Produção de Arte Dabliu, Produtos Culturais, Lda.
Querido Diário,
Depois de o encontro com o João me ter deixado tão consciente do quanto a minha vida tem sido triste, ridícula, errada, perdida… eu tentei o pior. É horrível o que tenho para te dizer… mas depois de ter sentido, enquanto estive com o João, a esperança de poder descobrir a felicidade nas coisas mais simples, ao deixá-lo senti crescer aquela depressão tão grande, tão grande… que a dada altura foi como se já não soubesse sequer quem eu era, como se tivesse perdido a noção do meu tempo. Senti-me num planeta estranho, um mal-estar apossou-se de mim vindo das entranhas e… não resisti: carreguei no botão do semáforo na esperança de ser electrocutada. Infelizmente nada aconteceu a não ser que mudou para verde. E eu nem queria atravessar.
Depois de ouvir os insultos dos motoristas, furiosos por pensarem que eu apenas me divertia à custa deles regressei um pouco à realidade. Foi então que decidi lançar-me para debaixo de um automóvel que viesse a grande velocidade. Não pensei muito sobre isso. Tudo o que fosse deixar de respirar me parecia bom e nem sentia qualquer medo. Apenas um vazio enorme e negro como uma maré de crude. Foi então que ouvi o barulho do automóvel que se aproximava veloz, os faróis encadeando os meus olhos. Foi por isso que ao lançar-me para a frente não reparei no sinal de trânsito, um daqueles horríveis sinais colocados nos passeios, à altura das nossas cabeças. Por fracções de segundo pensei que fosse o embate do atropelamento o que eu sentia, o tão desejado fim. Mas não. Era apenas uma potente cabeçada no maldito sinal de trânsito que me fez cair para trás, inconsciente.
Acordei nos braços de um senhor amável que me levantou cuidadosamente e se procurou certificar que eu estava bem. Tentei descansá-lo mas ele não me deixava, insistindo em levar-me ao hospital. Acabei por aceder só porque nem tinha forças para teimar e também porque nem sabia o que fazer.
Ah, querido Diário, mas a minha vida sempre acaba por cair no mesmo, dê as voltas que der. Comecei a escrever-te sobre a minha tentativa de por fim à vida por causa dos meus constantes dilemas e saltos de homem para homem e que te posso dizer agora?
Que este homem conseguiu chegar ao mais fundo do meu coração. É verdade. O Luís não mais me deixou. Levou-me ao hospital, acompanhou-me na consulta, e passou a visitar-me constantemente, para saber se eu estava bem. Sim, afinal eu tinha um traumatismo profundo e fiquei internada. É do Hospital que te escrevo. Estou rodeada de tubos, medicamentos e cheiro a clorofórmio mas também das flores que o Luís me traz.
Ele é bastante mais velho que eu, tem 54 anos, é viúvo. E eu… apaixonei-me. Não uma vez mais, mas definitivamente. Nunca ninguém me deu tanto carinho, já para não falar das flores. E nada me pediu em troca. Fui eu que, na sexta-feira, lhe disse o que já sentia por ele.
Sei que vais dizer que é mais uma precipitação da tua Lina, mais um erro de que me vou arrepender. Mas não é assim. Não me perguntes porquê. Apenas sei. Nem sempre sabemos explicar, mas o que sinto agora é tão forte e claro que não tenho dúvidas. E ele está de acordo em que vá viver na sua casa quando tiver alta.
A minha família já me veio visitar duas vezes e quis saber quem era “esse homem”. Claro que não lhes disse a verdade e pensam que é o agente da Companhia de Seguros. Por isso estão fartos de lhe perguntar se não se pode processar a Câmara por causa do sinal, a fim de recebermos umas boas notas. Felizmente o Luís não se atrapalha e disse-lhes logo, assumindo o seu papel, que era melhor não fazermos ondas pois a Câmara é que me poderia processar por ter danificado o sinal e ter sido autora moral dos quatro acidentes que se deram depois, devido ao sinal de “Proibido voltar à direita” ter ficado no chão, invisível. Felizmente não houve mortos.
O Pedro veio cá só uma vez, aproveitando um serviço do táxi. Não só não me trouxe flores como teve o mau gosto de me trazer um livrito de receitas de culinária, daqueles que vêm com a compra de dois pacotes de margarina.
Mais ninguém me veio visitar, a não ser o João. Quando o Luís saiu para ir à casa de banho, o João perguntou-me quem era. Eu disse-lhe que era o Woody Allen e ele sorriu, percebendo tudo. O João é mesmo querido. Ao sair disse-me, sorrindo com malandrice, que gostaria de “ser convidado”.
Afinal, a vida acaba por ser simples e a felicidade não se vende nas lojas. Ela surge ao nosso lado quando a sabemos distinguir no meio da confusão. Talvez por procurar demasiado eu nunca tenha olhado para o sítio certo. Ou talvez a felicidade tenha o seu tempo para surgir e o meu tempo é agora. Talvez eu devesse ter passado por todos os erros que cometi para poder compreender, quando surgiu o Luís, que era ele. Antes eu não lhe teria permitido que me oferecesse flores.
E assim, querido Diário, cansada mas esperançosa, confiante que aprendi com tudo o que passei, estou em vésperas de ir a casa da Sónia buscar as minhas coisinhas para me mudar para Almada. Sei que ele vive perto de Cacilhas, num andar com vista para o rio. Não é bom? Sei também que o Luís é um homem experiente, maduro, carinhoso e carente. Não é bom? Sei que não vejo nele o amante de catálogo mas o homem que me conquistou e que se deixou conquistar. Não é bom? Sei que tudo nele me transmite confiança, sinceridade, serenidade. Não é óptimo?
Então que tens a opor a uma paixão de uma semana por um homem destes e que me quer?
Querido Diário, está na hora da injecção.
Não sei se para a semana te escreverei daqui ou de Almada.
Adeus e deseja-me as melhoras.
Lina
(Continua)