[ Edição Nº 133 ] – Ocupação do Asilo Paula Borba, em Setúbal.

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Edição Nº 13317/07/2000
25abril2-4775186

MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO
25 anos depois

(Ocupação do Asilo Paula Borba, em Setúbal)

Para acabar com maus tratos sobre os idosos

Extrema-esquerda ocupou Asilo Paula Borba

          O alerta surgiu de dentro do Hospital de Setúbal quando se soube que os idosos do Asilo Paula Borba iriam ser obrigados a comer fígado estragado. Foi a ‘gota de água’ para a população e os partidos de esquerda que há anos ouviam falar de maus tratos à terceira idade internada neste estabelecimento de solidariedade social pertença da Santa Casa da Misericórdia de Setúbal. A ocupação deu-se no dia 7 de Julho com a participação de Zeca Afonso. O homem do alerta que provocou a ocupação foi Avelino Fajardo que, 25 anos depois, recorda a força da esquerda e as perseguições do PCP, numa luta que terminou com a devolução do asilo à Misericórdia de Setúbal.


Setúbal na Rede

Onde é que estava no dia 7 de Julho de 1975?

Avelino Fajardo

– Estava a trabalhar no Hospital Distrital de Setúbal, onde fazia trabalhos de manutenção. E foi aí que, através de enfermeiros e funcionários ligados às duas instituições, tive conhecimento de que as freiras do Asilo Paula Borba iriam dar fígado estragado aos velhotes no almoço de dia 7. Já era conhecida a forma como tratavam as pessoas neste asilo da Misericórdia, pelo que aquela foi a ultima gota na paciência dos populares e dos partidos de esquerda.

Por isso resolvi alertar a LUAR, de que eu também fazia parte, eles puseram as funcionárias do asilo a par e toda a gente ficou revoltada. Então foi decidido ocupar as instalações e acabar com os maus tratos feitos com o conhecimento das freiras que tomavam conta dos idosos.

SR

Quem ocupou as instalações?

AF

– As coisas foram feitas de dentro para fora, com as empregadas da cozinha a iniciarem uma greve e o pessoal da LUAR a apoiar a luta do lado de fora. A nossa maior força foi o Zeca Afonso que se envolveu directamente nesta acção. Logo após o 25 de Abril as pessoas começaram a abrir a boca e a denunciar a forma como as coisas corriam no asilo, por isso toda a gente sabia o que acontecia, desde a vacaria de onde vinha o leite para os hospitais e para o asilo até aos produtos que entravam e saiam. Por isso sabíamos que as freiras tratavam-se muito bem e que as despensas estavam cheias, mas também sabíamos que os velhotes não eram tratados com deviam e isso começou a revoltar toda a gente.

Depois de eu ter avisado sobre o fígado, o pessoal organizou-se e ajudou as empregadas que no dia 7 acabaram por promover a ocupação do edifício. Eu estava a trabalhar hospital e por isso não estive presente desde o início, contudo recordo-me de que à tarde já lá estava. A primeira coisa a ver-se foi o fígado, que as pessoas retiraram-no de dentro da cozinha e puseram-no lá fora junto ao muro para que a população visse o estado em que estava aquilo que os velhotes eram obrigados a comer. E a revolta foi tanta que a população e os estudantes da Escola Industrial apareceram de todo o lado para nos ajudar.

SR

– Como é que as freiras reagiram?

AF

– As freiras foram apanhadas de surpresa e levadas para outro local. Não houve grandes reacção porque elas também sabiam que não tinham hipótese. Naquela altura a população reagia de imediato aos problemas e mobilizava-se com muita facilidade, por isso as freiras sabiam perfeitamente que não tinham qualquer hipótese de protestar. Aliás, naquela altura as pessoas ligadas ao antigo regime andavam mudas e caladas.

Contudo, houve um episódio algo assustador, protagonizado pelo leiteiro que não funcionava lá muito bem da cabeça. Ele apareceu à porta do asilo com a carroça em que transportava o leite e decidiu atacar o Zeca com uma machada. A sorte foi a reacção rápida do Zeca senão tinha havido problemas. Entretanto, o pessoal interveio e as coisas ficaram por ali. No meio daquilo tudo, os velhotes reagiram muito bem, pois sabiam que as coisas agora só podiam melhorar e que deixariam de ser maltratados a torto e a direito.

SR

– Como é que o asilo passou a ser gerido?

AF

– Nesse mesmo dia realizámos uma assembleia com trabalhadores e população e foi daí que saiu um grupo de trabalho para gerir a casa. A assembleia elegeu dois comunistas como administradores e o pessoal continuava dentro das ocorrências e a par de tudo o que se decidia.

SR

– Enquanto promotora da ocupação, a LUAR sentiu-se ultrapassada pelo PCP?

AF

– De certa maneira estávamos a ser ultrapassados. O PCP é que tinha a força e capacidade organizativa, por isso foram os comunistas que se evidenciaram logo na organização das coisas. A gestão do asilo passou a ser feita por eles, embora costumassem pedir o parecer dos trabalhadores. Os partidos que ajudaram na ocupação, como foi o caso da LUAR e do PRP, acabaram afastados do processo mas decididos a permanecerem atentos a tudo o que se passava. Entretanto a gestão correu muito bem apesar da direita nunca ter desistido da posse do asilo.

Durante anos o PPD tentou desmobilizar o pessoal e lembro-me que na gestão seguinte chegaram mesmo a levantar um escândalo a propósito de dinheiros para desacreditar o pessoal. Mas as coisas foram esclarecidas e o facto é que nunca houve qualquer problema com a administração no que diz respeito à acusação de uso indevido do dinheiro. Aliás, o asilo sempre foi rentável e até naqueles tempos de crise aquilo dava muito dinheiro. A prova é que nunca houve problemas financeiros durante a gestão popular.

SR

– Quando é que aquele serviço voltou para a gestão da Misericórdia de Setúbal?

AF

– Acho que voltou em 1986, depois de várias direcções populares. E voltou porque o PPD fez tanta força que o estado sempre se decidiu restituir o asilo à Misericórdia. A partir daí começámos a ter dificuldade em ficar a par do que se passava. Contudo é preciso dizer que a Misericórdia nunca cortou por completo com o asilo porque durante todos aqueles anos ela financiou o asilo, a par do próprio hospital que fornecia os alimentos.

O resto do dinheiro vinha do financiamento do Estado através da Segurança Social. Para além disso os idosos pagavam uma verba enorme para estarem lá. Para a entrega do asilo à Misericórdia contribuiu também o facto de, com o passar do tempo, o pessoal ter vindo a ficar desmotivado. Aos poucos fomos saindo desta luta, pelo que isso ajudou o regresso do asilo àquela instituição.

SR

– Naquele tempo sentia que Setúbal era uma cidade interventiva?

AF

– Posso dizer que naquela altura Setúbal era a zona do distrito mais activa, e ao nível da organização, a LUAR era a mais respeitável do país. Participámos em tudo, desde a ocupação do asilo à ocupação da Quinta de Miraventos, pouco tempo depois, passando pela sede da PIDE e pela agitação do 7 de Março onde andámos nos telhados do Clube Naval durante o comício do PPD. E as coisas nunca eram fáceis porque havia um grande problema com o PCP, que andava sempre de vigia e fazia ameaças ao pessoal da extrema-esquerda.

Lembro-me de que quando íamos muito tarde para casa tínhamos de andar acompanhados para evitar a concretização das ameaças directas. Essa hostilidade era vista diariamente em todas as acções que promovíamos ou em que participávamos. De facto, movimentos como a LUAR e o PRP metiam medo ao PCP porque eles queriam controlar-nos mas não conseguiam.

SR

– Quer dizer que o PCP sentia-se ameaçado?

AF

– Sim, porque a extrema-esquerda teve um papel muito importante e bastante activo na vida de Setúbal durante aquela época. E acho que se a nossa intervenção não tivesse sido tão activa muitas coisas estariam agora diferentes. E neste aspecto pode até dizer-se que o PCP andava um bocado a reboque da extrema-esquerda porque nós actuávamos tão depressa e fazíamos tanta coisa que a única maneira deles estarem a par era andarem atrás de nós. Depois, revelavam-se um entrave porque, com a forte organização que tinham, infiltravam-se nas acções e conseguiam muitas vezes controlá-las.

SR

– Quando é que o clima de exaltação revolucionária acalmou?

AF

– Abrandou com o 25 de Novembro. Nessa noite reunimos no Círculo Cultural de Setúbal e estávamos todos com muito medo que fizessem à nossa esquerda a matança que entretanto se tinha feito no Chile. Nos dias seguintes recordo-me de ir até ao café Tamar, onde fazíamos as nossas tertúlias, e de ter muita gente a provocar-me por saber que eu era de esquerda.

Era pessoal do PPD e todo o tipo de gente de direita. A partir daí comecei a sofrer as consequências da minha vida política, comecei a deixar de ter trabalho porque não me davam quando sabiam quem eu era. Fiquei marcado e ainda hoje as pessoas me conhecem desse período da revolução.

SR

– Mesmo com essas dificuldades voltaria a fazê-lo hoje?

AF

– Voltaria a fazer exactamente o mesmo e sem quaisquer problemas. Aliás, nunca deixei de fazer aquilo em que acredito. Actualmente sou delegado sindical e continuo a lutar. Tenho sido visto como um incómodo, tentam calar-me a boca mas eu não deixo. Mesmo que tivesse de sacrificara a família faria precisamente o que fiz há 25 anos porque não me arrependo de nada. Embora admita que alguns erros, tudo foi feito por convicção e essa ainda não morreu.

Entrevista de Etelvina Baía
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