(A intangível essência do Chanel n.º 5)
Querido Diário,
Surgiram os primeiros problemas com a minha amiga Sónia. É natural. Duas mulheres solteiras a partilharem o mesmo espaço, muito amigas, é certo, mas diferentes em muitas coisas, acaba sempre por dar faísca. As desavenças nunca começam por grandes questões, como se sabe, mas sim por coisas simples e quase insignificantes. Coisas que não valorizamos mas que vão contribuindo para encher o saco. Depois, um dia, quase sem darmos por isso, rebenta a bronca, entorna-se o caldo e partimos a loiça toda. É como no casamento, dizem.
As coisas já não andavam lá muito bem desde que eu cismei que a Sónia tinha um fraquinho pelo Pedro. Posso estar a exagerar, mas a verdade é que ela faz questão de tomar sempre o partido dele nas discussões que temos à frente dela. Nessas ocasiões deixa rolar os olhos na direcção dele com um ar de fêmea fatal, disponível e insaciável. Fico fula, mas não digo nada. Sei bem como são as mulheres. Nem as melhores amigas respeitam quando se trata de conquistar as graças de um macho do calibre do Pedro. Está-nos no sangue. Não há nada a fazer. Mas, que raio!, a Sónia é a minha melhor amiga e tem um namorado lindo, chamado Sandro, que a adora e lhe faz todas as vontades. A verdade é que o Sandrinho, sorrateiramente, que a Sónia não é para brincadeiras, lá me vai atirando o olhinho também. Os homens são assim mesmo, não hão-de mudar nunca.
Bem, estou a divagar, porque o que eu queria mesmo era falar da gota que fez transbordar o copo e que me levou a tomar uma decisão drástica, de consequências completamente imprevisíveis para mim. Eu e a Sónia somos diferentes, já o disse. Eu sou arrumada, disciplinada, gosto de ter um lugar para as coisas e cada coisa no seu lugar. O meu quarto é o espelho da minha personalidade: arejado, limpo e organizado. A casa da Sónia, pelo contrário, é a antecâmara do Inferno: caótica, cheia de tralha por todos os lados, com pó a acumular-se em recantos onde jamais alguém conseguirá chegar, um labirinto onde é impossível encontrar seja o que for. Mas eu tudo suportava, até porque a Sónia me estava a fazer o favor de me deixar morar na casa dela enquanto eu não encontrava uma casa para mim e para o Pedro.
O dia lá em casa começa normalmente com a Sónia aos gritos consigo própria, desorientada, sem conseguir encontrar a roupa que decidiu vestir, os sapatos que decidiu calçar, a mala que decidiu usar e os cremes e perfumes com que se decidiu embelezar. Então, com o maior desplante, entra pelo meu quarto, o meu mais íntimo santuário, e desata a pedir-me roupa, calçado, perfumes e outros acessórios emprestados, abrindo gavetas, remexendo em prateleiras, bisbilhotando em caixas, espreitando debaixo da cama. Um sufoco, querido Diário! Depois de conseguir o que quer, sai do quarto deixando atrás de si um rasto de desarrumação e uma antecipação do caos que governa o espaço dela.
Ontem, encharcou-se com o meu Chanel n.º 5, da Dior, que o João (lembras-te dele, querido Diário?) me ofereceu e que eu tenho poupado para ocasiões especiais. E saiu, mais com ar de quem ia para um encontro amoroso do que para o jornal onde trabalha, em Lisboa. Ao fim da tarde desse dia fui encontrar-me com o Pedro, à beira-mar, ali junto ao embarcadouro dos barcos para Tróia. Assim que ele se aproximou de mim e me beijou recebi em cheio, como uma bofetada, o aroma inconfundível do Chanel n.º 5. Do meu Chanel n.º 5. Do Chanel n.º 5 que emprestei à minha “amiga” Sónia! Não imaginas os pensamentos que me cruzaram o espírito naquele momento, querido Diário. A minha vontade era pôr logo ali tudo em pratos limpos. Mas contive-me. Pensei que era tempo de ser má e hipócrita como os outros.
No dia seguinte, um Sábado, a Sónia teve de ir para Lisboa cobrir a chegada de mais um futebolista estrangeiro para o Sporting e pediu-me para avisar o Sandro, quando ele aparecesse lá por casa, como era hábito aos sábados de manhã, de que ela não podia almoçar com ele. Quando o Sandro chegou, por volta das onze da manhã, encontrou-me de banho tomado, penteada e perfumada com o meu Chanel n.º 5, metida numa camisa de noite de tecido leve, macio e quase transparente. O Sandro ficou atrapalhadíssimo quando me viu. Mas eu estava decidida e nem o deixei falar. Passados segundos estávamos já intensa e apaixonadamente envolvidos.
Agora, o Sandro pode, se quiser, gabar-se de ter sido o primeiro homem a sério da minha vida, porque, querido Diário, não me envergonho de te dizer que me entreguei completamente a ele. A virgindade, que eu tão ciosamente guardava, sabe Deus com que sacrifício, para a noite de núpcias com o Pedro, foi-se num ápice. Não estou nada arrependida. O Sandro, agora, está muito confuso, mas eu já lhe disse que não queria nada dele.
O que eu queria mesmo era confrontar aqueles dois, a Sónia e o Pedro, com os efeitos milagrosos do Chanel n.º 5. Agora, espero pacientemente que a intangível essência do perfume faça o seu trabalho. Eu é que já estou por tudo, decidida a ser tão hipócrita e má como eles foram comigo. E não vou arredar pé de casa da Sónia nem acabar com o Pedro, até ver.
Lina