[ Edição Nº 138 ] – Saneamento da Comissão Administrativa da Santa Casa da Misericórida de Palmela.

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Setúbal na Rede
Onde é que estava no dia 14 de Agosto de 1975?

José António Cid – Estava em casa quando uns amigos me vieram avisar de que um grupo de pessoas queria tomar conta da Misericórdia e sanear a Comissão Administrativa que tinha tomado posse tempos antes, no seguimento da saída dos anteriores dirigentes. Eu era tesoureiro da Misericórdia, não era para ir lá nesse dia, mas como achava que quem não deve não teme, fui até lá para saber o que se estava a passar.

Foi quando fiquei a saber que queriam sanear dois elementos: o Manuel Carlos e o Joaquim Olívio. As pessoas diziam que não gostavam destes dois elementos da Comissão Administrativa por um conjunto de situações que vinham ocorrendo. A última gota foi a decisão do Manuel Carlos de retirar todos os crucifixos das paredes.

Eu também não concordei porque que tinha a consciência que, apesar dele não gostar de ver os crucifixos, não tinha o direito de os retirar porque as outras pessoas queriam-nos lá. Para mais, estávamos numa instituição como a Misericórdia e só isso era o suficiente para manter lá aqueles símbolos. Com o tempo, as pessoas foram comentando e acabaram por tomar uma atitude.

SRComo é que enfrentou a população?

JAC – Eu era estimado por todo o pessoal, pelo que fui bem recebido. Os visados não apareceram, ficaram em casa, e eu dei a cara para falar com os manifestantes. Quando cheguei à Misericórdia, dei com umas dezenas de pessoas à porta e como elas estavam mesmo ao lado das instalações dos acamados, pedi-lhes para irmos falar para outro sítio onde não incomodássemos ninguém pois já era de noite.

Então fomos para um local mais afastado e discutimos a situação. O que se verificou foi que as pessoas estavam revoltadas e queriam mudar as coisas na Misericórdia, pois esta Comissão Administrativa tinha substituído a anterior direcção para melhorar as coisas. Tinham uma série de argumentos, incluindo o de que muitos dos membros da Comissão não eram de Palmela. Fartámo-nos de discutir o assunto e os manifestantes decidiram-se pelo saneamento daqueles dois elementos.

SRPareceu-lhe que os motivos dos manifestantes eram legítimos?

JAC – Na generalidade não me pareceu. A ideia com que fiquei é que as pessoas estavam ali motivadas por alguém, não sei quem, com o objectivo de fazer mais uma daquelas manifestações contra os objectivos da revolução e que não agradavam a algumas pessoas. Não digo que os objectivos da revolução não agradassem a todos os que estavam na manifestação, mas acredito que a maioria das pessoas foi convencida a manifestar-se por gente que acabou por ficar a casa a ver como iriam correr as coisas.

SRAcha que os manifestantes terão sido manipulados?

JAC – Não tenho grandes dúvidas quanto a isso. Agora quem os manipulou é que não sei, talvez gente ligada à direita e ao antigo regime, que queria dominar aquela instituição. Inclusivamente, na altura houve algumas pessoas ligadas aos manifestantes que nos avançaram com essa hipótese.

SRQuais foram as consequências da reunião de dia 14?

JAC – Toda a gente tomou conhecimento da decisão dos manifestantes e os dois elementos saneados não voltaram a aparecer na Misericórdia. Contudo, o resto da Comissão Administrativa manteve-se em funções sem qualquer tipo de percalço. Devo dizer que também não gostava de muitas das decisões destes dois elementos porque eram demasiado radicais, descabidas e acabavam por prejudicar a imagem da Comissão Administrativa. Aqui, a memória falha-me um pouco, mas tenho a ideia de que tempos depois realizaram-se eleições.

SRDurante o tempo que lá esteve, sentiu que a Comissão Administrativa era dominada por algum partido?

JAC – Havia lá gente de vários partidos de esquerda. Eu não era filiado em qualquer partido, mas havia lá elementos do MDP, do PS e do PCP. Aliás, os dois elementos saneados eram do PCP. De facto, pode dizer-se que este era o partido que estava em condições de liderar o processo porque era o que estava mais bem organizado, estruturado e cujos quadros tinham a experiência da resistência à ditadura. Contudo, nunca me apercebi de tentativas de aproveitamento político-partidário da Misericórdia. 

SRA imagem do PCP ficou beliscada com os saneamentos? 

JAC – Isso só não aconteceu porque a população soube distinguir uma coisa da outra e não tomaram o todo pelas partes. Eram contra as atitudes daqueles dois elementos da Comissão mas não se viraram contra o PCP. Tanto assim que nas primeiras eleições autárquicas foi o Partido Comunista que ganhou aqui em Palmela.

SRComo é que decorreu a gestão da Misericórdia?

JAC – Nunca tivemos grandes problemas de gestão porque trabalhávamos com aquilo que tínhamos e havia pouco para gerir. Os médicos e os enfermeiros eram pagos pelo Estado, pelo que fizemos algumas melhorias nas instalações, nos serviços e na alimentação. Mas não podíamos ir muito mais longe porque não havia capacidade para isso. Esta Comissão Administrativa foi criada para tentar gerir melhor os serviços e, no meu entender, conseguiu fazê-lo, mas o mesmo não aconteceu a muitas comissões do género que por dificuldades diversas não conseguiram fazer o que pretendiam.

Nomeadamente por escassez de verbas, pois elas nem sempre eram bem distribuídas, e por alguns actos de boicote exteriores. Sendo alentejano, recordo-me muito bem de casos relacionados com a Reforma Agrária, onde via gente de direita infiltrada nas comissões e nas associações com o intuito de fazer fracassar os objectivos da revolução. E posso dizer que eram alguns os infiltrados de direita e gente ligada à PIDE misturados com o povo com o objectivo de evitar o sucesso das acções em curso.   

SRQuando é que a Misericórdia voltou a gerir os serviços que criou?

JAC – Não me recordo como é que isso se processou mas sei que o lar de idosos sempre esteve nas mãos da Misericórdia. Basicamente, o que nós geríamos era o hospital que tempos depois passou a ser gerido pelo Estado. Uma situação que se estendeu até aos dias de hoje pois apesar do hospital, agora oficialmente conhecido como Centro de Saúde de Palmela, ser propriedade da Misericórdia ele continua a ser gerido pelo Ministério da Saúde.     

SRComo é que o concelho de Palmela viveu a revolução?   

JAC – Aqui as coisas não foram complicadas como por exemplo em Setúbal. Somos uma terra pequena e de gente com uma grande identidade própria, pelo que sempre levámos as coisas com muita calma, até mesmo as ocupações de casas. Isto apesar de termos visto alguns grandes proprietários e gente ligada ao anterior regime a resistir à perda dos direitos adquiridos durante a ditadura. Mesmo assim, o processo revolucionário decorreu sem grandes conflitos ou violência.

Excepção feita para as questões ligadas à Câmara e à Comissão Administrativa, que tinham a ver com situações mais políticas e que, por isso, eram sempre um pouco mais inflamadas. Mas este foi um fenómeno que ocorreu em todo o país aquando da tomada das autarquias pelas comissões administrativas.  

SR25 anos depois, como é que vê esse período da História?

JAC – Vejo com muita saudade e alguma tristeza. A saudade vem do facto daquela época ter sido a da esperança e do trabalho com vista a umas sociedade melhor e mais justa. A tristeza surge a par de uma grande desilusão pelo rumo que as coisas tomaram nos anos seguintes porque os ideais de Abril continuam longe de serem cumpridos.

Embora muita coisa tenha mudado neste país, nomeadamente a consciencialização das pessoas quanto aos seus direitos, muita coisa continua por fazer, pois a sociedade continua a ser injusta e o desenvolvimento desequilibrado. Quis-se fazer uma revolução para atender às camadas mais desfavorecidas e ela acabou por não cumprir os seus objectivos, porque a pobreza, o analfabetismo e a falta de oportunidades continuam a existir em Portugal.