Pergunta-nos António Pato Josenaldo, do Cacém:
“Como agir quando se é ateu e se tem pela frente alguém que defende com unhas e dentes a fé no Além? Destruir essa fé pode ser uma violência mas ouvir sem dizer nada também custa se bem que, o que normalmente acontece, é que estas são conversas de surdos.
Vale a pena argumentar?”
Um enfezado, isto é, uma pessoa repleta de fé, é sempre um interlocutor difícil. No entanto é importante distinguir três grandes tipos de enfezados, os quais possibilitam confrontos muito diferentes, opostos até:
Os primários
Os secundários
Os outros, que designaremos por “os outros”
Se o que pretende é o gozo de uma boa discussão, independentemente de convencer ou não, sem dúvida que deve escolher um dos “outros”. São pessoas que também gostam de argumentar e que, apesar de não se deixarem convencer facilmente, aceitam visões menos ortodoxas e sempre encontram um jeito de fazer uma sopa divina com qualquer tipo de ingredientes: o azeite cristão, a soja da newage, o arroz budista e até o cacto xamânico.
Por isso estes crentes nunca se deixarão abalar com o resultado da discussão pois nunca há uma derrota mas apenas um refinamento, um aperfeiçoamento da visão.
Os primários são precisamente os que acreditam no divino como se tudo estivesse perfeitamente claro e plenamente divulgado, uma espécie de história de Portugal desde o D. Afonso Henriques mas relativa aos céus e à linhagem de divindades / santos / profetas, etc.
Para estes só não acredita quem é mau e é deliberadamente inimigo dos crentes ou quem anda “perdido” ou, no mínimo, desatento, pois toda a verdade já foi revelada nos “boletins internos” do céu, compilados sob o título de Bíblia, Corão, etc.
Eles não percebem porque andam os cientistas a investigar a origem do Homem uma vez que já se sabe que foi o Adão e Eva; eles não aceitam a história das civilizações pois toda a descendência desde esses pais primitivos já foi há muito dada a conhecer; os primários acham indecente que a História não mencione o dilúvio e a arca de Noé.
Com estes, meu amigo, não adianta muito falar. É pura perda de tempo. É conversa de surdos. Ao mesmo tempo, são estes primários que, se por acaso lhes conseguir instalar a dúvida, se por uma hipótese remota lhes conseguisse fazer perceber que Deus não pode estar sentado num trono, na nuvem mais alta, pela simples razão que isso seria colocar Deus a imitar os homens, o que seria altamente desprestigiante para um ser do seu calibre, são estes que ficariam com a sua vida destruída.
Um primário não sabe viver com uma única dúvida quanto à veracidade da fábula dos céus e deuses.
Face ao exposto somos de opinião que é altamente desvantajoso discutir com um primário:
É extremamente cansativo, requer o uso de todas as suas faculdades intelectuais e dotes de oratória e o resultado previsível é, em 99, 9% dos casos o insucesso total e nos restantes casos a transformação de um optimista em um farrapo humano.
Quanto aos secundários são interlocutores possíveis para os seus desejos de conversão de alguém ao ateísmo. Os secundários aceitam a história divina em geral mas colocam reservas a certas questões ou episódios ou seja, deixam uma porta aberta para poderem passar para o outro lado, seja outra religião seja o ateísmo. Eles precisam é de estar convencidos de algo, não importa o quê, para não pensarem mais no assunto e dormirem descansados.
Neste grupo se encontram os famosos “católicos não praticantes”, a facção mais numerosa desta religião. O que eles acreditam é, sobretudo, que está um par de olhos algures lá em cima, a observar e a tomar nota para fazer o acerto final de contas. É quanto basta para lhes aliviar a consciência pois sabem que, acima de tudo, se Deus existe tudo há-de correr bem desde que acreditemos nele independentemente de seguirmos os seus preceitos. Lá diz o ditado que “ a fé é que nos salva”. Levando esta máxima à letra os secundários sentem-se dentro da lei pelo simples facto de se dizerem crentes, apesar de não praticantes. Mas quanto a esse pequeno pormenor sabem que basta um arrependimento final e tudo fica regularizado.
Se acaso conseguir converter um secundário, o que é possível, tem é que lhe fornecer um conforto alternativo. É isso que muitas das novas “filosofias esotéricas” fazem: reencarnações, energias, canais, o homem-deus, outras dimensões, etc.