
por Domingos da Costa Xavier
(médico veterinário)
Que Viva o Pandemónio!
Malgrado enraizadas, e por demais, na tradição portuguesa, ao ponto de que por norma as mais importantes provêm de direitos adquiridos pelos locais em que se instalam por decretos régios, que nalguns casos remontam aos alvores da nacionalidade, as feiras, com ressalva das feiras do livro e das feiras taurinas, em regra, não me agradam.
Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades, e o que confessemos já foi importantíssimo factor de desenvolvimento, hoje quase mais não é que um mero factor de barulho e confusão. Ressalvados os produtos que ainda é difícil encontrar noutras circunstâncias, e as componentes culturais que nalguns casos lhes adendam, o melhor das feiras são as “farturas”, e digo-o com a consciência de que são tão só bocados de massa não levedada, em cru temperados com sal e em frito com açúcar e canela. É pouco…
Para que não me acusem de hipócrita, que vos diga de imediato que o não gostar não significa não respeitar, e por tal razão, sobretudo porque cada um come do que gosta e do que lhe dão a comer, foi com prazer que no ano transacto emprestei a minha colaboração à Feira de Sant’Iago, porque como com toda a certeza recordam o tema base da mesma era taurino, e que me perdoem a imodéstia, guardo até algum orgulho face à prossecução pela positiva dos objectivos em que me empenhei. Sobra (julgo que sobra) a maior obra de arte de tema taurino alguma vez posta a público na Península Ibérica, e, a memória de toda uma cultura taúrica que evidenciámos no Pavilhão de Exposições, subordinada que estava a exposição patente à “Cultura, Paisagem e Tradição – A Festa de Toiros no Distrito de Setúbal”, acervo reunido que bem merecia ter sido perpetuado em catálogo, e, o catálogo (aí sim!) da brilhante exposição acontecida na Casa de Bocage pela mesma altura, em que a arte grande e profunda de António Inverno e Henrique Moura se mostrou. À parte o aparte, a feira, que sem querer (insisto, descontado o episódio supra referido) sou como todos os munícipes obrigado a viver, é um aborrecimento.
Quando a feira se instala em plena Av. Luísa Todi e limítrofes, zona velha, é certo e sabido que a instalação eléctrica acusa a veterania e é cíclica a falta de energia eléctrica, quando não total, em potência disponível, o que confesso dever ser uma safra de luxo para os reparadores de electrodomésticos. Da água nem falamos, já que um simples dia de mais calor é mais que suficiente para que se sequem os depósitos, e em alturas de feira, para quem tem o azar de lhe habitar as imediações, o que se passa assemelha-se a um calvário, visto que por vezes a pressão nos canos é tão escassa que nem arranca os esquentadores. Mas enfim, que me coíba de mais desabafos, pois quem sou eu para que me permita evidenciar os meus interesses pessoais sobre o que se julga serem os interesses de toda a comunidade.
Contudo, julgo ser ainda meu direito continuar a reflectir sobre a Feira, e isto porque nos moldes actuais, a feira, que é suposto ser por definição um factor de progresso e desenvolvimento, mais não é que um factor de estrangulamento. Já em época normal o trânsito citadino se afigura caótico, em tempos de Feira é um pandemónio puro e simples.
Sabendo-se como se sabe que em Setúbal todos os caminhos desembocam na Av. Luísa Todi, por isso a mais importante das artérias da cidade, é dramático que pelo período de um mês a mesma se encontre estrangulada numa das suas vias e totalmente encerrada em outra. Tal situação que se agrava com o estacionamento permanente dos camiões dos barros e com o natural fluxo de acesso e regresso às praias, dificilmente é colmatado com a via alternativa do caminho da beira mar, ainda por cima este ano em obras, que aliás de há muito se impunham. È um pandemónio!!
Fecha-se a avenida para que nela se instalem barracas de farturas e de comes e bebes, que bem poderiam ocupar a zona que destinam às quinquilharias, de todo dispensáveis na situação presente, já que o seu produto de venda abunda por aí a esmo nas denominadas lojas dos trezentos.
Tudo se irá manter como está, com tendência para pior, e a autarquia já declarou que não tem intenção de modificar a actual implantação. Nascemos para sofrer!
Em Espanha, não há terrinha que não disponha do seu “recinto ferial” na periferia, de parceria com amplos espaços para estacionamento, e quando chateia mudam-no; veja-se tão só o que se tem passado na vizinha Badajoz, que de mudança em mudança já tem a Feira quase em cima da nossa fronteira. Em Setúbal, se é bem verdade que a Feira ocupa o seu lugar de há muito , verdade é também que os tempos são outros e já não se circula de carroça.
A Feira é de facto um fenómeno espantoso na vida da cidade, e importa que contra ventos e marés tal se reconheça. Mas, a constatação não implica que se não procurem soluções que contemporizem todos os interesses em presença. Para a razoabilidade, basta que se tomem decisões que honrem a cidade. Setúbal merece-as.