por Canhoto Antunes
(advogado) O Processo “Casa Pia” outra vez
I
No decurso destas férias judiciais, a juíza Filipa Macedo emitiu mandados de captura para colocar em prisão preventiva seis dos arguidos do processo da Casa Pia – Carlos Cruz, Gertrudes Nunes, Ferreira Dinis, Hugo Marçal, Jorge Ritto e Manuel Abrantes – no seguimento do despacho que proferiu, quando estava de turno nas Varas Criminais de Lisboa.
Seriam assim alteradas as medidas de coacção determinadas há cerca de três meses pela juíza de instrução criminal Ana Teixeira e Silva, que pronunciou oito dos dez arguidos do processo. Esta juíza de instrução criminal em finais de Maio passado suavizou a prisão domiciliária a que estavam sujeitos Carlos Cruz, Ferreira Diniz, Manuel Abrantes e Gertrudes Nunes que passaram a poder movimentar-se no interior do concelho onde residem. Porém, este despacho está pendente do recurso no Tribunal da Relação de Lisboa, interposto pelo MºPº.
Despachando em férias no âmbito daquele processo, a juíza Filipa Macedo, não só decidiu pelos mandados de captura, como marcou também para o próximo dia 26 de Outubro o início do julgamento.
II
O MP, alegando que este despacho não se fundava em factos novos manifestou a sai discordância, promovendo a sua revogação.
A Procuradoria-Geral da República divulgou um esclarecimento, apontando o sentido da posição assumida pelo magistrado do MP, salientando que a posição assumida “não veio contrariar qualquer anterior posição oficial do MP a respeito da situação processual dos arguidos”;
“A oposição do MP a esta nova decisão judicial não se baseou numa avaliação da questão de fundo, da eventual necessidade de aplicação a tais arguidos da medida de prisão preventiva, mas antes na defesa da legalidade democrática, a um nível estritamente formal e processual” pois que “a decisão judicial em questão não teria qualquer justificação ou fundamentação no actual momento processual, face, para além do mais, à ausência de novos elementos que pudessem justificar uma reavaliação da situação processual dos arguidos”.
Não aceitando o despacho de Filipa Macedo, a PGR esclareceu que “a questão substancial a respeito das medidas de coacção (…) deverá ser objecto de decisão no âmbito do recurso interposto pelo MP do anterior despacho judicial”, pois a fundamentação jurídica deste recurso “não sofreu qualquer alteração”, pelo que “o MP deu prevalência ao seu dever de defesa da legalidade democrática junto dos tribunais, mesmo quando isso não contribua, aparentemente, para uma mais eficaz prossecução do procedimento criminal contra os arguidos”.
III
A revogação dos mandados de captura emitidos pela juíza Filipa Macedo, contra os referidos seis arguidos do processo Casa Pia foi ordenada pelo juiz Jorge Raposo, no turno seguinte por entender que, se os mandados fossem cumpridos, havia o risco de ser “rapidamente revogada a prisão preventiva” decidida pela juíza, podendo os arguidos serem presos e imediatamente libertados, pondo em causa, intempestivamente “a liberdade dos arguidos, criando falsas expectativas nas vítimas e estabelecendo um novo foco de instabilidade sobre o normal andamento” do processo.
Na sua decisão Jorge Raposo invoca vários acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa. contra a posição assumida por Filipa Macedo, no sentido de que, não existindo “circunstâncias novas, é de manter-se o despacho determinativo da medida de coacção (…) sob pena de instabilidade jurídica e desprestígio para os tribunais”.
Mais afirma que não lhe cabendo “concordar ou discordar, revogar ou dar sem efeito um despacho sobre medidas de coacção proferidas por colega da mesma instância lhe compete no entanto “criar condições para permitir a verificação de todos os fundamentos exigidos para alteração das medidas de coacção”.
Assim ordenou que fosse pedida informação às autoridades policiais das áreas de residência dos arguidos, se “têm cumprido as medidas de coacção que lhe foram impostas (…) e se existem quaisquer factos novos que indiquem a continuação da actividade criminosa”.
IV
A juíza Filipa Macedo veio depois apontar ao Ministério Público o cometimento “uma ilegalidade”, pois que a única reacção que poderia ter tido relativamente ao despacho era ter interposto recurso, está previsto no Código de Processo Penal”, concluiu que “os procuradores do Ministério Público não têm de emitir opiniões sobre os despachos dos juízes”. E explicou: “Eu agi de acordo com a lei e agi de acordo com a minha consciência, (…) se fosse hoje tornava a fazer o que fiz”, referiu Filipa Macedo, que os arguidos do processo, “desde o primeiro momento, deveriam estar em prisão preventiva a aguardar julgamento” .
E estranhou a reacção gerada pelo seu despacho. “Fiz o que sempre faço quando estou de turno e despacho processos urgentes. Marquei a data de julgamento para 26 de Outubro e defini o estatuto processual dos arguidos. Não percebo este alarido a não ser pelo facto de se tratar de gente de colarinho branco”.
E justificou a decisão com o objectivo de assegurar “a tranquilidade social”. “O juiz é soberano e decide de acordo com a sua consciência”, afirmou ainda dizendo que nos dias em que esteve de turno marcou a data de vários julgamentos e definiu as medidas de coacção a que deveriam ser sujeitos os arguidos dos processos urgentes que despachou, alguns dos quais submeteu mesmo a prisão preventiva.
E concluiu “quando é confrontado com situações desumanas e extremamente chocantes, tem de reagir, sob pena de se tornar numa figura autista”. A prisão preventiva dos arguidos “sossegará, com certeza, as eventuais vítimas deste processo e até potenciais vítimas nos meios sociais em que os arguidos se inserem, originando uma maior tranquilidade e paz social”, pois que, nos dias que correm, “os adolescentes vivem uma liberdade desmedida, passando os dias sozinhos e saindo à noite até altas horas da madrugada. Podem ser considerados muito “apelativos” nas suas indumentárias, pela descontracção com que actuam, pelo bronze e penteados que exibem, por indivíduos viciosos e podem ser considerados presas fáceis porque normalmente têm posses insuficientes para as solicitações da sociedade de consumo em que se integram e que os seduz”. “Na área criminal, o juiz tem de ser interventivo, não pode estar manietado por requerimentos dos sujeitos processuais e deve tomar iniciativas, quando constate que no processo alguma situação não está adequada.”
E continuou: «Deitei-me de manhã estoirada, mas muito bem comigo mesma». «Os crimes sexuais chocam-me muito e para mim é pior ter um alegado pedófilo em liberdade do que um ladrão ou traficante». «Valeu a pena. Transtornou-me ler os depoimentos das vítimas e foi muito por causa delas que tomei a decisão; merecem tudo».
Assim não atendeu aos apelos do MP e da Polícia Judiciária para que não emitisse os mandados de captura pois tal despacho podia ser considerado inconstitucional por não haver factos novos que o justificassem e os advogados da defesa logo atacariam em recurso e na comunicação social.
Temendo isto o MP esperou pelo turno seguinte para submeter a decisão de Filipa Macedo a novo despacho, e Magistrado, Jorge Raposo, revogou os mandados de captura e os ânimos serenaram outra vez.
V
“É uma situação absurda, o único sentimento que isto provoca é medo,” disse o Dr. António Marinho, candidato a bastonário da Ordem dos Advogados.
Uma vez que “não surgiu nenhum facto novo susceptível de alterar a situação dos, arguidos”, decisões destas “descredibilizam a justiça e não a tornam respeitada, mas temida”. “A forma como os magistrados usam os seus poderes transformou a justiça num totoloto, quando a imagem devia ser de previsibilidade. As pessoas de bem têm o direito de prever as decisões, não se pode admitir que cidadãos sejam atirados para a cadeia sem outro motivo que não as convicções pessoais de uma juíza que ocasionalmente tomou contacto com o processo”.
Para José Miguel Júdice, bastonário da OA, a atitude de Filipa Macedo foi “insólita”. “O Ministério Público actuou com enorme adequação às regras legais e demonstrou que é uma magistratura. Um advogado não pode ir contra os interesses do seu cliente. Um magistrado do Ministério Público, que representa a acusação, deve opor-se a ela, se isso implicar ir contra o princípio da legalidade. Foi o que aconteceu neste caso”, disse.
O advogado Francisco Teixeira da Mota manifestou a sua estranheza face à referida decisão de Filipa Macedo: “Tendo em conta os elementos que são do conhecimento público, e dado que ela não soube de novas coisas e que se limitou a fazer uma reavaliação da decisão, o despacho é absolutamente incompreensível”. Acrescentou que foi decidido “ao arrepio” de tribunais superiores, como o Tribunal da Relação e o Constitucional, donde saíram acórdãos que levaram à libertação de alguns dos arguidos.
VI
Nuno Pacheco escreveu em editorial, no “PUBLICO”:
“A história repete-se, e quase sempre da pior forma.
Em meados de 1998, um juiz a quem puseram nas mãos o processo das FP-25 resolveu passar 53 mandados de captura contra réus já libertados (tinham excedido o limite da prisão preventiva) ou amnistiados. A máquina da justiça entrou em alvoroço e travou a decisão: ninguém voltou à cadeia. Agora foi a vez de uma juíza repetir idêntico feito no processo Casa Pia: viu-o, indignou-se e emitiu seis mandados de captura. Um e outro, juiz e juíza, agiram como se tivessem chegado de um planeta distante e, diante do caos de uma sociedade amorfa e desregrada, se vissem na obrigação de vestir a pele de justiceiros. Antes deles, terão pensado, ninguém quisera saber. Prendam-se, pois, para que a sociedade, a pobre e tão martirizada sociedade, não sofra.
Mas tão teve sorte a juíza. Também a máquina da justiça a travou, nos seus ímpetos salvadores, cancelando os mandados de captura e as ordens de prisão. Extraordinário exemplo de justiça -“lego”! Como se uma criança birrenta tentasse, a todo o custo, juntar peças que de modo algum se encaixam, justificando nessa teimosia uma lógica de força. Só que a justiça não é, nem pode nunca ser, um jogo de acasos. Género: “Quem foi?” “O juiz de turno.” “Não é problema nosso.” Ninguém imagina o médico de turno a retalhar os pulmões ao doente que aguarda uma operação às amígdalas só porque a peça de “lego” não encaixou devidamente. Apenas porque, para mal de todos os nossos pecados, existem turnos! Seria interessante aplicar a mesma lógica aos ministérios: ministros por turnos, a lei no turno da tarde e a contra lei no turno da noite. A absoluta loucura e amais inimaginável desresponsabilização erigidos em pesadelo rotativo.
Como se não bastasse, os argumentos da juíza para justificar o seu acto são igualmente inimagináveis.
Haverá, segundo ela, o perigo de adolescentes em “liberdade desmedida”, “apelativos” e “bronzeados” (terríveis pecados de Verão) se entregarem a potenciais violadores. Tamanha inocência, se assim se lhe pode chamar, pasma. Porque as vítimas relatadas no processo Casa Pia eram tudo menos livres, “apelativas” ou “bronzeadas”. Eram rapazes maioritariamente em regime de internato, que terão sido alvo de abusos por membros corruptos de uma entidade onde era suposto serem respeitados. Rapazes que foram entregues, em condições de desprezível tráfico humano, nas mãos de seleccionados corruptores. Sugerir o contrário é confundir pedofilia com pederastia. Por idêntico juízo, também as raparigas “livres” e “bronzeadas”, de saia curta e decote generoso, seriam um perigoso chamariz para potenciais violadores e exigiram medidas judiciais de urgência… Haja, ao menos, alguma decência e clarividência moral, num caso que merece, além da prometida justiça (e não certo circo que o tem rodeado), o nosso maior respeito”.