CONECTARTE – CRÍTICA E OPINIÃO

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A NEGRA DE NEVE

A propósito do polémico filme de João César Monteiro – a sua já famosa Branca de Neve – gostaria de tecer algumas reflexões, não ao filme em si, que não vi, mas às ideias que têm sido faladas a propósito.

 Começo por resumir a minha posição dizendo que não concordo nem com os intelectuais que o defendem nem com o grande público que o ataca.

 Levar uma experiência ao limite tem o valor que tem: um exercício, um desafio, um esgotar.
Ir ao limite não significa descobrir a essência, mas sim descobrir a fronteira. Por isso não aceito que um artista, ao explorar os limites, praticar a não-arte, a não-obra, o anti-discurso, reduzir ao mínimo e outras experiências conceptuais do género, seja SÓ POR ISSO considerado grande, um génio criativo, um percursor, um caso importante.

Não se confunda o rascunho com a obra. Não se confunda a pesquisa com a tese.

Ou, numa outra perspectiva que sempre me pareceu um erro perpetuado e a perpetuar, não se atribua genialidade automática a toda a obra de um génio. Todo o criador tem as suas grandes obras, obras menores e obras falhadas.

 A história da Arte tem registado para a posteridade e legitimado aqueles artistas que rasgam caminhos e que antecipam futuras linguagens, é verdade. Regista-os como contributos para a evolução do espírito artístico, como precursores e iniciadores de novas formas de expressão ou estilos, de novas perspectivas.
Mas o que determina, na prática, quais os nomes que justificam esse destaque ou em que grau, é o facto de o futuro adoptar ou não o que esses criadores propuseram.

Por exemplo, Neoclassicismo, Impressionismo, Fauvismo, Arte Nouveux… foram novidades, foram inovação, são referidos nas antologias mas marcaram apenas um período. Sobrevivem hoje enquanto estilos que podem estar presentes de modo disperso mas não alimentam os  conceitos de arte actuais.  Ao contrário, o Dadaísmo, Marcel Duchamp, Malevich, rasgaram horizontes e estão presentes ainda hoje em tudo o que se faz de representativo da arte actual.

Fazer um filme em que se elimina a imagem e se deixa apenas o som e as palavras que correspondem às imagens que, de facto, lhe estavam associadas não deixa de ser uma experiência interessante mas nem é algo tão inesperado assim, nos tempos de experimentação e fusão que correm.
Digamos que é até algo previsível, mais tarde ou mais cedo e, se não houve já inúmeros realizadores desconhecidos que o fizeram talvez não tivesse ainda sido feito por um nome de primeiro plano  precisamente por ser demasiado óbvio e esperado no campo da arte alternativa.
Tal como um bailado sem música, que já foi feito. Ou um bailado sem movimento do corpo, que já foi feito. Ou um quadro por pintar, que já foi feito. Ou música sem uma nota e um som sequer, que já foi feito.

É neste enquadramento  que acho um filme como o de César Monteiro uma obra sem interesse e menos ainda reveladora de génio, antes pelo contrário. O conceito não traz nada de novo, ao contrário do que a intelectualidade pretende  e não me parece que antecipe o cinema do futuro pois teria que se aceitar, então, que o cinema passará a ser o mesmo que a rádio, o que seria uma regressão absurda e injustificada e não um avanço.

Quanto às críticas correntes do grande público e, sobretudo, dos cidadãos em geral, as quais invocam a afronta de se fazer tal filme com os dinheiros públicos a minha posição é a de que essa é, precisamente, UMA DAS missões nobres do apoio à cultura por parte do Estado.

Apoiar obras comerciais não me parece o mais necessário, por definição, pois os filmes de bilheteira têm o mercado como garante.
É para outros segmentos que os apoios e subsídios se justificam, com o dinheiro de todos nós, pois claro!  Também pagamos para os impostos que o Estado perdoa aos Barões do futebol, o que me parece bem mais escandaloso.

Se uma parte da acção estatal deve estar virada para a preservação da Cultura popular e tradicional, para que não morra na inundação das novas modas, se outra parte tem que ser, sem dúvida, para os artistas que ainda não têm nome e precisam de uma mão inicial para poderem mostrar o que valem, outra parte importante desse apoio tem que ser para as obras alternativas, para os artistas que investigam a própria linguagem, os valores estéticos, os futuros da comunicação. É neste âmbito que obras e artistas como a Branca de Neve e César Monteiro ou Manuel de Oliveira são merecedoras de usarem o nosso dinheiro. Do mesmo modo que se deve apoiar a investigação científica sem se saber qual a parte do investimento que originará algo de útil e rentável.

Não está em causa se gostamos ou não do resultado desde que tenhamos consciência que se tratam de trabalhos sérios, que prestigiam o país, a nossa cultura e a nossa intelectualidade no mundo, como é o caso de Manuel de Oliveira.

É certo que aqui existe um risco: o da fraude, não a fraude voluntária mas a de se tomar por bom tudo o que tenha o selo “Experimental” ou “Diferente”, a fraude de tudo ser possível desde que assinado por certos autores. Mas isso é um outro problema muito complexo, que não é de agora nem se resolve com opiniões ligeiras e brejeiras.

Dizer que um filme sem imagem é um barrete e que o autor é um vigarista é, desde logo,  mais um exemplo da incompreensão e má vontade com que sempre temos brindado os nossos criativos mais ousados. Depois admiramo-nos porque não somos ninguém lá fora…. E que os poucos gigantes da nossa arte sejam mais conhecidos no estrangeiro do que na sua pátria, como a Paula Rego, o Emanuel Nunes, durante muito tempo a Vieira da Silva e muitos outros.

 …mas também aceito que muitas vezes o rei vai nu pois nem o hábito faz o monge nem a nudez faz o naturista. E até não sei se o César não será um destes.