[ Dia 28-01-2002 ] – Ezequiel Lino, antigo presidente da Câmara Municipal de Sesimbra.

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Setúbal na Rede – O que é que o levou a candidatar-se à presidência da Câmara de Sesimbra, em 1976?

Ezequiel Lino – Fui quase empurrado pelas circunstâncias. Estive na direcção do Sindicato dos Bancários, entre 1972 e 1975, embora tenha vivido praticamente todo o último ano na Comissão Administrativa, a que presidi. Não me recandidatei à direcção do sindicato e terminei as funções na Comissão já fora da vida sindical. Entretanto fiquei viúvo e decidi dar uma volta à minha vida. Não tinha qualquer intenção de fazer carreira política, por isso queria regressar ao banco. E matriculei numa faculdade para fazer o curso de Economia. Quando se desencadeou o processo para a realização das eleições autárquicas eu disse que não tinha qualquer intenção de concorrer.

O MDP, que, em conjunto com o PCP, formava a coligação FEPU, fazia questão de que o cabeça de lista fosse do seu partido. Naquela altura, o MDP tinha uma força enorme em Sesimbra e fez finca-pé desta decisão. Ora, em 1974, quando eu voltei a Sesimbra, saí do PCP para me filiar no MDP, porque o Partido Comunista não tinha grande organização no concelho. Por essa razão fui candidato pelo MDP à Assembleia Constituinte. Propuseram João Manuel Pinhão, mas ele não aceitou porque estava a terminar a licenciatura. E foi na véspera da entrega das listas que concordaram com o meu nome. A proposta foi-me feita e eu senti-me na obrigação de aceitar, embora não acreditasse muito numa vitória da FEPU – Em 1976, a palavra socialismo dominava a mente das pessoas e o PS tinha um peso enorme, quer no país quer no concelho de Sesimbra, onde era maioritário. Mas lá concorri pela FEPU e comigo estavam nomes como o de Augusto Covas, do MDP, Rosa Baluga, que hoje é do PS, e João Martelo.

SR – Quando disse que sim, tinha a noção do que lhe era pedido?

EL – Não tinha essa noção. Aliás, eu aceitei por estar ainda numa onda revolucionária. Ou seja, a minha resposta teve a ver com uma reacção emocional ao processo revolucionário. Se tivesse raciocinado, não teria aceite. Se acreditasse no destino, diria que foi o destino que me fez aceitar ser candidato. Passei a ser um político a tempo inteiro e acabei por me fixar e casar em Sesimbra.

SR – Os resultados eleitorais deram-lhe 43,3% dos votos. Foi surpreendido pela vitória?

EL – Completamente surpreendido. Aliás, estava toda a gente convencida que o PS ia ganhar. De tal maneira que a mulher do candidato socialista, Raul Rodrigues, tinha tudo preparado para festejar a vitória. Até se contava que ela tinha comprado um vestido novo para a cerimónia. Mas de repente a FEPU ganhou e toda a gente ficou admirada. Até eu, porque fiz toda a campanha de uma forma descomprometida e calma, pensando que, quando aquilo acabasse, ia à minha vida e voltava para o banco.

SR – A que é que se deveu essa vitória?

EL – Creio que foi pelo trabalho que desenvolvi junto das populações, no período da Comissão Administrativa, especialmente na freguesia do Castelo, que era determinante para decidir eleições. Como era a freguesia com mais carências, foi aquela em que mais apareci e mais trabalhei. Durante a vigência da Comissão eu tinha disponibilidade e ia a todo o lado, estava sempre com a população, ouvia as pessoas e tratava dos problemas, inclusivamente os de ordem familiar. Lembro-me de uma vez ter reconciliado uma família, na Azóia. Um casal pôs a sogra na rua e ela foi falar comigo. Lá agarrei no carro e fui ter com eles para os convencer a voltar atrás. Este é um exemplo de como eu era solicitado para tudo. Acredito que a vitória da FEPU se deveu ao reconhecimento do meu trabalho. Durante muitos anos, o eleitorado reviu-se em mim e deu-me vitórias consecutivas. Aliás, não foi por acaso que o PCP perdeu as eleições em 1997. Perdeu porque eu não me recandidatei. E o PS ganhou.

SR – Como é que decorreu a campanha?

EL – Correu de uma forma bastante animada porque o povo começava a politizar-se. É preciso ver que o concelho de Sesimbra nunca teve qualquer história de oposição política ao regime ditatorial. Houve apenas casos pontuais, como o de um grupo de pessoas que surgiu em apoio à candidatura do general Humberto Delgado. Entre eles estavam pessoas do MDP, como Augusto Covas, Aurélio de Sousa, Manuel Crespo e João Manuel Fernandes. Mas foi este o único acto que levaram a cabo. A vila era extremamente conservadora, de tal modo que quinze dias antes do 25 de Abril de 1974, os pescadores de Sesimbra receberam o Tenreiro de forma entusiástica. Por outro lado, a zona rural continuava completamente divorciada da política.

No período do PREC as pessoas começaram a conhecer a política e a mobilizar-se. Por isso, a campanha correu bastante bem. Não ocorreram problemas nem conflitos e as salas encheram-se de gente para nos ouvir. Fez-se uma campanha como hoje já não há: fomos às aldeias e esclarecemos as pessoas. Estávamos nas colectividades, nos largos e em casas emprestadas pela população.

SR – Sesimbra tinha a particularidade de ser formada por vários latifúndios. Conseguiu entrar nas herdades para fazer campanha eleitoral?

EL – Toda a faixa litoral, desde a Arrábida até à Lagoa de Albufeira, era composta por latifúndios. Curiosamente não tivemos problemas e conseguimos fazer a campanha eleitoral. No caso da Casa de Palmela, não ficaram sequelas da luta que, um ano antes, tínhamos mantido pela abertura da escola. E isso aconteceu porque o meu pai tinha sido trabalhador rural na Casa de Palmela e eu era afilhado de uma das filhas do Duque de Palmela. Quando eu era pequeno estava na moda baptizar os filhos dos trabalhadores rurais. Então, na Casa de Palmela arrebanhavam os miúdos e baptizavam-nos. Mas não puderam fazer isso comigo porque o meu pai, que era ateu, não deixou. Quando cheguei ao final do ensino primário, tinha 10 anos, fui considerado o melhor aluno do distrito e recebi cinquenta escudos de prémio e um diploma do Grémio do Comércio, de Setúbal.

Quando os duques de Palmela descobriram, propuseram pagar-me os estudos desde que o meu pai permitisse o baptizado. Foi assim que me baptizaram na capela do Palácio do Calhariz.

Mas em vez de me pagarem os estudos queriam levar-se para um convento, para estudar para padre. O meu pai disse que não e comecei a trabalhar aos 11 anos. Só muito mais tarde é que fui estudar para Lisboa, como trabalhador-estudante. Esta ligação aos duques de Palmela explica a ausência de dificuldades em fazer campanha nas herdades. Lembro-me de que usávamos uma linguagem revolucionária, completamente diferente da de hoje. Aliás, foi uma linguagem que os portugueses usaram até à altura em que o PS fez uma aliança com o CDS. Aí entrámos naquilo que, na altura, classificávamos de democracia burguesa. Em 1976 a campanha eleitoral dirigiu-se muito a questões relacionadas com o concelho, como as necessidades básicas da população, mas sem perder de vista questões nacionais como a consolidação da democracia no país.

SR – Porque é que se recandidatou aos cinco mandatos seguintes?

EL – Envolvi-me muito com os problemas do concelho, onde tudo estava por fazer. Fui autarca por paixão e nunca por imposição. Aliás, nos mandatos seguintes aconteceram algumas coisas que me levaram a contestar algumas posições do PCP. Tenho um espírito independente e dependo apenas da minha vontade, pelo que sempre fui indisciplinado, do ponto de vista partidário. Voltei a filiar-me no PCP em 1977, mas o meu espírito livre trouxe algumas sequelas. Nunca aceitei, por exemplo, que me impusessem uma reunião do partido sem que eu tivesse dito antes da minha disponibilidade. Eu tinha compromissos para com os sesimbrenses, tinha que fazer na Câmara e não queria pôr o partido à frente dos que me elegeram. Esta minha posição foi o princípio da discórdia. Portanto, no segundo mandato começaram as dúvidas sobre se eu seria, ou não, o melhor candidato. Por outro lado, sentia que alguns funcionários do partido tentavam intrometer-se nas questões da autarquia. Chegavam à Câmara a qualquer hora e entravam pelo gabinete dentro e isso eu nunca aceitei. Soube sempre distinguir entre o partido e a Câmara. 

SR – Que balanço faz do primeiro mandato?

EL – Foram anos de muita produção e de trabalho contínuo quase sem dinheiro. Havia uma enorme insuficiência de meios e não havia dotações financeiras para as câmaras como acontece actualmente. Então, todos os sábados os presidentes dos municípios acorriam a Setúbal para receber uns dinheiros da administração central. As verbas eram pouquíssimas e distribuíam-se de acordo com os projectos que íamos apresentando. Foi uma miséria franciscana. Lembro-me de que o concelho precisava de tudo, por isso, o primeiro mandato foi a continuação do que tínhamos iniciado na Comissão Administrativa. Virámo-nos para questões fundamentais como o abastecimento de água, o saneamento básico, a energia eléctrica e a construção de escolas primárias. Na vila, a grande luta foi a da construção do porto de Sesimbra. Organizámos os pescadores e os armadores, rumámos a Lisboa vezes sem conta mas a obra só se concretizou, se não estou em erro, no terceiro mandato.   

Do ponto de vista do executivo, a FEPU tinha ganho quatro mandatos e o PS três, mas estes vereadores eram de tal modo de esquerda que tempos depois alinharam numa facção de esquerda do Partido Socialista. Contudo, enquanto vereadores tentavam imprimir as suas ideias e acabavam por dificultar o trabalho da Câmara. Depois havia Augusto Covas, um homem muito duro, muito frio e maduro, que tentava ser o presidente. Até percebo porque ele tinha uma certa experiência e idade e eu era um jovem de 30 anos. Os problemas avolumaram-se e acabaram por criar algumas divergências entre o PCP e o MDP que em 1982 já concorreu sozinho.

SR – No entanto, o seu nome foi indicado para as eleições seguintes.

EL – Fui, mas o PCP sabia com o que contava. Lembro-me que, de cada vez que chegávamos às vésperas de eleições autárquicas, faziam-se muitas reuniões na sede do PCP, em Lisboa, para discutir o meu nome. Diziam que eu tinha uma personalidade muito forte mas nunca percebi muito bem o que queriam dizer com isso. O meu nome gerava polémica, mas acabavam por me propor para encabeçar as listas sem que eu cedesse nos meus princípios. Por isso é que, no caso do cabeça de lista do PCP, em Sesimbra, tinha de ser sempre o Comité Central a decidir. Sempre que se aproximavam autárquicas lá ia eu para as reuniões em Lisboa. Álvaro Cunhal perguntava-me: “camarada, o que é que se passa em Sesimbra?”. Depois de muita discussão, eu escrevia uma carta a dizer que não estava disponível para me recandidatar. A carta lá seguia os trâmites e ia parar a Lisboa. Quando eu passava da teoria à prática as coisas resolviam-se sem que eu tivesse de ceder nas minhas posições.

SR – Se não pretendia fazer carreira política, porque é que se recandidatou nos anos seguintes?

EL – Para além de querer continuar o trabalho que vinha fazendo, a minha vida pessoal deu outra volta que me fez encarar a política de uma outra forma. Em 1977 casei, fixei-me no concelho e assumi a vida política. Desta forma, fui reeleito em 1979, com 62,3% dos votos, a maior maioria absoluta de sempre, em Sesimbra. Lembro-me de que a APU obteve cinco vereadores, a AD elegeu um e o PS também um. Até 1997 tive sempre maiorias absolutas, mas nesse ano cansei-me e não me recandidatei. Foram mandatos bastante profícuos que mudaram um concelho em que estava tudo por fazer. Em 1993, fui reeleito mas já não obtive maioria absoluta. E sei que isso ocorreu por causa da questão do Meco e do Plano Director Municipal (PDM). Houve muita contra-informação na comunicação social nacional. Diziam que eu ia destruir o Meco e isso não era verdade. Mas isso reflectiu-se nos resultados eleitorais e perdi a maioria absoluta. 

SR – A perda da maioria absoluta terá, de alguma forma, contribuído para a sua indisponibilidade nas eleições de 1997?

EL – Não foi a perda da maioria absoluta porque a minha desmotivação já vinha de 1989. Nesse ano já não queria concorrer, mas acabei por aceitar a proposta do PCP. Quatro anos depois decidi levar à prática aquilo que sentia. Não estava disponível porque, para além de acreditar que tinha de haver mudança, já começava a ressentir-me de algumas injustiças. E a maior delas foi a que envolveu o Meco, que já vinha do mandato anterior. Apesar de tudo, fiz um último mandato e, curiosamente, com um homem do PSD. Inicialmente o PS não quis pelouros mas o vereador Manuel Adelino, do PSD, aceitou de imediato e desenvolveu um trabalho excelente na área das finanças.

SR – De que forma vê os 21 anos como presidente eleito da Câmara de Sesimbra?

EL – Esses anos, a juntar aos dois em que presidi à Comissão Administrativa, foram inolvidáveis. Foi uma experiência única que me marcaram para o resto da vida. Não quero ser juiz em causa própria mas não tenho dúvidas em afirmar que eu e as equipas que comigo trabalharam, marcámos profundamente o concelho. Sesimbra transformou-se radicalmente a todos os níveis. Quando lá cheguei não havia nada de nada. Eu sou o sócio fundador da Cercizimbra, uma associação de solidariedade social com uma importância fantástica. Havia poucas escolas primárias, secundárias era coisa que não existia e os miúdos tinham que ir para Setúbal ou para Almada estudar. Hoje saem dali para a faculdade e isso dá-me muita satisfação.

SR – Tantos anos da mesma pessoa no poder traz sequelas para a democracia?

EL – Acho que o poder nas mãos de uma pessoa durante tanto tempo é negativo do ponto de vista democrático, pois entendo a democracia como a participação efectiva dos cidadãos de uma forma consciente, independente de estarem organizados em partidos ou associações. Foi também por essa razão que decidi não me recandidatar em 1997. Nessa altura já as pessoas não participavam tanto na vida do concelho. Já naquela altura havia um sentimento nacional de que a política era para os políticos e, em Sesimbra era pior. As pessoas deixaram de participar nas comissões de moradores, deixaram de ir à discussão dos planos de actividades feita em todas as zonas do concelho, olhavam para mim como o salvador da pátria e achavam que a Câmara resolvia e decidia tudo por eles, sem que fosse necessário participarem.  Não fui eu que me afastei das populações, mas sim elas que se afastaram, progressivamente, da gestão da vida do concelho.

Isso começou a acontecer a partir dos anos 80 e fez-me sentir muito desiludido e, de certo modo, defraudado. Mas senti-me muito mais defraudado quando saí da Câmara. A memória das pessoas é curta e pouco tempo depois muito boa gente já nem me dava os bons dias. Andei sempre nisto por razões idealistas, nunca esperei que me bajulassem mas, sinceramente, esperava que o meu trabalho fosse reconhecido e que as pessoas participassem, efectivamente, na vida do concelho. O facto disso não acontecer, hoje em dia, deixa-me profundamente frustrado. Seja como for, valeu a pena todos aqueles anos de trabalho e não estou nada arrependido porque o que fiz foi por ter sentido que o devia fazer.

SR – 25 anos depois, como é que vê o poder local em Portugal?

EL – O poder local sofreu uma grande transformação ao longo destes anos e, hoje em dia, a sua gestão pouco tem a ver com atitudes meramente emocionais e afectivas. É uma forma de gestão algo empresarial, o que pode ser positivo desde que os autarcas tenham consciência de que o cidadão está primeiro. A autarquia não é um edifício mas sim as pessoas que vivem no concelho, por isso temos de resolver os seus problemas e responder às suas exigências. Essa é a grande força do poder local. Mas para que o poder local evolua é preciso dotar as autarquias de mais meios e competências. A melhoria das autarquias passa por uma maior capacidade de intervenção e isso consegue-se, definitivamente, pela regionalização. seta-8046037