Setúbal na Rede – Onde é que estava no dia 7 de Agosto de 1975?
Duran Clemente – Nessa altura fazia parte da Quinta Divisão, que era um órgão de apoio à Comissão Coordenadora das Forças Armadas. A Quinta Divisão foi criada pela necessidade de termos uma estrutura orgânica que desse apoio à Comissão Coordenadora de maneira a não se desvirtuar o espírito do 25 de Abril e cumprir as linhas do nosso programa.
A ligeira crise que ocorreu no primeiro mês após a revolução, começou a acelerar o desentendimento e a interpretação do caminho a seguir e isso veio a dar na cisão do movimento e na criação do Documento dos Nove. Não era nada fácil agregar pessoas com pensamentos, ideias e culturas diferentes. Contudo esse era o objectivo de todos nós, aliás um objectivo perseguido ao longo dos 13 anos de guerra colonial e todo esse tempo deu-nos uma certa maturidade. Não foi por acaso que o movimento foi constituído por capitães.
É preciso ver que a guerra marcou-nos e começámos a perceber que teria de haver uma solução política para o problema, tanto mais que entretanto outras potências tinham resolvido o caso de forma política como por exemplo a França com a Indonésia e com a Argélia e os Estados Unidos já fora do Vietname. Era a época do espírito dos anos 60, do Maio de 68, da luta dos progressistas. Enquanto isso, nós continuávamos numa situação de orgulhosamente sós.
Entretanto, os capitães começaram a perceber uma série de contradições e de exploração tanto nas chamadas colónias como no continente, começámos também a perceber a nossa força, uma vez que por nós passava tudo deste a responsabilidade logística à militar e administrativa. Foi aí que criámos experiência e maturidade, tendo estes sentimentos feito com que nos uníssemos num mesmo objectivo: a revolução.
Depois, no início da revolução tudo estava muito marcado pela conhecida expressão “Descolonizar, Democratizar e Desenvolver” mas o problema humano era saber que caminho a tomar nesse sentido acautelando os direitos fundamentais das pessoas durante aquele período de transição. Daí a natural divisão de opiniões e de caminhos e onde houve, inclusivamente, guarida aos que estavam contra nós e aos que achavam que tínhamos feito asneira.
SR – Quando é que começou a sentir que cada militar ia para seu lado?
DC – A crise ocorrida após a revolução obrigou o MFA a defender-se com a Comissão Coordenadora que foi a salvaguarda do trabalho colectivo anterior e do desenvolvimento das principais linhas do MFA. A seguir ao 25 de Abril começaram algumas divergências, embora os princípios mais puros da revolução continuassem resguardados. A Quinta Divisão funcionava como um braço do MFA para actuar e influenciar decisões de cariz político-militar. Era na altura Chefe de Estado Maior das Forças Armadas o General Costa Gomes e António de Spínola era o presidente da República.
Portanto, a crise entre os militares, que teve um dos maiores picos a 7 de Agosto de 1975, começou precisamente com as clivagens que surgiram entre Costa Gomes e Spínola. Começaram a surgir dissidências e protestos ao facto de, em Julho de 1974, termos querido colocar um militar no cargo de Primeiro Ministro. A partir daí, o movimento dividiu-se em três grandes grupos: os gonçalvistas que apoiavam Vasco Gonçalves para Primeiro Ministro e que tinham o apoio claro do PCP, os moderados com gente do PS e do PPD, e um grupo mais radical encabeçado por Otelo Saraiva de Carvalho.
SR – 0 Documento dos Nove foi uma consequência directa do 11 de Março?
DC – É mais uma consequência indirecta, uma vez que o que me parece ter provocado estas reacções foram os resultados das eleições para a Constituinte, a 25 de Abril de 1975, que deram a vitória ao PS. Aliás, os militares acabaram por fazer campanha pelos socialistas, pois na altura o comunismo era o ‘bicho papão’ e só ficava bem falar em socialismo. Na altura achei, e ainda me parece, que passado um ano sobre a revolução as pessoas não estavam preparadas para um acto eleitoral.
Quando se deu o 11 de Março já se tinha aberto grandes dissidências nos militares e até mesmo no país, lideradas por Vasco Gonçalves e Melo Antunes. Se tivéssemos continuado juntos talvez tivéssemos conseguido controlar os radicalismos, mas como as divergências aumentaram as coisas evoluíram de outra forma. Entretanto o país desenvolveu-se do ponto de vista político, mas não do ponto de vista económico e Mário Soares atirou as culpas para o PCP.
Os gonçalvistas reagiram, pois estávamos ligados ao PCP, e as respostas começaram a surgir por parte dos trabalhadores, das autarquias e dos movimentos associativos. O problema foi que a partir das eleições, o PS começou a abusar do sentimento de legitimação do poder, pelo voto. Não quer dizer que não tivéssemos reconhecido o resultado eleitoral, mas o certo é que achávamos que eles estavam a exagerar. Por outro lado, nós sentíamos que continuávamos a ter a força dada pela revolução.
SR – Em que circunstâncias surge o Documento dos Nove?
DC – Surge depois de aprovada a Aliança Povo/MFA e é uma resposta directa a este documento. As reacções não se fizeram esperar e surgiu o Documento dos Nove, com nomes como Melo Antunes, Vasco Lourenço e Canto e Castro. Era um grupo heterogéneo que representava um bocado do PS e do PPD. A Aliança Povo/MFA levou à saída do grupo dos 9 da Assembleia e lembro-me inclusivamente de ter ido ao Ministério dos Negócios Estrangeiros tentar convencê-los a voltar.
SR – Concretamente, o que significou esse documento?
DC – Foi basicamente um manifesto para dizer ao país que eles eram moderados, que eram nove mas haviam mais e que se estava a perverter o sentido da revolução e o compromisso do MFA para com o país. Foi uma aliança de direita contra o então chamado ‘papão’ do comunismo. Esta posição surgiu como resposta à Aliança Povo/MFA que, basicamente, aceitava o programa do MFA na sua vertente mais revolucionária, no sentido de não nos deixarmos embalar pela democracia parlamentar e pelas instituições.
Acentuávamos o compromisso social equilibrando as forças. Dávamos ênfase à participação das pessoas, ou seja, erra um plano de acção política mais participado, assente nos cidadãos e nas suas organizações.
SR – Então, os nove eram os chamados acomodados?
DC – Eles eram basicamente acomodados e achavam os nossos princípios exagerados. Levantaram-se contra o comunismo e isso acabou por dar resultados concretos, pois em 1976 fomos afastados do processo. E decididamente fizemos falta. Felizmente o PCP não foi totalmente afastado, embora tivesse sofrido com isso e sido colocado numa posição muito delicada. Todos nós fizemos falta na revolução e não podiam ter-nos dispensado enquanto militares e cidadãos.
Em Agosto de 1975 a situação foi-se agudizando, os militares estavam cada vez mais desunidos e nós quase passámos à clandestinidade. Fomos culpabilizados de muita coisa pelo centro e pela direita, eles juntaram-se e puseram-nos fora. O Documento dos 9 foi a mudança e o princípio do fim do processo.
SR – O Documento dos Nove foi uma preparação para o 25 de Novembro?
DC – Os acontecimentos culminaram exactamente no golpe de 25 de Novembro, depois da importância do movimento ligado ao Documento dos Nove ter atingido o pique em Setembro. Os moderados fizeram com que nós fossemos os primeiros a sair e, como quem sai primeiro perde, nós acabámos por perder.
SR – 25 anos depois, como é que vê a situação do país?
DC – Vejo que o país está completamente diferente, que os males de hoje são os males de hoje e que temos de estar mais unidos se queremos desenvolver acções numa democracia participada. Vejo um país com força e capacidade, mas também muito preocupado com a actual situação. Devemos procurar resolver os problemas e deixarmos de ser tão brandos, quer nas reivindicações dos direitos, quer no cumprimento das obrigações.
Neste país há muita complacência relativamente ao que tem de ser feito, falta-nos dinâmica e servimo-nos muito da burocracia para o esconder. E é lamentável porque, com isto, não estamos a honrar o espírito do 25 de Abril. Há que reflectir sobre a forma de exercer o poder e a cidadania em Portugal pois há qualquer coisa que não está bem.