• 01-07-2003 • |
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Rádio Caroline
Foi nos anos 60 do século passado que um grupo de carolas desencantou um barco, zarpou para fora das águas territoriais britânicas, lançou ferro e começou a difundir um novo tipo de música – o rock. Também o formato da programação era estonteante e atrevido, colocando em causa as regras conservadoras da BBC monopolista.
Funcionou até que os zelosos políticos de sua majestade estenderam as leis para lá das águas territoriais e afundaram o posto móvel radiofónico mais in daquele tempo. Os políticos de todos os quadrantes sabem sempre esticar a lei que lhes falta.
Disco que estivesse na programação, artista que lá fosse para uma entrevista estava automaticamente colocado na galeria dos marginais que valia a pena ouvir, entrando no grupo dos artífices que acrescentam a novidade e a provocação, e afrontam o sistema paralítico dos valores não renováveis.
Foi assim, eu era puto. Por cá o exemplo e a discussão sobre esta aventura valia um brilhozinho nos olhos da criatividade e da esperança da época de censura.
Vem esta introdução a propósito do estado bolorento a que chegou a rádio deste país, não só no que respeita a divulgação afunilada de música portuguesa, mas, grandemente, sobre a data de validade da maior parte das canções que hoje, em exercício mimético, as nossas estações nacionais e algumas locais colocam em programação diária.
Dizem-me que são as empresas de estudo de mercado – e os peregrinos consultores estrangeiros – que definem as programações. Afirmam que essa é uma forma mais científica de fazer rádio e rentabilizar os investimentos publicitários dos clientes.
Pois, para além do normal e português arranjinho entre a verdade e a coerência dos estudos de mercado e o serviço que os clientes desses estudos esperam, poderá a rádio onde já se perdeu o contacto da mão com o disco, tornar-se um mero somatório de canções escolhidas estatisticamente? Poderá a escultura ser dirigida futuramente por normas científicas?
Calma, sei a distância que vai entre escultura e trabalho radiofónico. Só me interessa em ambas as disciplinas afirmar que é a intervenção do homem, a sua vontade, a sua inteligência e a sua aptidão, que as torna únicas, marcos de um momento.
Talvez haja quem ache que o futuro das nossas vidas esteja na extensão real da saga Matrix. Acrescento: cada um pode viver dentro da banda desenhada que quiser, mas é bom que saibamos distinguir entre a vida real e a disfunção.
Ouvimos cada vez mais canções do passado, como se no tempo de hoje não houvesse produção musical. Das edições actuais, incluindo as estrangeiras, apenas chegam ao grande público as trutas, como na gíria profissional baptizamos os grandes nomes da pop e do rock.
Os locutores, a quem já se chamou comunicadores – hoje carregam mais em botões – proclamam de meia em meia hora que aquela é uma estação com mais música e menos palavras. Anulados, vão informando que a palavra deixou de ser importante. Teremos, portanto, somadores de CDs em contínuo nas várias estações.
Suprimidas as palavras, deixámos de conhecer amiúde quem está a tocar o quê, e, com essa simples acção, cumprir a vontade de comprar o disco daquele artista.
No meio de tudo isto andam as editoras cujo fundo de catálogo é um negócio da China – com as reedições em CD das grandes obras do vinil – reposto no mercado com reduzidos custos.
Será por isto que mansamente as multinacionais aceitam que a rádio se tenha formatado a divulgar essas reedições? Ou, no concreto: poderá, por exemplo, a Universal portuguesa solicitar mais airplay para o novo CD do David Fonseca numa determinada estação de rádio se essa mesma estação lhe anda a mostrar o catálogo dos anos 80 dos U2, artista internacional da mesma editora?
Tenho um amigo que adora a teoria da conspiração e não se contenta com as minhas histórias sobre a indústria do disco. Para ele, nesta era de globalização, só nos resta a cultura para sermos diferentes no meio da normalização desenfreada que nos submerge: uma espécie de aldeia gaulesa de um Astérix luso (o Viriato foi apunhalado por um companheiro a troco de umas moedas, a história repete-se e repete-se), cuja poção mágica resida nas múltiplas formas da cultura indígena. Mas ele vai mais longe e chega ao ponto de desconfiar que uma mega central de intoxicação – naturalmente controlada pelos americanos – se entretém a enfraquecer as independências culturais dos irredutíveis.
Noutro departamento desta tertúlia há quem, sorrateiramente, fale que a malta está a precisar de uma verdadeira Rádio Pirata para estoirar com as normas, o formato e os compromissos desta rádio cinzenta que nos cerca.
Vamos ver, a discussão está no adro.
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