a criação e as pessoas aceitaram. O CRT foi criado a partir da existência do SUV/Soldados Unidos Vencerão, e como nós não tínhamos soldados criámos um conselho de trabalhadores com a mesma missão dos SUV e fazíamo-nos representar em diversas manifestações e acções em Setúbal. Ou seja, os elementos que criaram o CRT eram sensivelmente os mesmos que criaram a Comissão de Trabalhadores mas cada um tinha objectivos próprios. SR – Os trabalhadores intervinham na vida política e nas acções da sociedade civil de Setúbal? RS – Intervínhamos bastante, daí que tenhamos sido o primeiro serviço público a ter um CRT e uma Comissão de Trabalhadores. Lembro-me que reuníamos frequentemente nas primeiras instalações do Círculo Cultural de Setúbal e que, na sequência da nossa atitude interventiva, a primeira manifestação de funcionário públicos ocorrida em Setúbal foi precisamente promovida pelos trabalhadores da JAPS. Foi nos finais de 1974 e reuniu umas boas centenas de pessoas frente o coreto da avenida Luísa Todi. Por outro lado, o CRT participava em todas as manifestações de Setúbal – e normalmente eram várias por semana – e era responsável pela elaboração de comunicados dentro dos princípios defendidos pelo COPCON. Os trabalhadores aceitavam isso na medida em que, naquela altura, ainda não havia muita definição de partidos políticos a que cada um deveria pertencer. Terá sido a partir deste período que as pessoas começaram a conhecer o leque de partidos que na altura existiam. Na JAPS éramos normalmente pessoas de esquerda, nomeadamente os trabalhadores que estavam nos órgãos de produção onde se veio a verificar uma forte presença de trabalhadores comunistas. SR – Com toda essa agitação, havia tempo para trabalhar? RS – Sempre trabalhámos e a JAPS nunca foi prejudicada com as nossas actividades, uma vez que tudo o que fazíamos era fora das horas de serviço. Ou seja, só depois das seis da tarde é que assumíamos as nossas actividades no CRT. SR – Internamente, como é que os trabalhadores viveram este período? RS – Com alguma serenidade, embora tivessem ocorrido alguns conflitos internos. Especialmente em 1975, na altura em que fomos aconselhados pela CGTP a sanear o então director do porto. Não havia um motivo plausível para sanear o director, já que embora se tratasse de uma pessoa do antigo regime, não tinha qualquer conflito com os trabalhadores. No entanto, por princípio, isso tinha que ser feito. Foi nessa altura que se verificaram alguns conflitos internos entre os que apoiavam e os que não defendiam o saneamento. No final, acatámos a decisão mas não se pode dizer que a terminologia saneamento seja a mais correcta, uma vez que o director do porto acabou por subir de categoria passando de Setúbal para Lisboa. SR – Pode dizer-se que o então director do porto foi uma vítima da revolução? RS – Tendo em conta que ele não podia despedir nem aumentar ou baixar o salário de ninguém porque os vencimentos eram os da Função Pública, ele não tinha grande intervenção junto dos trabalhadores. Por outro lado, grande parte deles gostava do director do porto. Assim, pode considerar-se que ele foi uma vítima do processo. A minha posição política e as minhas ideias têm-se mantido coerentes, contrariamente a determinadas pessoas que normalmente cedem à alteração das suas concepções políticas. Sei que sozinho não mudo o mundo mas mantenho, intransigentemente, todas as ideias de extrema esquerda que sempre defendi e de nada me arrependo. Talvez, em termos de acção política, o único peso que possa ter na consciência seja a colaboração neste saneamento. Deve ser a única coisa de que me possa arrepender e hoje não o faria. SR – A que partido pertencia, na altura? RS – A minha actividade política foi desempenhada num só partido e quando ele se extinguiu, extinguiu-se também a minha actividade. Eu era do MSP, o Movimento Socialista Popular que estava integrado no Partido Socialista. Na altura o PS tinha dois movimentos independentes: o MSP, dirigido por Manuel Serra, e o GAPS/Grupo Autónomo do Partido Socialista, dirigido por João Soares. O MSP resultou da primeira cisão no PS, ocorrida no primeiro congresso em liberdade. SR – A acção dos trabalhadores da JAPS foi condicionada ou pressionada por partidos políticos? RS – A maioria dos trabalhadores estava ligada ao PCP, era a altura em que muitos tinham simpatia pelo PS mas ninguém confessava porque não lhes erra conveniente. Nunca se deu por qualquer partido puxar para si a luta dos trabalhadores da JAPS porque nenhum de nós deixava que isso acontecesse. SR – O que é que os trabalhadores da JAPS ganharam com o processo revolucionário? RS – Como serviço público, estando ligado ao Ministério do Equipamento e depois ao dos Transportes, tinha directrizes nacionais a seguir e não houve grandes mudanças precisamente por se tratar de uma entidade pública. Mas a outros níveis verificou-se uma mudança porque passou a haver uma maior abertura por parte dos trabalhadores. Neste processo destacou-se a acção dos administrativos – o chamado sector médio-burguês – e que, estranhamente, eram quem definia as grandes directivas para a acção dos trabalhadores da JAPS. Isto ocorria porque era nos administrativos que se encontravam as pessoas com maior consciência política e, por outro lado, porque normalmente todos os trabalhadores aceitavam essas directivas. SR – Como é que a cidade via a intervenção dos trabalhadores da JAPS? RS – Setúbal via a nossa acção com muita admiração precisamente porque era quase impensável que um funcionário público tomasse posições daquelas. E na sequência da nossa atitude interventiva, outros serviços públicos começaram a desencadear lutas. Houve até uma altura em que comissões de trabalhadores de entidades privadas começaram a consultar-nos e a pedir-nos opinião sobre as medidas a tomar. SR – Porque é que o CRT se extinguiu a 25 de Novembro? RS – De facto, acabou com o 25 de Novembro porque com esta reviravolta as pessoas começaram a ter receios e a afastar-se da luta. Foi um golpe de direita e teve o demérito de criar algum sentimento de receio junto dos trabalhadores e os do porto de Setúbal não foram excepção. No meu caso, após o 25 de Novembro estive uns tempos retirado da vida política. Ao mesmo tempo que trabalhava na JAPS era também jornalista e, no dia do golpe, com Setúbal em Estado de Sítio, fiz sair um número ilegal do jornal Nova Vida. Os militares andaram à minha procura e eu tive de me retirar por uns tempos. Mais tarde fui amnistiado por um decreto que tinha saído três dias antes de ter sido ouvido em tribunal. Foram coisas como esta que fizeram os trabalhadores pensar duas vezes e recear as consequências do 25 de Novembro. SR – O que é que mudou na JAPS a partir desta data? RS – O CRT extinguiu-se de imediato e a Comissão de Trabalhadores suspendeu a actividade durante algum tempo. Quando retomou o trabalho, os membros passaram a ser eleitos com as regras formais bem ao estilo da democracia burguesa. Ainda fiz parte de uma comissão mas depois desisti. Nessa altura nasceu o sindicato do sector que ainda hoje está em actividade. Assim, passou a haver mais actividade sindical e foi nessa altura que fui eleito delegado sindical na JAPS. SR – Ficou desiludido com os resultados do 25 de Novembro? RS – Com as minhas convicções não aceito as regras de uma sociedade burguesa, mas sei que tenho de me adaptar a elas. Os trabalhadores perderam muita da sua capacidade de reivindicação. Não perderam as regalias mas nem sempre elas são aquilo que fazem um homem sentir-se realizado. Perderam muita capacidade de reivindicação e de intervenção, quer nos serviços públicos quer nos privados porque as pessoas começaram a sentir medo. O 25 de Novembro foi uma data negra e lamentável para o processo revolucionário. O corte na capacidade de luta dos trabalhadores e, mais tarde, a integração de Portugal na União Europeia, fez com que Portugal tivesse perdido muito. Começou a verificar-se também a redução das actividades das comissões de moradores, como foi o caso de Setúbal que em tempos foi uma das cidades com maior intervenção nesta matéria. Hoje contam-se pelos dedos de uma mão as comissões de moradores existentes. E se elas existissem, acredito que hoje a cidade teria outra configuração. E se considerarmos que o autodenominado PS, que se considera um partido de esquerda, extinguiu as comissões e só reconhece as que têm estrutura burguesa onde as pessoas não têm capacidade de intervenção, conseguimos ver que a cidade perdeu muito com isso. SR – Do seu ponto de vista, Abril não se cumpriu? RS – Não, embora muito tenha mudado entretanto. Abril trouxe mais capacidade material às pessoas, aburguesou mais o povo português, americanizou-o de forma negativa mas em termos de enriquecimento humano penso que ainda não nos deu aquilo que poderia dar. Não digo que estou desiludido mas se agora se desse uma revolução com o fim de mudar a sociedade, eu teria o mesmo comportamento e estaria presente em todos os movimentos. Contudo participaria com uma experiência diferente e por isso não cometeria alguns exageros. SR – Acha que Portugal necessita de uma nova revolução? RS – Acho que seria necessário um motivo de correcção ao 25 de Novembro porque esta data foi o principal desvio dos objectivos da revolução e significou o ponto final no 25 de Abril. O que se passou a 25 de Novembro nada teve a ver com o espírito do Movimento das Forças Armadas e do 25 de Abril de 1974. |
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Entrevista de Etelvina Baía [email protected] |