“Os países de leste são uma ameaça para esta fábrica em Setúbal”
Fundada em 1975, a fábrica de Setúbal do grupo italiano Merloni dedica-se à produção de frigoríficos das marcas Ariston e Indesit que se destinam sobretudo ao mercado europeu, já que apenas dez por cento dos produtos fabricados ficam em território nacional. Com a emergência dos mercados do leste europeu, que se tornaram no fruto apetecido das grandes multinacionais, a empresa de Setúbal enfrenta cada vez mais dificuldades, sendo o “seu equilíbrio muito débil” e estando a unidade constantemente “ameaçada pelo fantasma da deslocalização”, tal como afirma João Paulo Mendes, director industrial da fábrica sadina. Em entrevista ao “Setúbal na Rede”, o director fala das dificuldades para manter a competitividade da empresa, acusa o Governo de “não ser suficientemente rápido a tomar decisões” e de “não conceder apoios” para que este tipo de empresas possam ser mais competitivas e lamenta ainda que as contestações laborais dentro da fábrica estejam “tão polítizadas”. Apesar dos tempos difíceis e de reconhecer que esta unidade necessita “de mais investimento que as outras empresas do grupo”, o director mostra-se confiante na continuidade da fábrica, já que está prevista a instalação de uma empresa de fabricação de chapa no pólo industrial de Setúbal que pode ajudar a diminuir os custos das matérias-primas, tornando a Merloni sadina mais competitiva.
Setúbal na Rede – A Merloni é uma empresa mais conhecida na região de Setúbal devido às contestações laborais do que à sua actividade produtiva.
João Paulo Mendes – Eu contradigo essa afirmação, porque embora a empresa não seja conhecida por Merloni é conhecida pelas suas marcas Ariston e Indesit, duas marcas que detêm 25 % da cota de mercado, sendo a Merloni líder de mercado em termos de comercialização de electrodomésticos de linha branca.
SR – Sim, mas na realidade são as marcas que são conhecidas e não a empresa.
JPM – É verdade, muito poucas pessoas sabem quem é a Merloni, excepto na região de Setúbal porque empregamos algumas pessoas daqui. Todos pensam que os frigoríficos são feitos no estrangeiro, quando na realidade nós fabricamos 380 mil frigoríficos por ano.
SR – É política da empresa não divulgar que fabrica esses electrodomésticos?
JPM – Eu penso que isso acontece um pouco com todas as marcas. Em Portugal existe a tendência de considerar que o que é estrangeiro é que é bom. Uma vez que a publicidade é feita através das marcas e não da empresa, muito poucas pessoas conhecem a Merloni. Esta é uma situação que vem desde o início da empresa e dificilmente virá a ser alterada. Esta fábrica já é bastante antiga, era a antiga Frisado e na altura fabricávamos várias marcas. Actualmente dedicamo-nos apenas ao fabrico da Ariston e da Indesit e o grupo ocupa o terceiro lugar no fabrico de electrodomésticos a nível europeu.
SR – Qual é o peso desta fábrica de Setúbal no mercado europeu?
JPM – Cerca de 90% da nossa produção destina-se à exportação e os restantes 10% ao mercado nacional. Como o nosso sector comercial, sediado em Lisboa, não tem que comprar obrigatoriamente à fábrica de Setúbal, nós temos que ser muito competitivos, mesmo dentro do grupo. Temos mais fábricas que produzem frio, duas em Itália, uma na Turquia, uma na Rússia e outra em Inglaterra, esta adquirida recentemente, além de termos que enfrentar a concorrência dos países de leste. A Polónia é um mercado que está muito próximo da Europa central e dos grandes mercados, têm uma mão-de-obra muito mais barata e especializada que a nossa e com matérias-primas também mais baratas. Para nós, o grande perigo são os novos países de leste que se preparam para entrar na Comunidade Europeia.
SR – De que forma é que esta fábrica já se começou a proteger contra essa ameaça?
JPM – Nós estamos a aplicar um plano de máxima retenção de custos. Porém, precisávamos de fazer alguns investimentos no sentido de rentabilizarmos a produção, mas com a crise, os investimentos têm sido diminuídos. Para ganhar competitividade têm que se fazer investimentos e nós tentámos alguns apoios através do POE que nos foram negados. Devido à crise que se vive na Europa e sendo a Merloni uma empresa essencialmente europeia, sente dificuldades acrescidas. Como estamos na periferia, acabamos por ter pouca força para fazermos reivindicações. Além disso, muitas vezes os políticos levam muito tempo a tomar decisões e na indústria as coisas passam-se muito rápido. Essa situação leva a que, mesmo sem apoio externo, tenhamos que continuar a fazer alguns investimentos do próprio bolso.
Em termos de mercado, exportamos sobretudo para França, Inglaterra, Itália e um pouco para Espanha, mercados dos quais a Polónia está muito perto. Um real exemplo deste risco foi a produção de fogões da nossa fábrica do Sabugo, que foi deslocalizada para a Polónia com maior rentabilidade para a Merloni. Enquanto em Portugal eram fabricadas 400 mil unidades, a unidade produtiva da Polónia tem capacidade para fabricar um milhão e está localizada perto dos principais mercados europeus. De facto, os países de leste são uma ameaça para esta fábrica em Setúbal, bem como para inúmeras fábricas em Portugal.
SR – Isso significa que esta fábrica vive com o fantasma da deslocalização?
JPM – Sim, mas não é um problema novo e tem sido transmitido aos trabalhadores. Quando existe uma crise a nível europeu e não se vendem tantos electrodomésticos com seria desejável, é necessário diminuir a produção e a nossa fábrica é uma das mais pequenas dentro do grupo Merloni. Enquanto há alguns anos os nossos 80% de produção se destinavam aos mercados português e espanhol, hoje produzimos para mercados mais afastados. Para nós, é fundamental sermos competitivos dentro do próprio grupo e até agora temos conseguido.
A nossa estabilidade passa também pelo investimento. Neste momento estamos a fazer frigoríficos aqui com peças que vêm de Itália, pelo que pagam transporte para cá e depois pagam transporte já com os produtos acabados, o que encarece o custo total. Se pudéssemos ter aqui os moldes, recorríamos a fornecedores nacionais e baixávamos os nossos custos, mas como estamos em tempo de crise, há cortes no investimento e os nossos produtos vão perdendo competitividade, o que faz com que tenhamos um equilíbrio muito instável. De momento, vale-nos uma gestão muito apurada de todos os custos industriais.
SR – Do ponto de vista da gestão do grupo, seria mais rentável a deslocalização desta fábrica para os países de leste?
JPM – São hipóteses que estão sempre em aberto, até porque essa possibilidade já foi analisada muitas vezes. Durante os últimos dez anos temos vivido na incerteza e o que nos tem salvo é a nossa competitividade, algo em que continuamos a apostar. Temos conseguido mostrar que apesar do nosso produto ser feito mais longe, consegue chegar a França com um melhor preço que o mesmo produto fabricado em Itália. Porém, o nosso equilíbrio é tão débil que qualquer factor pode criar instabilidade. Neste momento já estamos a comprar energia a Espanha e não à EDP, tudo em nome da competitividade.
A situação que nos afecta não é exclusiva do nosso grupo, pois a maioria das empresas olha para os países de leste como uma boa possibilidade de mercado. Se em Portugal todos temos um frigorífico ou uma televisão, nesses países isso não acontece, pelo que se tornam mercados mais atractivos, e ter uma fábrica nestes países significa demarcar um espaço. Além disso, são regiões onde os custos energéticos e de mão-de-obra são muito mais baixos, o que em conjunto com os incentivos que vão ser dados às empresas para se deslocarem, nos traz riscos muito reais. Da parte do Governo não vejo rapidez suficiente para responder a esta ameaça, embora existam algumas ideias.
SR – Quais os apoios decisivos para manter a competitividade?
JPM – O apoio ao investimento era muito importante para uma empresa pequena como a nossa, porque qualquer pequeno investimento é decisivo. Para nós, termos dois ou três moldes que custam trinta e cinco a quarenta mil euros pode significar manter o fabrico anual de dez ou vinte mil frigoríficos a preços competitivos. Com a falta de investimento, o que poderá acontecer por exemplo é que os modelos que nós estamos a fabricar para França possam passar ser fabricados em Itália, porque chegam ao mercado um ou dois euros mais baratos. A nossa fábrica serve também como complemento da incapacidade produtiva da nossa congénere italiana. Se houver uma baixa no mercado a fábrica italiana manterá a sua produção, até porque a casa-mãe é italiana, e quem será mais afectada é a fábrica que serve de complemento.
SR – A falta de produção pode também justificar o encerramento?
JPM – A nossa situação não é de agora, já vem desde 1975. Nessa data, Portugal encontrava-se nas mesmas condições em que se encontra actualmente a Polónia, pois tinha mão-de-obra competitiva e oferecia facilidades para que as empresas se instalassem e agora são os países de leste a fazerem o mesmo.
SR – As alterações à lei do trabalho são importantes nesta situação?
JPM – Não digo que façam grande diferença, mas existem algumas situações que têm que ser alteradas, isto sem querer tirar direitos aos trabalhadores. Quando se pretende fazer alterações dentro das empresas, elas devem ser comunicadas aos trabalhadores e discutidas com eles, de forma a encontrar um consenso que permita manter a empresa em funcionamento e não misturando política com as decisões empresariais. Nesta fábrica, a Comissão de Trabalhadores e a gestão dos problemas internos é por vezes politizada, o que dificulta o encontro de soluções. Algumas pessoas estão mais preocupadas com a política do que com a empresa.
SR – Esta é, aliás, uma empresa sobejamente conhecida pelas contestações laborais.
JPM – Isso não é uma situação do grupo, até porque na fábrica do Sabugo as pessoas tinham uma postura diferente e preocupavam-se mais com a empresa. O problema está nesta unidade de Setúbal, mas nos últimos anos temos chegado sempre a acordo com a Comissão de Trabalhadores. Como eu dizia anteriormente, as contestações aqui são muito mais políticas que outra coisa.
SR – Existe algum ambiente de instabilidade entre os trabalhadores?
JMP – Penso que não, pois nem sequer existe um grande afastamento entre as várias hierarquias e os trabalhadores. A empresa mantém-se aberta à resolução de todos os problemas, desde que as exigências estejam dentro da legalidade. Uma reivindicação que temos actualmente prende-se com o facto de alguns trabalhadores terem saído da empresa, sem picarem cartão, para integrarem uma manifestação em Setúbal durante um plenário que se estava a realizar. Ora a lei diz que os plenários são feitos dentro da empresa e que nessas condições as horas são pagas pela entidade patronal. O que acontece é que nós pagámos as horas aos trabalhadores que se mantiveram dentro da empresa em plenário, mas descontámos as daqueles que abandonaram as instalações sem autorização e sem aviso de que o iam fazer. Esta é uma situação que está bem explicita na lei.
SR – Sente que existe alguma falta de compreensão dos trabalhadores face aos riscos que a empresa corre?
JPM – Da maioria, penso que não. A maioria sabe que existe risco, mas mesmo sabendo disso as pessoas são facilmente levadas por outras causas. No caso que referi anteriormente, as pessoas saíram para apoiar uma manifestação que não tinha nada que ver com a empresa.
SR – A região de Setúbal não é uma região muito favorável para a actividade empresarial?
JPM – Eu acho que não é essa a questão. Quando uma empresa nasce, entram pessoas novas e tudo se organiza de outra forma. No nosso caso, esta é uma empresa já muito antiga, com pessoas de uma determinada época, com uma ligação política muito forte. Actualmente, as pessoas mais novas preocupam-se mais em produzir, em evoluir e não em contestar.
SR – Mas os sindicatos criticam a Merloni, por exemplo, por recorrer muito ao trabalho temporário.
JPM – Essa é uma realidade que se justifica pela nossa sazonalidade. Nas épocas altas temos que produzir mais do dobro do que produzimos nas épocas baixas, pelo que precisamos de contratar mais mão-de-obra. Estamos a tentar, junto da sede, que essa situação seja minimizada, porque para nós também é do interesse termos maior estabilidade produtiva em vez de sazonalmente levarmos ao limite a nossa capacidade das máquinas. Mas a verdade é que não existem fábricas de produção constante, ainda que isso fosse o ideal, e o que vai acontecer nos meses de Novembro e Dezembro é que vamos ter excesso de pessoas para aquilo que temos que produzir.
SR – Como é que gere as críticas dos sindicatos?
JPM – Nas reuniões com os sindicatos tento mostrar que não temos outra alternativa. Este ano, em Janeiro, fizemos contrato com cerca de 50 pessoas que eram trabalhadores sazonais, porque tínhamos boas perspectivas de mercado, mas em Abril e Maio foi-nos cortada produção o que implicou a perda de aproximadamente 30 mil peças até Agosto, mês em que a produção começou de novo a aumentar. Esta aposta levou a que tivéssemos algumas perdas monetárias, porque o ano não decorreu como tínhamos perspectivado. De uma forma geral, sempre temos chegado a acordo com os sindicatos e penso que vamos chegar ao final do ano com um saldo positivo.
SR – As contestações não são agravadas em época de crise económica?
JPM – Não, os últimos anos têm sido de acordo.
SR – Como é que se perspectivava um bom ano, quando já se falava de crise?
JPM – Apesar de estamos em crise, a Merloni subiu do quarto para o terceiro lugar em termos europeus. Em termos de competitividade interna nós temos perdido terreno, mas em termos de competitividade externa a Merloni tem vido a ganhar, quer com a compra de outras fábricas, quer por incremento da produção. Nos últimos anos, a Merloni tem vindo a ganhar competitividade face aos seus congéneres europeus. A crise económica afecta sempre, e o facto de se vender muito pode não significar um ganho efectivo, porque tem que se vender com margens que cubram os custos.
SR – Disse que mais de 90% da produção da Merloni é para exportação, isso significa que a cota para o mercado português é muito reduzida ou é a capacidade do mercado que não permite mais?
JPM – A nossa produção chegou a ser de 80% para o mercado português e espanhol, actualmente produzimos cerca de 8% para Portugal e aproximadamente 14% para Espanha. O que aconteceu é que a filosofia da empresa mudou. Inicialmente a Merloni tinha a sua área comercial e de produção juntas, existia um director geral que acumulava a função de produzir e colocar o produto no mercado. A fase seguinte, a área comercial foi separada da industrial e começou a existir forte concorrência entre as fábricas do grupo, isto porque o sector comercial vai comprar à fábrica que vender mais barato.
SR – Mas não seria normal que a fábrica de Setúbal apostasse mais no mercado português, até porque isso se traduziria numa poupança de transporte?
JPM – Não, porque isso também depende dos investimentos. Apesar da mão-de-obra continuar a ser mais barata em Portugal e do transporte do produto acabado ficar mais barato, temos que olhar também para o transporte dos componentes e do custo da matéria-prima, uma vez que a Siderurgia Nacional nunca produziu chapa de qualidade para nós, o que nos obriga a comprar em Itália, França ou Holanda. Esta situação traduz-se num maior custo de matéria-prima, o que em conjunto com os elevados custos de energia e com a falta de tecnologia que temos, que implica uma menor produção, faz com que a nossa única mais valia seja apenas a mão-de-obra, o que conduz a um equilíbrio muito precário.
SR – O facto de ter menos investimento, embora tenha menos custos neste momento, a médio e longo prazo pode significar uma fábrica pouco competitiva.
JPM – É uma realidade e por isso considero que deveriam haver fundos de apoio ao investimento por parte do Estado, porque quando não é possível investir de um lado, se fossemos compensados de outro, de forma a manter um nível de investimento sustentável. A Merloni decidiu investir na aquisição de novas fábricas e cortar no investimento das já existentes e o que acontece é que nós precisamos de mais investimento que as outras unidades do grupo, já que nos falta competitividade ao nível do custo das matérias-primas e da energia.
SR – Esta é uma empresa bem integrada na região?
JPM – Penso que sim, até porque é uma empresa com história. Esta fábrica, antes de ser Merloni foi Frisado e antes ainda foi Movauto. Em termos laborais também tem dado o seu contributo a uma região difícil, com muito desemprego e bastante carenciada. Além disso, temos feito algum investimento. Este ano, conseguimos pôr a laborar uma nova máquina de fazer portas. Apesar da nossa situação ser periclitante, eu costumo dizer à Comissão de Trabalhadores que o investimento tem que ser feito até ao fim e todos temos que zelar pela continuidade da empresa, porque quando ela fechar todos os trabalhadores são despedidos incluindo o director.
SR – Acha que a região poderia fazer alguma coisa para ajudar a manter a fábrica?
JPM – Há alguns investimentos que estão previstos e espero que não sejam tardios. A região tem melhorado o seu potencial produtivo e fala-se em trazer para o pólo industrial junto à Sapec, uma empresa que fabrique chapa, o que nos permite melhorar a competitividade em termos de matéria-prima. Obviamente que isto não vai ser feito por causa da Merloni, mas nós podemos apanhar “as migalhas”. Se algumas melhorias têm sido feitas, isso fica a dever-se à Autoeuropa e à indústria automóvel. A nossa fábrica da Merloni é uma empresa pequena, faz uma gestão ao cêntimo e cada cêntimo que entra torna-nos melhores e mais competitivos.