Produção de Arte Dabliu, Produtos Culturais, Lda.
(Uma nítida sensação de déjà-vu)
Querido Diário,
O Sandro veio ontem falar comigo. “Precisamos de ter uma conversa muito séria”, disse-me. Vinha de olhar grave, muito pouco à vontade, cheio de gestos excessivos, ele, que é a moderação em pessoa. Não fiquei surpreendida. Tarde ou cedo esperava por esta “conversa séria”.
Conversámos. Ou, por outra, ele falou e eu ouvi. Fiquei ali a escutá-lo, olhos semicerrados, com uma nítida sensação de déjà-vu, naquela mansidão resignada de quem adivinha o que vai ser dito muito antes de o interlocutor abrir a boca.
Coitado do Sandro. Ama a Sónia, mas ela não o merece. É sempre assim. Os bons rapazes acabam sempre por esbarrar nas más raparigas. É fatal como o destino. A consciência dele está feita em fanicos porque julga que traiu um grande amor. Mal sabe ele… Enquanto o ouvia lamentar-se, num murmúrio de vitelo perdido, a minha cabeça ia transbordando de imagens da Sónia e do Pedro, abraçados num polvo intrincado de desejo, envolvidos numa paixão culpada, cavando o fosso onde o Sandro se preparava para cair, fraco e desamparado. Tive mais pena da alma dele que repugnância dos corpos dos outros dois.
Quando finalizou a ladainha, desvairado e de lágrima no canto do olho, disse-me que, em nome do amor que tinha à Sónia e da consideração que lhe merecia o Pedro, não me queria ver mais. Não aguentei e desatei a rir à gargalhada. “Ris-te?”, lamentou-se o Sandro, sempre num tom meigo e lamechas que já começava a complicar-me com os nervos. “O que é que queres?”, respondi-lhe, “Tudo isto me dá uma vontade incontrolável de rir!”. Ele olhou para mim com ar de cão sem dono e disse-me: “Tu não levas nada a sério, pois não? Só pensas em ti. Estás-te nas tintas para os sentimentos dos outros”. Olhei para ele, subitamente enfadada, e gritei-lhe: “Ainda és mais tapado do que eu pensava, Sandro! Olha, vai a correr para a tua queridinha e não me chateies mais: já não te posso ouvir!”.
A minha vontade era contar-lhe toda a verdade. Dizer-lhe que a suspirada do seu coração andava encavalitada no Pedro, perfeitamente nas tintas para os sentimentos dele, Sandro. Mas não o fiz. Preferi, não sem um sentimento de vingança antecipado, deixá-lo cozer em lume brando, aguardando que fosse a dinâmica dos acontecimentos a ditar o tempo certo para ele saber a verdade.
Em segredo, andei, desde há uns dias a esta parte, à procura de casa. Quando a bronca rebentar, coisa que não deve tardar nada, quero ter o meu cantinho à espera, para os mandar a todos para um certo sítio, bater com a porta e ir-me de vez. Hoje mesmo recebi um telefonema de uma senhora já com uma certa idade, viúva, a dona Adélia, que mora no Bairro do Tróino, numa casita perto do largo da Fonte Nova. Na semana passada fui lá a casa ver um quarto que ela tem para alugar. Gostei da casa e da senhora, mas ela ficou de me dar uma reposta só esta semana. A resposta não podia animar-me mais: a senhora diz que está disposta a alugar-me o quarto, desde que eu não leve para lá nenhum namorado. Disse-lhe logo que podia estar descansada, que namorado era coisa que não tinha nem queria ter tão cedo.
É claro que ainda namoro com o Pedro. Quer dizer: eu namorar já não namoro, mas ele ainda não sabe. Vai saber ainda hoje, se Deus quiser. Por isso, é como se já não namorasse.
A minha família é que se vai passar quando souber de mais este falhanço amoroso. Estou a chamar-lhe “falhanço amoroso” porque é isso que eles vão pensar que aconteceu. Para mim não se trata de nada disso. Cresci, desde que vim para Setúbal a reboque do Pedro. Quando olho para trás, e ainda não foi há tanto tempo como isso, coro de vergonha só de pensar nas tristes figuras que fiz quando fui “apanhada” no táxi, pelo Pedro, para o “Ri-te, Ri-te” da TVI. Razão tinha o Arlindo quando me chamou pirosa, obtusa e atrasada mental.
É curioso como não me sinto deprimida nem miserável com tudo quanto me está a acontecer. Antes pelo contrário. Sinto-me mulher, afirmada, dona do meu destino. Quando me olho ao espelho gosto do que vejo. A imagem que me é devolvida é a de uma mulher ainda muito jovem, mas onde se começam a insinuar sinais de personalidade, de amadurecimento. E, por que não assumi-lo, sem preconceitos nem falsas modéstias, a imagem de uma mulher muito bonita. Uma mulher capaz de enlouquecer um homem.
A toda esta minha confiança não é estranha, tenho de o confessar, uma mensagem do João, já ouvida não sei quantas vezes, que guardo na memória do meu telemóvel: “Lina. É o João. Não quero perturbar o santuário desse teu novo amor. Mas gostava que soubesses que não te esqueci nem te esquecerei nunca. Imagino que estarás inundada de felicidade e nem sequer te lembras que existo. Mas se um dia precisares de um ombro amigo, telefona. Estou à tua espera. Um beijo”.
Se ele soubesse… Meu Deus, se ele soubesse como penso nele, como nunca deixei de pensar nas coisas que me dizia: “Se pensares em mim, se eu fizer parte do teu universo, nem que seja só num pequeno fragmento, eu passo a existir para além deste deambular rotineiro e habitual de todos os dias”. Arrepia-me só de recordar a voz dele sussurrando aquelas palavras ao meu ouvido, no silêncio da noite, depois de termos visto o filme “A Beleza Americana”. Assusta-me pensar no mundo que o envolve, o casamento, a mulher, os filhos… Assusta-me e desafia-me. Mas o meu ser recusa o medo e empurra-me para o lado do desafio. Por isso, querido Diário, tudo pode acontecer. Tudo!
Lina
(Continua)