Setúbal na Rede – Onde é que estava no dia 6 de Agosto de 1975?
Maria Emília Palmeirinha – Estava na Quinta de Miraventos, em Setúbal, que tinha sido ocupada em Julho por um grupo de pais – incluindo eu – para ali instalar uma escola para os nossos filhos. Nesse dia os soldados do COPCON decidiram desalojar-nos e acabar com a ocupação.
SR – Quem determinou o vosso desalojamento?
MEP – Acho que foi o Otelo Saraiva de Carvalho mas não sei qual a razão. Lembro-me muito bem que sempre esperámos a chegada dele para falar connosco, pois foi isso que os militares nos prometeram desde o dia em que ocupámos as instalações. Aliás, eles estiveram connosco desde o primeiro dia, não sei quem os avisou mas o certo é que esses militares não eram do quartel do 11. Contudo, nunca nos trouxeram problemas e inclusivamente conviveram sempre bem connosco apesar de estarem armados. Passámos ali muitos dias e muitas noites para efectivar a ocupação e também à espera de contacto com a dona da quinta.
SR – Como é que se processou a desocupação?
MEP – Um dia eles chegaram lá e disseram-nos que havia ordens para sairmos. Eles estavam armados de metralhadoras, como sempre, e as ordens foram para cumprir. Ou seja, saímos sem protestar muito e a coisa acabou por ser relativamente pacífica. Seja como for, acho que a nossa saída só se deu daquela maneira porque já estávamos cansados. Tinham decorrido muitos dias de ocupação, as pessoas andavam um pouco desmotivadas e a falta de alguma liderança acabou por nos retirar capacidade de decisão.
SR – Porque é que decidiram ocupar aquela propriedade?
MEP – A ideia surgiu quando nós vimos o colégio Marga fechar as portas e as nossas crianças sem aulas. Eram mais de 40 crianças pequenas sem terem para onde ir e os pais com um problema enorme porque não tinham onde as pôr para irem trabalhar. Como havia conhecimento de uma quinta de uma francesa que nunca lá estava e cujo espaço tinha condições excepcionais até para os miúdos aprenderem a ver a Natureza e a agricultura de outra forma, nós decidimos ocupar as instalações. A esta iniciativa espontânea dos pais, aderiram muitos dos moradores daquela zona do concelho e vizinhos da Quinta de Miraventos.
Tudo foi feito de uma maneira muito ordenada e pacífica. Isso verificou-se no dia 8 de Julho e fizemos questão de não ocupar a habitação propriamente dita, ficámo-nos por uma sala que devia ser a de visitas, onde nos reuníamos para tomar as decisões. Logo após a ocupação surgiram, não sei de onde, os militares que nos acompanharam até ao final do processo. Explicámos as razões da ocupação, eles aceitaram-nas e passaram a conviver connosco a toda a hora do dia. Foi uma convivência curiosa, até pacífica, embora admita que o facto deles estarem armados nos assustava pois nunca sabíamos o que podia vir a acontecer.
SR – Sempre conseguiram criar uma escola?
MEP – Não fomos capazes de concretizar a ideia, embora tivéssemos reunido dias seguidos para decidir o que fazer e por onde começar. Tínhamos pensado em fazer uma cooperativa de ensino. Apenas duas professoras do colégio Marga aderiram à iniciativa e lembro-me de estarmos lá sempre com os miúdos, incluindo os meus dois filhos pequenos, e de eles se sentirem muito satisfeitos por terem espaço livre para brincar e uma zona de jardins e de campo muito vasta.
Entretanto as coisas não deram certo com a proprietária, nós pretendíamos pagar-lhe uma renda nas ela nunca chegou a dar-nos resposta. Como privilegiávamos o diálogo escrevemos várias cartas mas não tivemos resposta, depois a Rádio Renascença quis saber o que estávamos ali a fazer e eu fui escolhida para explicar a situação. Sei que tempos depois a proprietária fez saber que não estava nada interessada em alugar o espaço para o fim que pretendíamos, contudo isso soubemos mais tarde. Dias depois da divulgação da nossa acção, na Rádio Renascença, aparece-nos o COPCON a pôr-nos dali para fora.
SR – O processo de ocupação teve a intervenção de partidos políticos?
MEP – Não houve qualquer partidarização da iniciativa, embora se tivessem verificado algumas tentativas de ‘colagem’ nomeadamente por parte de alguns pais ligados ao PCP. Conhecíamo-nos todos dos comícios e das acções de rua, éramos de esquerda mas nunca houve ninguém a dizer que este ou aquele partido iria liderar o processo. E isso aconteceu porque nunca quisemos partidarizar a acção que nasceu de forma espontânea entre a população e que tinha como objectivo único o bem estar das nossas crianças. Mas havia ali gente de diversas tendências políticas de esquerda, desde o PCP ao MES, passando pelo MRPP, de que eu fazia parte.
SR – Depois de desalojados, os pais deram por terminado este processo?
MEP – Sim, viemos pacificamente para Setúbal muito frustrados e sem saber o que fazer. Ainda houve quem pensasse em ocupar outro local na cidade para fazer a escola mas não resultou porque as pessoas foram desmobilizando e resolvendo os seus casos individualmente. Também é verdade que a ideia era de difícil concretização pois estávamos numa altura em que já pouco havia para ocupar e o que existia não reunia as condições necessárias para albergar uma escola.
Entretanto, conseguimos que algumas das nossas crianças fossem incluídas, em regime de tempos livres no projecto de alfabetização que a Comissão de Moradores criou para crianças africanas, em instalações ocupadas na Avenida Almeida Garrett.
SR – Esteve envolvida na chamada onda de ocupações que se seguiu ao 25 de Abril?
MEP – Sim, enquanto membro do MRPP ocupei algumas casas em Setúbal por força da necessidade da população. Tinha sido constituída a Comissão de Moradores do Bairro Salgado, a que aderi de imediato e, não sei porquê, as pessoas começaram a chamar-me presidente e a irem a minha casa pedir-me para ocupar esta ou aquela casa porque precisavam dela para viver. Um desses casos foi o Arquivo Histórico da cidade mas o pedido que me fizeram não foi aceite e acabei por conseguir convencer as pessoas de que o arquivo da cidade não devia ser destruído.
Lembro-me que, depois das pessoas me terem feito esse pedido, bateu-me à porta um dos responsáveis pelo Arquivo Histórico a pedir-me para explicar à população a importância daquele edifício. Foi isso que fiz e o edifício não foi ocupado. Para se perceber a movimentação das pessoas em torno das ocupações é preciso saber que a população sentia na pele as enormes dificuldades em que vivia, a maioria sem quaisquer condições e com famílias numerosas. Por isso estavam dispostas a ocupar e a pagar uma renda para melhorarem de vida.
SR – Como é que viu o período revolucionário em Setúbal?
MEP – Foi uma época de grandes ideais e de grande actividade popular. As pessoas queriam melhorar a sua vida e uniam-se facilmente para lutarem por objectivos comuns. Os movimentos surgiam com muita facilidade e esse sentimento de união foi muito próprio daquela época. Agora não sei se seria tão fácil mobilizá-las e acho que raras seriam as pessoas daquela época que partiriam agora para acções daquele tipo.
Hoje diz-se que é necessário um novo 25 de Abril e como eu acredito nas pessoas talvez pudesse surgir um movimento igual ou maior que aquele que ocorreu, contudo não sei se voltariam aqueles que participaram no PREC. Até porque foram cometidos erros durante todo o processo e penso que esses erros hoje não voltariam a ser cometidos.
SR – A que é que se deveram esses erros?
MEP – Basicamente tratou-se de erros que apesar de não terem sido graves, poderiam ter sido evitados se tivéssemos todos mais experiência. Mas é preciso ver que nenhum de nós tinha experiência ou conhecimento de como se faziam estas coisas. O que tínhamos era uma grande vontade de mudança. E nós andávamos arrastados pela própria população. De tal maneira que um dia dei comigo junto ao quartel do 11 a pedir armas para o povo.
Com o 25 de Abril, Setúbal assemelhava-se a um vulcão com as pessoas a quererem intervir e a criarem uma forte consciência de classe. De tal maneira que se tornaram muito reivindicativas e activas. Lembro-me dos levantamentos quando se tentou criar uma sede para o CDS, por exemplo, e das movimentações quando se percebia acções de direita. E aqui não era o PCP nem o MES nem a LUAR ou o MRPP, eram os populares que se levantavam e nós íamos a reboque.
SR – 25 anos depois, como é que vê a população de Setúbal?
MEP – Continuo a acreditar que se as pessoas forem chamadas para uma situação mais activa de intervenção, elas vão responder. Apesar de tudo, as pessoas estão mais conscientes e foram capazes de transmitir aos filhos os valores da revolução e a mudança que se deu em 1974. Por mim, o espírito revolucionário continua e não quero que ele morra. Se agora tivesse que voltar a fazer o que fiz, acho que ponderava mais nas situações e tentaria evitar os erros.
Contudo não me arrependo de nada, pois o que fizemos foi no sentido de melhorar a vida da cidade e da sua população. Isto apesar de algum tempo depois ter chegado a ser apontada na rua devido à minha intervenção no PREC. Uma das coisas que mais me marcou após o 25 de Novembro foi esse tipo de perseguição e o que me ficou gravado para sempre na memória foi uma frase que ouvi no banco: “Olha, afinal também tem dinheiro no banco”.
O 25 de Novembro foi, de facto, um abanão na revolução e receávamos que isso significasse o fim. Contudo as pessoas não se esqueceram dos ideais e prosseguiram com o espírito que se iniciou no 25 de Abril. Mais que não fosse, o 25 de Abril serviu para incutir nas pessoas a consciência de classe e a necessidade de mudança. E é por ter essa consciência que vejo que os ideais da revolução não foram cumpridos e que, se calhar, chegámos a um ponto em que temos de parar para rever todo o processo e descobrir o que é que falhou em todos estes anos.