Setúbal na Rede – Como é que surgiu a sua candidatura à presidência da Câmara do Seixal, em 1976, pela lista da FEPU?
Eufrázio Filipe – A minha candidatura ocorreu na sequência do exercício do cargo que ocupava desde 1974, uma vez que era o presidente da Comissão Democrática Administrativa da Câmara do Seixal. Eu era militante do PCP desde os 18 anos e presidente da Comissão Administrativa, pelo que a minha candidatura surgiu de forma natural. Concorri pela FEPU, uma frente eleitoral que envolvia comunistas e não comunistas, nomeadamente elementos do antigo MDP/CDE, e vencemos as eleições com 53,3% dos votos, elegendo cinco vereadores. Naquela época, o Seixal era um concelho profundamente operário, e ainda com alguns trabalhadores rurais e pescadores. O sector dos serviços foi evoluindo progressivamente, mas muito mais tarde. Era o concelho das fábricas, nomeadamente a Siderurgia, a Mundet, a fábrica da pólvora, os lanifícios e a construção naval. Assim, era natural que, a seguir ao 25 de Abril de 1974, o partido mais organizado do concelho tivesse uma tão grande adesão por parte da população. Aliás, a população do Seixal era, na altura, cinco vezes menor do que a actual. Lembro-me, inclusivamente, que tudo estava a começar no poder local. Por exemplo, quando entrei na Câmara, para a Comissão Administrativa, existiam apenas 120 trabalhadores contra os 1600 que existem actualmente.
SR – Partiu para as campanha eleitoral convicto de que iria ganhar?
EF – Estava convicto de que ia vencer mas mantinha uma grande expectativa relativamente ao resultado final, precisamente porque estas eram as primeiras eleições democráticas para as autarquias locais. Como se sabe, antes de 1974 as câmaras municipais eram nomeadas pelo Governo, e entre 1974 e 1976, as comissões administrativas eram eleitas por uma assembleia popular. Foi o que aconteceu comigo, fui eleito numa assembleia popular realizada na Casa dos Pescadores. Tinha, na altura, 25 anos. Por essa razão, o facto de ter sido eleito democraticamente teve um significado muito grande para mim. Isso representou a confirmação de todo o trabalho entretanto realizado, na autarquia, e, ao mesmo tempo, a confirmação de toda a adesão que eu julguei ter durante aqueles dois anos de Comissão Administrativa.
SR – Houve um trabalho anterior de sensibilização das populações para a importância deste primeiro acto eleitoral?
EF – Desde 1974 que, para além dos partidos políticos, todos estavam envolvidos na questão das primeiras eleições autárquicas. Aliás, a sociedade civil fervilhava pois estávamos num período revolucionário. Mas a nível institucional também houve um grande empenhamento na sensibilização das populações. Lembro-me, por exemplo, de que já no Boletim Municipal do Seixal, fazíamos uma ponte para estimular à participação das pessoas no acto eleitoral. O Boletim Municipal iniciou-se em 1975 e recordo-me de que era feito praticamente por mim, pois naquela altura não havia jornalistas e muito menos técnicos para desempenhar esta tarefa. Em termos de técnicos, quando entrei na Câmara do Seixal havia apenas um engenheiro civil, um arquitecto e um chefe da secretaria não licenciado. Mas a sensibilização foi sendo feita através, quer do Boletim Municipal quer através do jornal Tribuna do Povo, ligado à Igreja, instituição com a qual, desde sempre, mantivemos uma grande ligação.
SR – Como é que correu a campanha eleitoral?
EF – A campanha correu bastante bem, aliás, vinha na sequência do trabalho da Comissão Administrativa. Fazíamos a ligação com as pessoas em diversos locais, fizemos campanha nas colectividades, nas comissões de moradores que, entretanto, iam proliferando por todo o concelho, nas fábricas com as comissões de trabalhadores, e nos contactos directos com a população, porta a porta, nos mercados e nas escolas. Foi um período revolucionário e, como tal, as pessoas viveram aquela campanha de uma forma muito particular. Até a linguagem era diferente. Foi uma campanha muito intensa, embora se tivesse reduzido praticamente ao PCP e ao PS, uma vez que o CDS/PP e o PSD, na altura PPD, quase não tinham expressão. Lembro-me de que, por vezes, davam-se discussões e confrontos verbais, com alguns palavrões à mistura. De vez em quando cruzávamo-nos com a caravana do PS e, como era habitual naquela altura, chamávamos nomes uns aos outros. A linguagem e as ideologias estavam muito frescas, muito acesas, os próprios partidos tinham uma actividade muito mais intensa mais militante do que actualmente, e todos nós estávamos num processo de aprendizagem. Mesmo em termos de organizações políticas e das próprias instituições, nem sempre era possível contrariar um certo tipo de comportamento natural e expontâneo das populações. O chamado poder popular existia, mesmo.
SR – Foi eleito com 53,3% dos votos contra 30,8% do PS. Esperava um resultado destes?
EF – Esperava ser eleito com uma margem confortável e a maioria absoluta sempre esteve nas nossas perspectivas. Analisando os resultados das autárquicas seguintes, esta até foi das médias mais baixas que as equipas que eu coordenei obtiveram no Seixal. Fui presidente durante seis mandatos, sempre com maiorias absolutas. Acho que o resultado das autárquicas de 1976 sofreram com luta nacional, que era muito acesa. E admito que algumas pessoas, que não sendo militantes do PCP, não tenham votado. Mas com o trabalho e empenhamento que demonstrámos, passaram a votar e as maiorias absolutas dispararam nos anos seguintes.
SR – Como é que decorreu o primeiro mandato como presidente eleito?
EF – Na altura não existiam vereadores a tempo inteiro porque a lei não o permitia. Então tínhamos que nos sujeitar à disponibilidade que as empresas davam aos seus trabalhadores para, de vez em quando, exercerem as suas funções nas autarquias. O único eleito que desempenhava as funções a tempo inteiro era o presidente da Câmara, pelo que trabalhei sozinho durante bastante tempo. Em resultado disso, eu muitas das vezes dormia na Câmara. Era uma função de praticamente 24 horas por dia, pois estava tudo por fazer. Por um lado, tinha muito trabalho a fazer no sentido de resolver os muitos problemas das populações, e por outro tinha de acompanhar a evolução política local e nacional.
Na Câmara, as dificuldades eram muitas. Lembro-me de que existiam muitos problemas administrativos que nos dificultavam o trabalho. Um deles foi a passagem das máquinas de escrever manuais para as eléctricas. Havia carências de todos os níveis, como era o caso da inexistência de bombeiros. As ligações telefónicas ainda eram manuais, praticamente não existiam transportes, saneamento básico era coisa que quase não existia e só um terço da população é que tinha água canalizada. Quando entrei para a Comissão Administrativa, a pessoa que apanhava os cães vadios ainda o fazia numa carroça puxada por um burro. Começámos um trabalho a partir do zero, em 1974, e quando fui eleito, em 1976, já tínhamos projectos em andamento. Foram também anos de grande aprendizagem por parte do executivo camarário porque, estando nós na génese do poder local, não sabíamos nada e não tínhamos quem nos ensinasse.
SR – Qual foi a primeira medida que levou à prática após ter tomado posse?
EF – A primeira medida foi reunir com os 120 trabalhadores da Câmara para dizermos que estávamos todos empenhados em servir a população e defender as conquistas de Abril. Aliás, uma das minhas primeiras grandes preocupações foi continuar o trabalho que tinha iniciado na Comissão Administrativa, no sentido de organizar a população em comissões de moradores. Tínhamos a ideia de que a população organizada defenderia melhor os seus interesses e seria um interlocutor válido junto da Câmara Municipal. Isto evitaria que tivéssemos, permanentemente, de decidir as coisas em plenário. As populações organizaram-se em comissões de moradores e esta organização foi da máxima utilidade, não apenas para a resolução dos problemas do concelho como também para a criação de um espírito cívico. Este modelo funcionou tal modo que ainda hoje é utilizado com sucesso. As comissões de moradores, que agora se chamam associações de moradores, têm uma enorme utilidade no concelho do Seixal. Basta lembrar as zonas em reconversão urbanística.
SR – Nesse primeiro mandato como presidente eleito, pode contar com o trabalho dos vereadores da oposição?
EF – Demos tarefas a todos e os vereadores do PS trabalhavam como podiam, de acordo com os condicionalismos que tínhamos. À medida que o tempo passava, evoluíamos democraticamente para um são convívio sem, no entanto, perdermos as diferenças políticas. Creio que, no poder local do concelho do Seixal, sempre ganhámos por não esconder as diferenças. E foi pelas diferenças que nós continuámos a ser reconhecidos pela população. Os vereadores da oposição remetiam-se praticamente aos plenários da Câmara, para as decisões finais. As pessoas não estavam a tempo inteiro e não havia condições para mais. Propostas alternativas não tinham, pois não havia dinâmica nem organização suficiente do PS para que isso pudesse acontecer.
SR – Como é que classifica o seu primeiro mandato como presidente eleito?
EF – Foi um mandato muito rico, mas não deixo de dizer que todos os outros também o foram. Estávamos tão empenhados em levar a água canalizada às casas das pessoas como o estávamos na preservação da Siderurgia e das outras fábricas, de modo a que as pessoas não perdessem os seus postos de trabalho. Estávamos empenhados em que as entidades patronais respeitassem os direitos dos trabalhadores, em que o dia da mulher fosse comemorado e sentido por todos, ou seja, trabalhámos para que o Seixal tivesse condições de vida. As carências eram de tal ordem que existiam apenas três parques infantis, cinco abrigos para passageiros dos transportes públicos e muitas das casas nem sequer tinham sanitários.
SR – Depois das eleições, a Câmara passou a dispor de verbas atribuídas pela administração central. De que forma é que esta dotação veio melhorar o trabalho do município?
EF – As coisas mudaram, em relação à época das comissões administrativas porque, nessa altura, as câmaras recebiam dinheiro da seguinte forma: o Governo enviava as verbas para o distrito todo e os presidentes das comissões administrativas reuniam-se nas chamadas RIC, Reuniões Inter Concelhos, para decidir a distribuição das verbas. Às vezes com enormes polémicas pois nem sempre estávamos todos de acordo. A partir das primeiras autárquicas, de forma progressiva e à medida que a organização do Estado evoluía, passaram a existir dotações financeiras da administração central para cada uma das autarquias. Até aí vivíamos dos consumos da água, de algumas taxas como era a das bicicletas, a dos cães e a dos cemitérios.
SR – O que é que o motivou para o desempenho das funções de presidente da Câmara, numa altura em que os autarcas ganhavam pouco e tinham poucas condições para trabalhar?
EF – Sempre funcionei por convicções e pela noção do serviço público. Nunca tive ambições políticas durante os seis mandatos como presidente da Câmara, tal como não tenho agora enquanto presidente da Assembleia Municipal. Cheguei a ser membro do Comité Central do PCP, vice-presidente da Associação Nacional de Municípios, presidente da Associação de Municípios do Distrito de Setúbal, director da revista Movimento Cultural, fundador da Associação dos Eleitos Comunistas e Outros Democratas, vice-presidente da Área Metropolitana de Lisboa e mais uma série de coisas. Tudo isto por amor ao serviço público e por amor à terra dos meus avós e dos meus pais. Aliás, com a minha estrutura mental e cultura pessoal, depois de ter presidido à Câmara o Seixal durante 23 anos – e saído de forma voluntária por achar que era tempo de dar lugar a outra pessoa – era impossível candidatar-me à presidência de qualquer outro município. Acho que os autarcas têm de gostar do chão que pisam. Estou muito ligado ao Seixal, ao meu partido e ao meu país. Aliás, são estas as três bandeiras em que me reconheço.
Escolhi o caminho do poder autárquico por convicção e numa altura em que nem sequer era financeiramente vantajoso ser autarca. Antes de me decidir pela Comissão Administrativa frequentava direito, em Lisboa, era gestor de recursos humanos numa empresa belga e tinha uma boa carreira profissional. Estava financeiramente bem e vim para a Comissão Administrativa ganhar bastante menos do que aquilo que auferia na empresa. Cometi aquilo que poderia ter sido uma imprudência, pois ninguém sabia muito bem onde a revolução ia parar, e despedi-me para assumir a Comissão Administrativa. Mas as causas e convicções falaram mais alto e assumi o caminho. E creio que a população do concelho sempre gostou muito de mim, independentemente das lapelas político-partidárias.
SR – O que é que o marcou mais naquela época?
EF – O que mais me marcou foi o facto de ter crescido com o meu concelho e, ao mesmo tempo, a consciência de que ajudei a melhorar as condições de vida das populações e a colocar o Seixal no mapa do país. Aprendi muito com os outros, ensinei também alguma coisa e foi com esta postura que, passados 23 anos decidi não me recandidatar. Entendi que, na Assembleia Municipal continuaria a poder ’emprestar’ a minha experiência e ser útil à população. Independentemente da vontade político-partidária e da vontade da generalidade da população – como se vê pelos resultados da eleição da Assembleia Municipal, cuja presidência ganhei -, achei que 23 anos de presidência da Câmara era suficiente e que essa era a altura própria para me retirar da função. Agora, continuo a dar a minha experiência através da Assembleia Municipal.
SR – Nunca se arrependeu de ter dado tantos anos à política e, particularmente, ao poder local?
EF – Nunca me arrependi porque o que fiz foi com base em convicções e ideais. Por outro lado, nunca permiti que o poder me subisse à cabeça. Nunca exerci o poder pelo poder, mas sim por causas e convicções.
SR – Alguma vez sentiu que o facto de ter governado o concelho durante 23 anos, com maiorias absolutas consecutivas, possa ter sido um factor impeditivo de uma visão mais alargada do poder autárquico?
EF – Nunca senti isso, e o facto da população me ter dado seis maiorias absolutas consecutivas quer dizer que o concelho se revia no meu trabalho. Quando me retirei voluntariamente foi pelo facto de ter percebido que, quer queiramos quer não, e por muito novos que ainda sejamos, aquele índice de criatividade e de inovação já não é o mesmo. Por muito que pensemos que ainda podemos dar ao poder local, tantos anos no poder levam à perda de dinâmicas e capacidade inovadora. Nós temos de saber estar e saber servir, pelo que a minha não candidatura a um sétimo mandato na presidência da Câmara foi também uma forma das pessoas entenderem o quanto estamos desapegados do poder quando queremos servir bem as comunidades.
SR – Actualmente como é que vê o concelho do Seixal?
EF – Creio que aos meus olhos e aos olhos da população do país, o concelho do Seixal constitui um exemplo, quer em diversas áreas de intervenção quer ao nível do exercício do poder local. O exercício do poder local significa serviço à comunidade, independentemente das suas simpatias partidárias. A primeira bandeira de um autarca deve ser a bandeira do seu município e só depois a bandeira do seu partido. Não temos de servir os eleitores mas sim as populações. As pessoas percebem isso, pois quando se deparam com um autarca que serve o concelho, independentemente dos partidos, revêem-se automaticamente naquele cidadão mesmo que não se revejam no partido em que ele está filiado. E acho que foi isso que aconteceu comigo.
SR – 25 anos depois de instituído o poder local democrático em Portugal, o que é que mudaria neste sistema?
EF – Creio que é reconhecido por todos que o poder local é uma das conquistas do 25 de Abril que ainda está em vigor em todas as suas dinâmicas e criatividade. Diria que muito do bem estar das populações, a nível nacional, tem na sua génese o exercício do poder local. Sendo assim, é fácil reconhecer ao poder local esta escola de virtudes que tem sido ao longo dos anos. Mas, nesta altura, creio que o país perde bastante se não houver uma descentralização, se não forem reforçados os meios e as competências do poder local. As administrações centrais ainda têm poderes excepcionais que permitem fazer maldades à vida das populações sem que as autarquias locais possam intervir. Apesar de reconhecer os méritos do poder local, quando chega a altura de descentralizar a administração central agarra-se ao poder e não descentraliza. 25 anos depois, o poder local ainda é visto como não tendo atingido a maioridade. É preciso que a administração central reconheça a maioridade do poder local autárquico porque isso é fundamental para a melhoria da vida das populações.