Setúbal na Rede – Onde é que estava em Julho de 1975?
Joaquim Tomé Maçarico – Trabalhava em Lisboa e vivia no Barreiro, onde fazia parte da Comissão Administrativa da Junta de Freguesia do Barreiro e participava, como coordenador, no movimento de moradores do concelho. Na altura, estava completamente envolvido na ocupação de um edifício, propriedade da família Nicola, uma das mais ricas do Barreiro.
E o destino dessa ocupação era a instalação de um Centro de Saúde, coisa que o Barreiro não tinha, e que ainda hoje existe naquele edifício. Muitas vezes faltava ao trabalho para me dedicar a este projecto e passava noites inteiras lá dentro depois da ocupação.
SR – Esse foi um mau período para o concelho de Barreiro?
JTM – Foi uma explosão terrível em todos os sentidos. Houve muitas ocupações de edifícios e de casas, por um movimento liderado pela UDP e pelo MRPP, e o respectivo não pagamento das rendas. Mais ou menos na altura em que ocupámos o edifício do Nicola, para instalar o Centro de Saúde, as Brigadas Revolucionárias, do PRP, fizeram uma ocupação selvagem.
Naquela altura foram ocupadas, ou semi-ocupadas, com o conhecimento e o consentimento da Comissão Administrativa da Câmara, algumas instalações importantes para lá meter comissões de moradores. Foi também aí que ocuparam o edifício que hoje abriga os serviços de obras da Câmara e a Comissão de Alfabetização criada naquela altura. Esse edifício ainda albergou durante uns anos a sede do Conselho de Moradores.
SR – Porque é que o Barreiro era assim tão ‘quente’?
JTM – Porque após o 25 de Abril deu-se uma enorme explosão daquilo que durante anos se considerou um sufoco. O Barreiro sempre foi uma terra louca pela liberdade, era e ainda é um concelho onde as pessoas se movimentam muito e intervêm bastante, temos um enorme poder associativo e toda a gente tinha vontade de fazer muita coisa pela terra e pela revolução. Portanto, com a revolução as pessoas quase que explodiram em iniciativas em todas as áreas, dando vazão à sua capacidade interventiva, independentemente dos partidos e das ideologias políticas.
Lembro-me de que, naquela altura, chegaram a ser plantadas cerca de três mil árvores. E isto era expontâneo, o pessoal ia à Câmara ou às juntas de freguesia porque queriam árvores, queriam as máquinas e tudo o que houvesse. Inclusivamente, criaram o Dia da Vassoura com as comissões de moradoras a adoptarem a medida e a colocar as pessoas todas a varrer as ruas.
SR – Nessa altura já se vivia o chamado Verão Quente. Como é que decorreu este período da revolução no concelho do Barreiro?
JTM – No início da revolução, as pessoas queriam era fazer coisas e queriam fazê-las sem atropelos. Mas como não tinham muita experiência disso, ficavam à espera que surgisse uma iniciativa quer das juntas quer das comissões de moradores. E quem mais dinamizava era a Junta de Freguesia do Barreiro que organizava iniciativas para toda a cidade.
À volta disso começou a criar-se um movimento enorme de moradores. Depois deu-se o 28 de Setembro, um acontecimento em que as comissões de moradores participaram de forma muito activa através de acções como as conhecidas barricadas de rua. Com o 11 de Março já as comissões trabalhavam em força e aí organizaram-se de tal forma que quase poderei falar em milícias.
SR – Esse processo de envolvimento da população provocou violência?
JTM – Felizmente não houve situações de violência no concelho. Na mobilização do 11 de Março ninguém sabia o que iria acontecer e a população estava preparada para tudo o que viesse e até às últimas consequências. Contudo não se verificaram situações de violência e as coisas correram melhor do que se esperava. Depois do 11 de Março verificou-se um grande avanço na situação política do país e as comissões começaram a apontar para atitudes mais radicais.
Entretanto, saiu a lei sobre a habitação e a sua aplicação foi entregue às juntas de freguesia que faziam parte do Conselho de Moradores, com os mesmos direitos dos outros membros. E as decisões que ali eram tomadas tinham de ser acatadas pelas juntas. Um dos casos foi o das ocupações de casas, que as juntas também ajudaram a cumprir de acordo com a decisão dos moradores.
Relativamente à nova lei, ela atribuía às juntas o poder de arrendar os fogos devolutos. Levámos tudo tão a sério que transportámos este novo poder para o Conselho de Moradores e aí decidimos todos sobre as questões. Cada Comissão de Moradores ficou encarregue de fazer o levantamento dos fogos devolutos na área respectiva e recolher inscrições das famílias que queriam casa.
SR – Como é que os proprietários reagiram a esta nova medida?
JTM – Tivemos alguns problemas, tal como estávamos à espera, mas a Câmara deu-nos uma boa assistência ao criar um gabinete jurídico para os casos conflituosos e até para aqueles que chegavam ao tribunal. Quando se deram as primeiras eleições livres fui cabeça de lista pela FEPU e acabei eleito presidente da Junta de Freguesia do Barreiro. E lembro-me que já no final do meu mandato existiam ainda dois casos destes pendentes no tribunal.
Eram casos de arrendamento compulsivo das casas, feitos pela Junta ao abrigo da lei porque os proprietários se recusaram a fazê-lo. Houve mesmo um caso no Alto Seixalinho que levou oito anos a chegar a uma decisão definitiva porque o proprietário foi recorrendo sempre da decisão do tribunal.
SR – De que forma é que se processaram as ocupações verificadas no Barreiro?
JTM – Muitas delas foram efectuadas pela UDP e pelo MRPP, em casas em fase de acabamento ou até mesmo devolutas, e a intenção era dizer às pessoas que deviam ir para as casas sem pagar qualquer tipo de renda. Depois do 25 de Novembro esse movimento deixou de ter expressão e as ocupações selvagens também. Depois, o que aconteceu foi que entre 1976 e 1977, as famílias que não pagavam renda acabaram por ser despejadas. Mas aí a Junta não teve grande interferência porque aquele movimento fazia as coisas de uma forma muito isolada.
Por isso foram-se desagregando, principalmente o MRPP uma vez que a UDP ainda aguentou mais uns meses com uma postura relativamente unitária. Entretanto as nossas reuniões continuaram com uma enorme adesão das pessoas e fizemos muitos encontros onde se tomou decisões importantes. Foi aí que decidimos que não era necessário fazer um Palácio da Justiça, como na altura se pretendia, porque o que queríamos era a justiça sem palácio. E foi isto que exigimos ao Governo de que era Vasco Gonçalves era Primeiro Ministro.
As obras deste novo equipamento custavam 20 mil contos e resolvemos exigir ao Governo que os canalizasse para a Câmara que tinha obras mais prioritárias onde gastar esse dinheiro. E o Primeiro Ministro enviou-nos uma carta dizendo que a nossa pretensão tinha sido atendida. Assim, foram feitas obras de restauro no antigo edifício onde o tribunal funcionou até há cerca de um ano e o resto do dinheiro foi mesmo entregue à Câmara. Ou seja, o tal Palácio da Justiça que se previa em 1975 teve de esperar 25 anos e acabou sendo inaugurado em 1999.
SR – Como é que conseguia conciliar o emprego com as actividades cívicas?
JTM – Passava muitas noites sem dormir, eram directas umas atrás das outras. É que para além das funções que fui acumulando, entretanto tinha sido também eleito como primeiro presidente da Comissão de Recenseamento, naquele que foi o primeiro recenseamento feito no país. Como esta acção foi até Maio, isso deu-me algum descanso do trabalho na empresa porque eles deram-me folgas para desenvolver esta actividade.
Terminado o recenseamento, voltei à empresa e tive de acumular as funções porque na altura não podia ficar a tempo inteiro como presidente da Junta. Mas tinha alguma compreensão por parte da empresa, aliás naquela altura era fácil as empresas serem compreensivas. Claro que mais tarde paguei por isso e também pelo facto de ter feito parte da primeira Comissão de Trabalhadores da empresa.
Ao longo dos outros 25 anos que lá trabalhei tive muitas dificuldades em subir na empresa enquanto via outros colegas a faze-lo. Foram levantando problemas, colocando dificuldades e ao longo destes anos fui pagando pela intervenção que tive no processo revolucionário. E mais ainda sendo do PCP.
SR – Chegou a arrepender-se por ter estado tão envolvido no processo revolucionário?
JTM – Não, embora às vezes pense que, se calhar, poderia ter equilibrado melhor as coisas. Mas nunca consegui fazer nada aos bocadinhos nem de forma parcial. Entrava muito nas actividades e até mesmo depois desse período, quando fui vereador da Câmara a tempo inteiro. Sempre tive muita dificuldade em desenvolver uma actividade durante algumas horas por dia.
Quando entrava era de cabeça. Hoje, com a experiência que tenho da vida, penso que se calhar poderia ter conciliado as coisas de forma a não ficar tão prejudicado como fiquei. Mas como eu, muita gente pagou por essa intervenção. Quanto ao resto não me arrependo de nada, embora admita que naquela época não estávamos habituados a ter tanta liberdade.
SR – Isso quer dizer que reconhece terem sido cometidos erros?
JTM – Sim, houve erros. Um bocado de voluntarismo a mais e algumas coisas eram feitas mais com o coração do que com conhecimento ou com objectivos programados. Perguntávamos apenas sobre o que era preciso fazer e fazíamos de imediato sem preparar as coisas. Se calhar hoje teria pensado melhor no que iria fazer e obteria melhores resultados.
Por isso ocorreram alguns falhanços, algumas coisas atrasaram-se e outras levantaram alguns pruridos e conflitos entre as pessoas. Se calhar, se tivéssemos tido mais moderação e mais formação política alguns problemas poderiam ter sido evitados.
SR – Quando é que o ânimo revolucionário começou a decair?
JTM – Com o 25 de Novembro houve muita retracção nas pessoas. Instalou-se algum medo sobre o que iria acontecer, as pessoas receavam ser perseguidas e muita gente começou a afastar-se das iniciativas. Isso foi o princípio do fim. E o resto veio como consequência disso. Criou-se depois uma nova expectativa no sentido de se saber como é que o país se comportaria perante uma nova situação política e também sobre como é que os novos mandantes se comportariam.
Face a isto, as coisas foram morrendo aos poucos com o passar do tempo. Ainda foram feitas algumas acções mas já não eram com o mesmo voluntarismo e a mesma impetuosidade que tínhamos no início. Aí, os partidos começaram a tomar mais forma e as coisas deixaram de ser o que tinham sido porque, dantes, a maior parte das acções eram feitas independentemente das pressões partidárias embora elas já existissem.
E com o 25 de Novembro esta situação tornou-se inevitável devido à alteração na correlação de forças que se foi aprofundando á medida em que os partidos se afirmavam e iam concorrendo a eleições. Era inevitável mas, do meu ponto de vista, aconteceu muito antes do que se esperava. Actualmente, o tipo de democracia que temos não contempla movimentos cívicos daquele tipo.
SR – 25 anos depois, como é que vê a actual situação?
JTM – Vejo com alguma frustração porque aquele movimento cívico fazia coisas maravilhosas pela população e pela nossa terra. Com a acção desse movimento, o concelho do Barreiro sofreu uma transformação enorme. E o poder reivindicativo das pessoas, aliado à sua capacidade de mobilizar gente, chegava a empurrar a Câmara e alguns órgãos do Estado a fazerem coisas em prol do concelho.
Era uma força reivindicativa que fazia e que ainda faz falta. Felizmente, o Barreiro ainda conserva muita da sua capacidade interventiva embora esteja um bocado dispersa em termos de organização. Aliás, isso também levou a que eu me afastasse um bocado e até a desistir. Passou a ser uma batalha inglória que me provocava desgaste e frustração.