[ Edição Nº 138 ] – “O Diário de Lina” – parte XXXIV.

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“O Diário de Lina” – parte XXXIV (por Salvador Peres)
Produção de Arte Dabliu, Produtos Culturais, Lda.

(A felicidade é uma brisa leve e suave, que mal se sente)

Querido Diário,

Agosto já vai avançado e não vi ainda sombra de férias. Não são só as férias românticas de sol, mar e areia dourada, que nos sorriem lá do furor algarvio, onde milhões de portugueses se divertem todos os anos. Eu falo sobretudo de umas outras férias, uma férias que tardam, embora eu seja ainda uma jovem, com um futuro prometedor à frente. Falo de férias da hipocrisia, falo de férias da leviandade, falo de férias desta súbita ligeireza de viver que me acometeu.

Senti-me miserável, querido Diário. Não imaginas como foi a minha noite a seguir àquele teatro decadente e ordinário que fiz com o Pedro. Não, decididamente, aquela não sou eu. Mas quem sou eu, afinal? A criatura perversa que veste lingerie e se arma em mulher fatal? A mulher rasteira e sem princípios morais que curte o namorado da melhor amiga? A jovem desmiolada que anda a provocar homens casados? Ou, pelo contrário, a Lina simples, sem preconceitos, com horizontes para a vida, capaz de ser fiel a ideais, sonhadora e optimista?

Depois do que aconteceu com o Pedro, entrei em derrapagem completa. Olho para mim e não me reconheço. Tento encontrar a Lina romântica, cheia de projectos, construindo castelos ideais com príncipes lindos esperando por ela. Mas só encontro a sombra do que mal comecei a construir, um esboço tosco e já muito apagado de mim.

Ontem, não aguentei a tensão que se gerou em mim e liguei ao João. Ele percebeu que alguma coisa não estava bem comigo e veio buscar-me a Setúbal. Foi um querido, como sempre. Não sei que desculpa deu à mulher. Nunca soube, aliás, nem nunca quis que ele me dissesse de que forma gere este tempo que me dedica. Levou-me a jantar a Sesimbra. A noite estava cálida, com uma brisa tépida a afagar a multidão que passeava na longa marginal que coroa a suave baía da Vila. Passeámos de mãos dadas pelo areal da praia. Num impulso, contei-lhe tudo o que fiz com o Pedro, mais as trapalhadas com o Sandro.

Ele ouviu-me em silêncio, deixou-me falar sem me interromper uma vez que fosse. E eu ganhei coragem e fui por aí adiante, decidida a ser sincera com ele, fazendo força para que, ao menos com o João, algo de verdadeiro acontecesse na minha vida. Quando acabei de falar, corada, quase sem fôlego e com um sentimento de vergonha a enevoar-me a alma, ele virou-se para mim e disse-me: “Esta noite passa um filme do Woddy Allen num cinema de Almada. Um filme antigo, bem entendido. Nunca viste o “Manhattan”, pois não?”. “Não”, respondi. “O único filme que vi dele foi contigo, lembras-te, chamava-se ‘Toda a gente diz que te amo’. Era uma comédia musical. Uma história de amor giríssima”. “Então, vamos”, disse o João, “tenho a certeza que vais gostar muito deste”.

Fiquei levemente intrigada. Mas não fiz comentários e lá fomos. Há quanto tempo não ia a Almada, meu Deus! A cidade está irreconhecível, se bem que ela nunca se pareceu com coisíssima nenhuma, bem entendido. A não ser a outra Almada, a parte mais antiga da cidade, com aqueles miradouros solitários e românticos, com uma vista lindíssima sobre o Tejo. Confesso que continuava intrigada com a reacção do João à minha conversa. O silêncio dele escondia certamente qualquer mensagem que ele não deixaria de me fazer chegar quando achasse oportuno. Depois de ver o filme, percebi. Ou julgo ter percebido. Pois “Manhattan” tem muito que se lhe diga. E digo isto com a consciência de que nunca apreenderei a verdadeira essência do filme. Não sou nenhuma intelectual e o João sabe disso.

Mas “Manhattan” é um daqueles filmes destinados a conquistar todas as pessoas: umas pelo lado intelectual, como é certamente o caso do João, outras, como é o meu caso, pelo lado afectivo e pela magnífica síntese de vida que ele nos deixa. Vida amorosa, neste caso. O filme conta a história de um homem (Woddy Allen) incapaz de se relacionar de forma estável e definitiva com uma mulher. Um homem a viver num tempo que nunca é o tempo dele. Um homem puro e um pouco ingénuo, narcísico, cheio de medos e manias, mas com um sentido de humor extraordinário. Um homem que acaba por se envolver num triângulo amoroso de onde sai magoado, partilhando o amor de uma mulher que é amante do seu melhor amigo.

O filme é a preto e branco, como quase todos os filmes do Woddy Allen. Mas não deixa de ser lindo. A acção passa-se em Manhattan, o mais famoso bairro de Nova Iorque e a história é toda ela envolvida pela música sublime de George Gershwin (aquela abertura de Rhapsody in Blue – sei o nome porque foi o João que me informou, ele sabe tudo a respeito do filme – é de arrepiar).

Quando saímos do cinema toda eu era sorrisos para o João. E nesses sorrisos estava subentendido que eu havia percebido a mensagem que ele me quisera transmitir quando me levou a ver o filme. Uma mensagem de paz, de silêncio e de tranquilidade. Uma mensagem de que a vida é a fruição das pequenas coisas que nos passam quase despercebidas na voragem dos dias. A mensagem de que a felicidade é um conceito muito relativo, que está muito para além da nossa compreensão. E que só somos felizes quando não sabemos que o somos. No momento em que nos interrogamos a respeito da nossa felicidade e nos perguntamos: “sou feliz?”, já não o somos, certamente. A felicidade é uma brisa leve e suave, que mal se sente. A brisa que depois senti num longo beijo trocado com o João num dos miradouros de Almada, já noite dentro. Sentada ao lado dele, a noite parecia não ter fim e o dia seguinte estava adiado eternamente. Ali, contemplando a mansidão do Tejo, escorrendo, num sussurro, colado ao imenso luzeiro de Lisboa, compreendi que a vida estava a dar-me uma nova oportunidade de ser autêntica, uma nova janela para essa essência rara que é a felicidade.

Saberei aproveitá-la?

Lina

(Continua)