[ Edição Nº 140 ] – “O Diário de Lina” – parte XXXVI.

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“O Diário de Lina” – parte XXXVI (por Salvador Peres)
Produção de Arte Dabliu, Produtos Culturais, Lda.

(Je suis une femme trés belle!)

Querido Diário,

Na Quarta-feira fui a uma entrevista para um emprego. Foi engraçado ouvir os conselhos que me deram. O difícil foi conciliá-los. O Luís disse-me para ser eu própria, mas para estar atenta aos sinais de assédio sexual. A Sónia quase me obrigou a levar uma mini-saia curtíssima, mas avisou-me para conservar sempre as pernas bem fechadas. A minha mãe pediu-me que fosse bem comportada, mas que realçasse a pintura dos lábios. O João, que fosse dinâmica e ousada, mas que não perdesse o ar de fêmea frágil. O meu pai, que conservasse a boca fechada quando não tivesse nada para dizer, mas que só entreabrisse as pernas, como fez Sharon Stone no filme “Instinto Fatal”, se fosse absolutamente necessário. E o meu irmão, que se fossem homens os entrevistadores, abanasse o mais possível o rabo e empinasse até ao limite as mamas, mas que nunca ficasse sozinha com nenhum deles. Fiquei pelos cabelos.

Lá fui à entrevista. Eram dois homens: o Bernardo, que se apresentou como director de comunicação da empresa e o Nelson, como director de recursos humanos. Ambos na casa dos trinta, com aquele arzinho malandreco de quem tem muita tarimba. Estava a concurso um lugar para assistente. Mas quando lhes perguntei “assistente de quê”, foram muito evasivos. Foram dizendo que precisavam de uma mulher ainda jovem, sem o ser demasiado (é o meu caso, tenho 24 anos), com boa aparência, dominando o francês e o inglês, discreta, trabalhadora, sem problemas de horário, meiga (esta deixou-me a pensar: “meiga?”), com bom feitio e fácil relacionamento com as pessoas. Era mesmo um emprego à minha medida. Correspondia inteiramente ao meu perfil, não é verdade, Diário querido?

A entrevista correu assim:

– Fala inglês? – perguntou o Bernando.

– Falo, sim – respondi.

Não, não! – guinchou o Nelson. – Tem de responder em inglês, percebe?

Está bem – disse eu -: Yes, I do.

Good! – prosseguiu o Bernardo. – Quantos anos tem?

I’m twenty four.

– Não precisa de o dizer em inglês – disse o Bernardo, com um sorrisinho malandro a inundar-lhe a barbicha (o homem tinha barba). – E francês, fala?

– Quer que lhe responda em francês? – perguntei.

– É conveniente – atirou o Nelson.

Bien – comecei, confiante –, je parles français trés bien.

Merci, Lina – disse o Bernardo. – Vous été une femme très belle. – Are you married?

No, I’m not. Mas tenho namorado – respondi.

– E vive com ele… – adivinhou o Nelson.

– Desculpe, mas não sou obrigada a responder a essa pergunta – disse eu.

Please, Lina, translate all you said in English – ordenou docemente o Bernardo. – Senão ainda arranjamos para aqui uma babilónia terrível.

– Está bem – concordei e disse -: I’m sorry, but I refuse to answer that question: isso é uma pergunta muito pessoal, não é? – respinguei.

Vous été complètement folle, Lina – disse Bernardo, sorrindo. – Mais vous étés aussi trés sympathique.

– Tem experiência como secretária? – perguntou o Nelson.

– Tenho alguma experiência, sim. Já trabalhei como secretária nalgumas empresas.

Really! – surpreendeu-se o Nelson. – What companies, if you don’t mind?

– Três: two in Lisbon and one in Setúbal.

One in Setúbal, hem! – exclamou o Bernardo. – Uau! Que currículo que a menina tem. Fantastique. – E que fazia nessa empresa de Setúbal: vendia sardinhas assadas?

– Fique sabendo que era uma empresa de pronto-a-vestir! – respondi, com maus modos.

– Fashion business, isn’t it? – perguntou Nelson, sempre com aquele ar de gozão.

Yes, yes! – concordei. – Eles vendiam de tudo: suitcases, trousers, shirts, dresses…, everything!

O que é para si a comunicação? perguntou o Bernardo, repentinamente, a ver se me apanhava desprevenida.

– Posso responder em português? – pedi.

– Pode escolher responder em francês ou inglês – interrompeu o Nelson.

– Vocês não me estão a facilitar nada a vida: são ambos muito mauzinhos – disse eu, arregalando os olhos, ora para um ora para outro. – Mas, se querem saber in my opinion communication means power, money and success, não sei se me fiz entender.

–  Of course you did, my dear – elogiou o Bernardo. – Vous étés adorable, ma chérie. Votre réponse é muito inteligente, sim senhora. We must have lunch together one of these days, fofinha.

– Está a convidar-me para almoçar e ainda mal me conhece… – contrapus, cruzando e descruzando as pernas, tal qual a Sharon Stone. – Não sei se será boa ideia…

– Ele não está a convidá-la, querida – esclareceu o Nelson -: está a dizer que a menina tem de ir almoçar com ele, percebe?

Non! Impossible! – disse eu, a sorrir. – My boyfriend is a very jealous person. And he is a police officer, too – menti -: trabalha na Judiciária. Até eu tenho medo dele!

Oh my God! – gritou o Nelson. – Era só o que nos faltava!

Mon Dieu – sussurrou o Bernando. – A Lina desculpe toda esta confusão. É claro que estávamos a brincar. Tout court, afianço-lhe. Não é nada o nosso estilo perseguir sexualmente as candidatas que vêm às entrevistas. Não é Nelson?

– Pois – concordou o Nelson. – O sex appeal não é um atributo indispensável para a conquista do lugar, fique descansada.

– Mas ajuda, não é? – interroguei.

Well – condescendeu o Bernardo. – Unfortunately, or maybe not, you are right. Mas não precisamos de apalpar as candidatas. Em definitivo!

– E então: fico ou não com o lugar? – perguntei.

– Fica, pois – informou o Nelson. – E há-de fazer o favor de dizer ao seu boyfriend lá da Judiciária que a tratámos bem.

– E, last but not the least, que o convidamos para almoçar um dia destes – reforçou o Bernardo. – A Judiciária é uma instituição prestigiada: há que tratar bem as instituições, não é verdade? Quanto a si, Lina – continuou -, pode vir já trabalhar na próxima semana. Mas o almoço com o seu polícia pode ficar para depois, está bem?

Saí de lá eufórica e já contei a toda a gente que ia trabalhar como assistente para uma empresa de comunicação, em Lisboa. A empresa chama-se Touch Me, um nome um pouco estranho para uma empresa de comunicação, não achas, querido Diário? Touch Me parece mais um nome de uma casa de massagens. Mas, que digo eu? Até pareço uma atrasadinha que chegou agora da província! Hoje em dia as empresas têm nomes assim, modernos, bombásticos, que muitas vezes nada têm a ver com o negócio que desenvolvem. Além disso, o Bernardo e o Nelson, apesar daquele ar pouco recomendável, não iam admitir-me numa empresa esquisita, depois de eu lhes ter dito que o meu boyfriend era da judiciária, não achas querido Diário?

I’m very happy, très content, felicíssima!

Tua Lina

(Continua)