OPINIÃO
Carlos Tavares da Silva
(Arqueólogo)
Tróia: Um Património Mundial
O Estado tem-se demitido perante a conservação e a recuperação do património arqueológico de Tróia de Setúbal.
A área escavada deste arqueossítio, embora reduzida, se a compararmos com a das ruínas que se encontram ainda soterradas, fornece abundante informação sobre a vida económica e social que aí se processou durante a época romana. Contudo, o abandono a que o Estado, através do Ministério da Cultura, mais precisamente do IPPAR, a tem votado é verdadeiramente escandaloso.
Não só é totalmente inexistente qualquer percurso de visita minimamente musealizado (com sinalética apropriada, painéis explicativos, publicações) como se assiste à progressiva degradação das estruturas postas a descoberto, provocada sobretudo pela vegetação.
Tendo constituído um dos dois núcleos principais (o outro situava-se no casco histórico do actual aglomerado urbano de Setúbal) de um vasto complexo industrial especializado na produção de preparados piscícolas que, entre o século I e os inícios do século V d.C., floresceu nas margens do estuário do Sado, a cidade romana de Tróia apresenta um carácter muito particular que a distingue da maioria das cidades suas contemporâneas. Com efeito – para além das áreas habitacionais, balneário, necrópoles –, a paisagem urbana era esmagadoramente dominada por oficinas de produção de molhos e salgas de peixe, com os seus tanques organizados em torno de pátios. Além destas oficinas de salgas, o sector industrial da cidade possuía armazéns onde eram guardadas as ânforas vazias ou repletas de conservas de peixe; dependências relacionadas com a actividade piscatória, nas quais se acondicionavam e preparavam as redes e os aparelhos de anzóis; sistemas de captação e armazenamento de água, como poços, cisternas e tanques.
Ao longo do período compreendido entre o século I e o V d.C., estas construções industriais, e a própria organização da produção, sofreram diversas transformações. Os recentes trabalhos arqueológicos aí efectuados pela Missão Arqueológica Francesa em Portugal, de colaboração com o Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, revelaram três fases construtivas numa das áreas do sector industrial: durante os séculos I e II funciona uma fábrica de grandes dimensões, procurando-se claramente obter economias de escala; nos finais do século II ou inícios do século III, verifica-se a destruição parcial dessa fábrica, seguindo-se uma reconstrução e subdivisão em três fábricas de menores dimensões, indicando uma fragmentação da propriedade, bem como do mercado consumidor, conjuntura que exigia produção mais diversificada; em data indeterminada do Baixo Império, talvez no século IV, alguns tanques são ainda subdivididos. Estas sucessivas alterações observadas na organização do espaço construído são acompanhadas por transformações na actividade piscatória, na produção dos preparados piscícolas e no fabrico das embalagens anfóricas: a partir do século III, pescam-se sobretudo sardinhas e cavalas de pequenas dimensões, intensifica-se e diversifica-se a produção de molhos e salgas; e o fabrico de ânforas ganha acentuada variabilidade, surgindo tipos de menor volume que os do Alto Império.
Todo este vasto complexo industrial integraria um modo de produção esclavagista e seria gerido por proprietários privados. A escala de produção só pode ser explicada pela existência de um vasto mercado consumidor. O facto de pequenos e grandes produtores oferecerem produtos idênticos em embalagens idênticas sugere a intervenção, no processo da comercialização, de negotiatores que canalizariam o grosso da produção para a cidade-entreposto de Gades (actual Cadiz), na zona do Estreito de Gibraltar, e, a partir daí, para o Mediterrâneo, podendo atingir Roma, a capital do Império.
O considerável volume das produções de preparados piscícolas de Tróia faz desta cidade, como atrás dissemos, o mais importante centro produtor e exportador actualmente conhecido. Estimando o número de 50 oficinas a funcionarem simultaneamente, e atribuindo a cada uma delas a capacidade média de 250m3, obtém-se um total de 12 500m3 de salgas e molhos de peixe. Para escoar esta produção mensal seriam necessárias cerca de 400 000 ânforas (do tipo Dressel 14) e o recurso a 2 000 embarcações com capacidade para 200 ânforas, ou a 400 com capacidade para 1 000 ânforas. Por este cálculo – a que devemos acrescentar as embarcações utilizadas no transporte do peixe, do sal e do vasilhame proveniente das olarias das margens do Sado – ficamos com uma imagem aproximada do que seria o movimento marítimo da baía de Setúbal durante o apogeu do complexo industrial da época romana.
É este património excepcional que, uma vez devidamente escavado, estudado, conservado, musealizado e publicado poderá ser classificado como Património Mundial.
O desprezo que as entidades locais e nacionais responsáveis pela sua conservação e recuperação cultural lhe têm votado é revelador da ausência de uma política de desenvolvimento baseada na exploração sustentável dos nossos recursos endógenos. Estes têm sido, na região de Setúbal, não só desprezados como destruídos. Para além do que se verifica com o património arqueológico (e poderia citar aqui muitos outros arqueossítios, como Abul ou a Comenda), atenda-se, a título de exemplo, ao património paisagístico da Serra da Arrábida, que há 70 anos é delapidado pelas pedreiras da SECIL e, mais recentemente, também pelas do Risco; ao património biológico e paisagístico do estuário do Sado, destruídos por indústrias poluentes; ao património das Quintas de Setúbal, cujos solos, da classe A, têm vindo a ser, desde os anos 60, cobertos por uma mancha de betão.