Setúbal na Rede – Onde é que estava no dia 5 de Setembro de 1975?
João Aldeia – Estava em Setúbal, porque nesse dia realizava-se um comício do MRPP, a organização política a que eu pertencia. O comício, em que também fiz uma intervenção, foi um acontecimento bastante importante atendendo à importância da cidade de Setúbal e ao facto do MRPP estar a tentar expandir aqui a sua actividade que, em abono da verdade, não era muito grande. Por esse facto, todos os militantes e simpatizantes do MRPP estavam, nesse dia, virados para a realização do comício.
SR – Como é que um membro de uma Comissão de Moradores de Sesimbra aparece a discursar num comício em Setúbal?
JA – Na altura, e até mesmo antes do 25 de Abril, o MRPP era essencialmente composto por militantes e simpatizantes das camadas jovens. Eu próprio era simpatizante do MRPP quando estudei economia em Lisboa. Portanto, o partido sempre teve essa característica que, inclusivamente, lhe era apontada como defeito porque os muitos críticos do MRPP diziam que era um partido de estudantes.
SR – Essa ideia de meninos rabinos tem alguma coisa de verdade?
JA – Tem alguma verdade porque o MRPP nasceu de uma certa intelectualidade lisboeta e teve uma grande penetração na camada estudantil e essa característica manteve-se até mesmo depois do 25 de Abril. O MRPP era criticado por isso, no entanto esforçava-se para apresentar, sempre que possível, elementos operários, camponeses e outras pessoas que nos tirassem essa conotação estudantil.
No meu caso foi as duas coisas, porque era estudante e membro de uma Comissão de Moradores de Sesimbra. Portanto, penso que a escolha da minha pessoa para participar no comício teve mais a ver com esse facto do que com características próprias da minha pessoa. Até porque em vez de ser apresentado como estudante, fui apresentado como elemento da Comissão de Moradores.
SR – A escolha teve a ver com o papel que as comissões tinham na sociedade?
JA – Um dos grandes temas em discussão em todo o país, nesse período entre Agosto e Setembro de 1975, era o problema da habitação porque entretanto tinha-se iniciado um grande movimento de ocupação de casas. Isso preocupou bastante o Governo da altura que chegou a criar legislação específica para não deixar entrar em roda livre esse movimento de ocupação de casas que podia, de facto, desestabilizar o país durante aquele período de grande agitação política e social. Recordo-me que este tema era muito discutido nas reuniões das comissões de moradores e das comissões de trabalhadores.
SR – Chegou a participar em ocupações de casas?
JA – Não, esse movimento era de natureza popular e conseguiu ser travado de muitas maneiras. E se formos ver, verificamos que muito poucas casas foram ocupadas neste país. Recordo-me que uma das entidades que mais travou a onda de ocupações foi o COPCON. Nessa altura deram-se ocupações em massa em muitos bairros de Lisboa e lembro-me que, de cada vez que isso ocorria, o COPCON ia ao local e falava com as pessoas no sentido de as demover.
Penso que da parte dos principais dirigentes políticos e dos partidos mais activos, havia o receio deste movimento e deram-se várias tentativas para travar as ocupações. O que, inclusivamente, deu origem à criação de legislação nesse sentido.
SR – Em Sesimbra verificaram-se ocupações de casas?
JA – Houve tentativas de ocupação que foram travadas, nomeadamente pela Comissão Administrativa da Câmara Municipal. E o MRPP não estava à frente desse movimento, tratava-se de um movimento de base popular sem dirigentes dos grandes partidos da altura, como o PCP e o PS, e isso fazia com que alguns pequenos partidos andassem ‘atrelados’ ao movimento.
SR – O comício do MRPP em Setúbal ocorreu meses depois do COPCON ter fechado as suas sedes. Isso fez mossa no partido?
JA – Não terá sido bem o COPCON, mas sim alguns sectores das Forças Armadas ligados ao PCP que procederam ao encerramento das sedes do MRPP. Isto porque o MRPP tinha o PCP como inimigo principal e atacava-o e criticava-o de uma forma bastante agreste e violenta. Posso dizer que o termo que o MRPP utilizava para classificar o PCP era o de social-fascismo e aos seus membros chamávamos social-fascistas.
Foi neste contexto de grande agressividade de parte a parte que surgiu a vaga de prisões e encerramentos de sedes. E o COPCON, dirigido por Otelo Saraiva de Carvalho, teve um papel muito importante neste processo, não na prisão dos elementos do MRPP mas na sua posterior libertação. Deu-se um movimento de bastidores quer do COPCON quer do próprio Ramalho Eanes, que tinham até ligações com o secretário geral o PCP, no sentido de libertar os membros do MRPP. Foi uma luta ideológica exageradamente acesa entre os dois partidos.
SR – Chegou a ser preso?
JA – Sei que as tropas foram a várias sedes do MRPP, incluindo algumas na península de Setúbal, mas nessa altura eu estava em Sesimbra e lá não houve tentativas de ocupação. Mas as ocupações e as prisões feitas nesse ano fizeram o efeito contrário e acabaram por aliciar os militantes que sentiam a injustiça daquela acção. Foi nesse ambiente que decorreu o comício de Setúbal, onde embora se tivesse falado nisso, teve como tema dominante o combate aos grandes partidos, como o PCP e o PS, que tinham predominância no Governo de Vasco Gonçalves. Tudo no contexto da violenta luta ideológica feita essencialmente contra o PCP.
SR – Pode dizer-se que o comício do MRPP e a presença do secretário geral, Arnaldo de Matos, em Setúbal, foram uma ‘cartada’ importante em terreno adverso?
JA – Sem dúvida, e daí o comício ter sido visto com grande apreensão quanto ao que podia vir a acontecer. Primeiro porque se verificavam confrontos diários entre militantes dos dois partidos, nas ruas e nas colagens de cartazes. O MRPP atacava duramente o PCP e, por outro lado, o PCP lançava o discurso de que o MRPP era um braço da CIA, uma entidade que na altura era vista como o inimigo. As coisas tinham atingido um patamar elevadíssimo de violência verbal e até física, por vezes com pancadaria em plena rua. O comício surgiu neste clima de tensão, numa cidade onde o PCP dominava e onde o MRPP tinha uma estrutura muito frágil.
SR – O comício foi bem sucedido?
JA – Pode dizer-se que foi uma iniciativa bastante bem sucedida porque, não tendo grande implantação em Setúbal, o MRPP conseguiu captar gente de outros locais como Sesimbra e Almada. Para além disso, havia um outro fenómeno sociológico e político: os ataques do MRPP ao PCP acabavam por captar a simpatia de pessoas mais próximas do PS e do PPD. Muitas dessas pessoas estavam contra os discursos do PCP, mas também não viam forma de os combater, por isso começaram a virar-se para o discurso do MRPP que fustigava o PCP todos os dias. A prova disso foram as várias as manifestações de protesto contra as prisões, efectuadas por gente associada ao PS e ao PPD.
SR – Porque é que essa simpatia pelo MRPP não se reflectiu nos resultados eleitorais?
JA – O MRPP era um partido comunista marxista-leninista e de corrente maoista e nunca escondemos isso. Mais recentemente o discurso talvez tenha mudado um pouco mas, na altura, até o PCP sabia disso. Então, como era um partido coerente, o MRPP apresentava-se perante o eleitorado a defender a ditadura do proletariado e a colectivização dos meios de produção. Enquanto isso, outros partidos como o PCP tinham um discurso mais abrangente, falavam explicitamente contra o grande capital mas não referiam directamente a ditadura do proletariado, embora a defendessem.
E o MRPP, com o discurso franco que desenvolvia, fez com que as pessoas tivessem dificuldade em perceber como é que o país mudaria se desaparecesse a propriedade privada. Aliás, o MRPP entrou em contradição porque, sendo comunista, tinha como principal tarefa denunciar como o comunismo defendido pelo PCP era um erro. Dizia às pessoas que aquilo não era solução se fosse aplicado pelo PCP mas que se fosse aplicado pelo MRPP e por Arnaldo de Matos já podia funcionar. A mensagem do MRPP falhou pois o discurso era muito radical e nunca poderia mobilizar muita gente.
SR – Pode dizer-se que o discurso radical junto de um povo chamado de brandos costumes virou-se contra o próprio partido?
JA – Não diria que se trata de um povo de brandos costumes, mas mais um povo que, com o passado e o desenvolvimento que já conhecia, dificilmente conseguiria ver aplicado este tipo de promessas e de ideologia. É um discurso que alicia mais os que nada têm a perder, aqueles que são explorados de maneira muitíssimo violenta.
SR – Tendo em conta que não era uma pessoa desfavorecida, o que é que fazia no MRPP?
JA – Estava lá por convicção. Quando cheguei ao Instituto Superior de Economia, por razões familiares e de convicção era já uma pessoa de esquerda e totalmente contra o regime. Encarava de forma negativa a ditadura e quando cheguei à escola firmei ainda mais a minha ideologia pois ali todo o corpo docente era assumida e publicamente de esquerda.
Portanto, a minha aderência a essa ideologia dá-se de uma forma intelectual e ao nível da aplicação prática dos conhecimentos da economia para resolver os problemas do país. O que se ensinava nas aulas era muito marcado por essa ideologia e por essa visão do mundo. Portanto, a minha presença em iniciativas como o comício de Setúbal ocorreu porque eu acreditava, de facto, nas soluções preconizadas pelo MRPP.
SR – O que é que aconteceu a essas convicções?
JA – Na altura estava a meio do curso que significou a tomada de consciência em relação a muita coisa. Depois comecei a alargar os horizontes, o leque de leitura e de influências, e a ver que podiam existir outras soluções. Isso começou a minar as minhas convicções, principalmente ao nível teórico.
SR – Hoje voltaria a ler o discurso que leu há 25 anos?
JA – Penso que não, embora não fosse muito marcado por estas questões políticas. Era mais um discurso virado para o que me levou ao comício: a questão da representatividade das comissões de moradores. Escrevi que a solução para os problemas era as pessoas serem eleitas em órgãos de base porque ainda era a única formas do povo ter alguma representatividade. Acreditava que isso nunca se alcançaria com eleições nacionais e partidos nacionais. Hoje já não penso assim, embora reconheça que o actual sistema eleitoral não é o melhor.
Contudo, parece-me que nas condições actuais não temos um sistema alternativo. De qualquer maneira, as formas de representatividade acabam sempre por sofrer perversões porque, quando se elege uma pessoa, ela acaba por agir de acordo com outras regras e interesses. Forma-se uma classe à parte, com interesses próprios e até mesmo com um sistema como eu defendia, acaba por ocorrer esse perigo. Ou seja, os partidos acabam por ser mais fáceis de vigiar do que a forma que se defendia ao pretender a eleição de pequenas comissões.