Publicamos hoje um excerto do livro “A vingança da ferramenta”, que não se trata de um livro de bricolage, como foi ouvido referir por alguém, na altura do seu lançamento (1991).
Trata-se de um conjunto de contos, em edição de autor, que questionam a normalidade. A normalidade da nossa forma de ver a vida e o mundo, monótona, sisuda, muitas vezes árida de tão “correcta”. A normalidade da nossa imaginação que na maioria dos casos se limita a trocas – de cores, de objectos, de personagens, de lugares – esquecendo-se de criar as cores, os objectos, os personagens, os lugares. A normalidade do próprio acto de escrever, quando se deixa castrar pelo convencimento de que o humor é um caminho menor e o non-sense uma simples falta de senso.
O autor, Salvador Peres, natural de e residente em Setúbal, há muito vem participando em múltiplas actividades culturais e artísticas nesta cidade. Por gosto, coisa estranha nos tempos que correm, em que tudo se faz a troco de subsídios, promoções, contrapartidas; por incapacidade congénita de calçar pantufas ou de sentar o Cu no sofá a olhar para a parede; por acreditar que há sempre lugar para a criação. O livro é ilustrado por Eduardo Carqueijeiro, já aqui divulgado (ver links laterais)
“
Toda agente achava muito estranha a impaciência de palatino. O certo, porém, é que nem os mais chegados nem os mais afastados, alguma vez se travaram de razões para lhe descobrir o motivo, se é que motivo havia, ou se lhe assistiam razões para assim proceder. Palatino, como é do conhecimento geral, detestava tudo quanto o fizesse esperar para além do normal. Num caso extremo, talvez chegasse ao assassinato, ou talvez não. Tudo dependeria do tempo de espera, do estado do tempo, e do seu próprio estado, tendo como referência os limites impostos a si próprio por si mesmo.
Certo dia, estando Palatino à espera da namorada, e como ela nunca mais chegasse, considerou aquele que a eleita do seu coração estava a pouco espaço de se tornar atrasada, de tal forma o tempo escorria e o relógio confirmava a escorrência temporal. Estando ele numa rua da cidade mais larga que comprida, desembestou, começando por a percorrer a passos largos, para lá e para cá, desenhando diagonais, muito largas e nervosas, sucessivamente mais tensas e elípticas, que a escorrência do tempo é impalpável e a impaciência um factor de crescimento exponencial.
Olhou para o relógio e viu naquele a marca das suas preocupações, pois os ponteiros indicavam a possibilidade drástica de um temporal interior, manifestação não pouco fatídica, tendo em conta a propensão de Palatino para escavacar, com muito ímpeto e vigor, o objecto motor dos seus negros estados de alma.
Frenético e fatídico circundou, engolindo não poucos metros de calçada, buxos de uma ténue verdura, de um jardim paupérrimo, num périplo ligeiramente oval, que a rua a mais não dava. De quando em vez parava, ziguezagueando um olho pela circunferência vitrina do pêndulo, e ameaçava interiormente de fartas sevícias a causadora de tais anseios.
A deambulação, de cega e anárquica, levou-o a chocar com um agente policial que, postado de serviço junto a uma barbearia, dava mostras de alguma admiração, enquanto olhava para Palatino e para a trajectória dele.
Dispôs-se o comissário policial a interrogar Palatino sobre o que se notava na sua atitude, levantando-se, para esse efeito, do chão, pois houvera caído na ocorrência da perigosa carambola. Presto, intentou aconchegar-se daquele, quando eis que, o impaciente, numa triangular perfeita, se furtou codicilos ao largo amplexo da lei. Neste entretanto, enquanto se davam todos estes acontecimentos, a namorada de Palatino deu corpo de si, chegando-se ao local prévio de encontro e, não dando fé de Palatino, logo dali cavou do verbo cavar, mas com outro sentido, entenda-se.
Palatino após ter feito a triangular ao policia, rectangulou no sentido prévio onde previamente havia marcado encontro com a ditosa do seu coração. Como a não visse nem houvesse dado por ela ter chegado e andado, perpetuou a espera ainda mais nervoso e inquieto.
Passados largos minutos sobre este efeito, resolveu Palatino pensar com calma, coisa não muito fácil para um homem de sangue incandescente e actividade motora a condizer. Parou. Enviesou os mirones para o relógio e certificou-se, levemente contrariado, da perda da maquineta.
“Foi na primeira circular, ou na segunda triangulação”, pensou de si para si. Enquanto matutava naquela leve contrariedade sentou-se nos bordos de um poial, apoiando os pés no corpo do agente da autoridade que, por acaso ou coincidência, e após tenebrosa e inglória perseguição a Palatino, havia desfalecido exactamente naquele local.
Encostou-se Palatino à porta que servia de cenário ao poial. Em frente, ficava o talho do Mercímedes, com as carcaças pendidas de ambos os lados da porta, coladas às umbreiras numa atitude de profunda reflexão. A este reflexionamento não era estranho o facto de se encontrar, por acaso ou coincidência, ali postado o policia de giro, que as carnes de vaca e outros animais de abate, mesmo na forma quase final do seu ciclo vital (a final são os bifes), não perdem a postura filosófica que as caracteriza enquanto seres viventes.
Iniciou Palatino um diálogo com as carnes penduradas; diálogo mudo, mas não cego ou surdo, porque as carcaças, malgrado o mutismo muito peculiar à sua condição de cadáveres, ouvem muito bem e não vêem pior. A morte, ao gado vacum, contrariamente à espécie humana, não cerceia certas faculdades, sendo a de filosofar uma delas (a menos conhecida) e a de se transformar em bifes, outra ainda (esta mais do vulgo).
Na decorrência do diálogo, talvez por notar nas carnes muita
falta de pêlo, achou-se de grenha muito comprida. Apalpou a nuca e, verificando a razão da sua conjectura, impeliu-se a cortar a trunfa. Consultou o relógio no intento de sondar as horas mas só descortinou um pulso nu, vazio do regulador temporal que já fora pertença do seu avô, tendo contado, para aquele seu ancestral, nada menos de noventa e sete anos, seis meses, quatro dias, dezasseis horas, dez minutos e alguns segundos, não se sabe ao certo quantos, que o homem morreu muito depressa, não dando tempo de cronometrar o derradeiro instante do passamento. Apoiando um pé no agente e outro na calçada, ergueu-se Palatino de supetão, e correu em direcção ao talho do Mercímedes. Entrou às três tabelas, com uma primeira carambolada na lombada da vaca que se encontrava pendurada à esquerda de quem entra, uma segunda nas costelas magríssimas de uma freguesa e a terceira de encontro ao balcão, indo, finalmente, desembocar de frente para o talhante a dois quartos de um cutelo afiadíssimo que o homem manejava no esquartejamento de uma cabra morta há coisa de horas.
– Tem horas? – perguntou Palatino ao talhante.
– Isso agora depende para aquilo que seja! – retorquiu o carniceiro.
– É para saber se estou atrasado.
– Se é para isso, não tenho. Não quero meter-me na vida alheia -disse o Mercímedes convencidíssimo das suas razões.
– O senhor seria capaz de me cortar o cabelo? – perguntou Palatino.
– Peça-me para lhe colar seja o que for, menos o cabelo: não tenho vontade nenhuma de estragar o cutelo – respondeu o talhante, olhando amorosamente para as lâminas alinhadas no
escorredouro de sangue.
– Sabe, é que estou há um tempo incerto à espera da Favila e, como perdi o relógio, desintegrou-se-me por completo a noção das horas, por isso achei boa ideia aproveitar este intervalo no tempo para cortar o cabelo.
– Nisso não o posso ajudar. Se quiser posso cortar-lhe uma orelha ou amputar-lhe um braço, quanto ao resto, santíssima paciência, que sou pessoa respeitadora do ofício e não quero fazer concorrência ao Cabelides, que esse sim, sem desprimor, trabalha com tesoura e pente. Além disso, recuso-me a fazer seja o que for nos intervalos de tempo: o trabalho não produz e tanto posso perder uma unidade de tempo, como uma infinidade de unidades, não há controlo e, não havendo controlo, o tempo não me rende.
Muito a contragosto fez-se Palatino à barbearia que, por acaso ou coincidência, ficava mesmo em frente ao talho, levemente descaída para a esquerda, como convém a uma boa barbearia.
Entrou no estabelecimento por uma porta ladeada de montras, com fotografias a preto e branco. Os manequins fotográficos, com penteados para lá e para cá, uns ondulados, outros repuxados, tinham de comum fartas e lustrosas cabeleiras e sorriam para o infinito, que é uma forma de sorriso que se consegue imobilizando, numa fracção infinitésima de segundo, um trejeito súbito da face.
Cabelides, o barbeiro, estava ocupado com uma cliente há mais de hora e meia. Esta informação foi prestada a Palatino por um outro cliente, que se encontrava portas adentro da loja, esperando vez.
– E onde está a cliente? – perguntou, com alguma ingenuidade, Palatino. – Lá dentro – disse o homem, apontando para uma porta dos fundos. – Na secção de senhoras? – insistiu Palatino no mesmo tom. – Pois! – disse o homem, rindo-se muito -, aquilo é mesmo só para senhoras. Que me conste, o Cabelides só para lá leva as fêmeas: os machos atende-os aqui.
– Não está certo!: essa forma de tratamento é discriminatória e está definitivamente ultrapassada – queixou-se Palatino.
– Cá por mim aceito-a perfeitamente. O contrário é que me deixaria preocupado. – Então o senhor importar seria de ser atendido lá dentro? – Ouça lá – disse o homem, parando bruscamente de rir e virando-se de través para
Palatino -, você não é de cá, pois não?
– Sou de cá sou. Não costumo é aparecer por estas bandas. Vim aqui parar por causa da Favila, a minha namorada. Ficámos de nos encontrar aqui perto e ela não apareceu.
– Não estará lá para dentro? – disse o freguês, apontando para o fundo do estabelecimento.
– Na secção das senhoras?
– Pois claro, onde queria que fosse? – disse o cliente, fazendo muitos gestos com as mãos e o pescoço. – Já lhe falei dos métodos do senhor Cabelides: senhoras, só nos fundos…
– Estou capaz de lá ir e espreitar pela minha Favila – disse Palatino. (…)”
Excerto tirado do conta “Palatino”, do livro “A vingança da ferramenta” de Salvador Peres.
Caso pretenda adquirir o livro envie-nos o pedido pelo e-mail [email protected] ou pelo telefone 265238400
Quer sugerir-nos um nome para divulgar? Utilize o formulário na secção “Concursos” para o fazer e enviar material ilustrativo.
|