CONECTARTE – DIVULGAÇÃO

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Helena de Sousa Freitas


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Breve apresentação

 

Helena de Sousa Freitas nasceu em Lisboa a 5 de Janeiro de 1976, mas residiu sempre em Setúbal, cidade relativamente calma e enquadrada por espaços naturais repousantes e de grande beleza – caso do Estuário do Sado ou da Serra da Arrábida.
Desde pequena que aprecia a leitura e a escrita.

Em 1994 ingressou no curso de Ciências do Ambiente da Universidade de Évora. Uma certa melancolia que a cidade inspirava, associada a uma crescente desilusão com as matérias do curso – que não eram as que esperava – favoreceram a necessidade de escrever e acabaram por determinar, já em 1995, a mudança para a área de Letras.

Neste mesmo ano, entra para o curso de Comunicação Social, na Escola Superior de Educação de Setúbal, onde se licenciou no presente ano. Durante o curso, integrou a equipa do jornal on-line Mundus, entretanto desactivado, vindo posteriormente a colaborar, na área da cultura, para o semanário digital Setúbal na Rede (http://www.setubalnarede.pt).

Actualmente é jornalista na Agência Lusa, em Lisboa, e coordenadora da secção de Natação do Infordesporto Online (www.infordesporto.pt).

Como aprecia bastante executar e ver fotografia, a preto e branco ou a cor, participou em 1998 e 1999 na Exposição ‘Olhares’, que esteve patente no Instituto Politécnico de Setúbal. Desde 1994 que publica com alguma regularidade em revistas e jornais, ou nos seus suplementos juvenis, tendo em 1999 iniciado a publicação em livro e na Internet.

Curriculum Literário (prosa)

 Nome: Maria Helena Rapaz de Sousa Freitas 
    Profissão: Jornalista
    Nacionalidade: Portuguesa
    Endereço digital: www.helenafreitas.ezdir.net
    E-mails: [email protected] ou [email protected]

Edição em livro ou similar:

– Águasfurtadas – Revista Literária nº2, editada a 16 de Dezembro de 1999 pelo núcleo de Jornalismo Universitário do Porto no auditório da FNAC, no Norte Shopping, no Porto.

 

Edição na imprensa e similares: – Suplemento juvenil ‘DN Jovem‘, do Diário de Notícias.
– Suplemento juvenil ‘Contacto Jovem‘, do Correio da Manhã.
– Poezine ‘Debaixo do Bulcão‘, de Almada.
-‘O Referencial‘ – Boletim da Associação 25 de Abril. [Participação na edição comemorativa dos 25 anos do 25 de Abril de 1974]
– ‘O Rio‘ – Jornal do Concelho da Moita.
– ‘O Literário‘ – Jornal de Contos e Poesia de Camocim, Estado do Ceará, Brasil.

Edição em formato digital (Portugal, Brasil, EUA):

Várias, nomeadamente

Site ‘DN Jovem’:  www.dn.pt/dnj  (Trabalhos Pontuais); Site ‘Totally DeCapitated’: www.cricketmedia.com/td/14/voices.shtml   (Desde 15/08/99 – em inglês);  Site ‘Harpwro – Write a Story’: www.harpwro.com/write/2665.html   (Desde 26/12/99);  Site ‘Lunapage’: www.members.xoom.com.lunapage/ (Desde 09/02/2000); Site ‘Poetas Morto’s’: http://sites.uol.com.br/sholi/index1.htm (Desde 10/02/2000); Site ‘Projecto Diário de Literatura’: www.artista.pt.fortunecity.com/palavras/23/   (Desde 14/02/2000); Site ‘Proa da Palavra’: www.terra.com.br/proa  (Desde 14/02/2000); Site ‘O Literário’:  www.mcanet.com.br/rpires/literario/helena.htm  (Desde 14/02/2000)

 Prémios:

 1ª Classificada no Concurso de Contos Eróticos organizado pelo site Poetas Mortos (http://sites.uol.com.br/sholi/index1.htm),  entre Abril e Maio de 2000.
– Agraciada com o diploma da Galeria de Honra do Literário (www.literário.ezdir.net    – 1º Prémio em conto na segunda edição dos ‘Prémios Literários 25 de Abril’, em Abril de 2000.

Menção honrosa em conto na segunda edição dos ‘Prémios Literários 25 de Abril’, em Abril de 2000.

Menção honrosa em conto no 4º Concurso Nacional e Internacional em Língua Portuguesa de Contos e Poesias ‘Poeta Nuno Álvaro Pereira’, organizado pela Editora Valença no Rio de Janeiro, Brasil, em 1999.

Menção honrosa em conto nos ‘Prémios Literários 25 de Abril’, em Abril de 1999.

 ……………….

De Amor e de Sol


“Agradeço à vida, que me deu tanto,

me deu o riso e me deu o pranto…”

(Violeta Parra, Chile)

 São duas dúzias de casebres encolhidos, que a cidade arrumou num só canto e onde o Sol se descobre com dificuldade por entre a estreiteza das ruas. Entrar nelas é como mudar para uma nova terra, longe dos ruídos do trânsito, da vida apressada das gentes e desta dormência psicológica que nos invade enquanto percorremos os caminhos do quotidiano: casa, escola, trabalho, supermercado, trabalho, casa… e pouco mais.
Este espaço, quase minúsculo, sobreviveu à passagem dos anos, à frieza dos tempos correntes e à monotonia humana, refugiando-se em si próprio. Nele, como em tantos locais do litoral, ainda é possível observar as mulheres, de carrapito e avental, fazendo a barrela da semana na soleira da porta. São as toalhas de mesa e de banho, a água gelada com sabão ou detergente e os alguidares azuis, que também eu, morando hoje noutro extremo da cidade, conheço de ver nas mãos da minha avó durante os tempos de infância.
Aguardam os maridos. Estas mulheres de carrapito e avental desbotado esperam que os seus homens cheguem do mar para que todos se sentem à mesa em hora igual, como mandam as leis do Senhor. Não conhecem outra vida, nem outra obediência senão a Deus, no vasto reino do Céu, e aos Maridos, no pequeno bairro que ocupam na Terra.
Mas entre si não há domínios mas antes «absoluta igualdade», como fazem questão de sublinhar – todas se assemelham no uso da maledicência para com a «feia conduta alheia» ou na troca de simples comentários acerca «deles», do «jantar de amanhã», da «novela das sete» ou da casa da vizinha «onde entrou uma vez mais a “cheia” porque o Presidente da Câmara só tem olhos e verbas para os grandes e não sabe ver isto!»
E se o dia não foi proveitoso no mar, «porque o tempo anda alvoroçado e já não respeita os Santos nem as leis da Natureza», há discussão pela certa à hora da ceia, porque “casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão”. Após o desembarque, remoem eles, sentados à porta de casa com o palito entre os dentes e o olhar desiludido, e choram elas, na cozinha por entre o descascar das batatas. Só se deseja que o João e a Sofia continuem a brincar com os cães lá fora, coçando-lhes a sarna e cobrindo-os com aquela ternura especial que apenas cabe nas mãos das crianças; apenas se quer que se mantenham entretidos e não entrem agora para não se depararem com a tristeza da cena… 

Na verdade, a pobreza sempre residiu ali… mas há dias piores de aguentar, dias em que toda a fé se vê destruída, em que a capacidade de acreditar é tragada pelas sombras e superada pela força do hábito, e em que palavras como “capaz”, “poder” e “fazer” são conceitos cuja definição mora em parte incerta. E apesar de tudo, mantêm-se pessoas pacientes e ternas, em parte por natureza mas muito por resignação. São exemplos daquele português, cada vez mais raro, que não suporta a crueldade, que é melhor a acatar ordens do que a mandar e que julga o Mundo inteiro pela medida da sua própria fraternidade. Elas em particular, ora matronas e acolhedoras, ora franzinas e resistentes – mas forçosamente mais baixas que os maridos por uma questão de “bem parecer” – seguem diariamente os rituais que sempre conheceram, e que viram pôr em prática a mãe ou a avó. Quando o tempo se mostra de Estio, aguardam serenas pela noite: de mansinho os seus homens chegam com um ardor de desejo que a experiência as ensinou a saber acalmar. São os tempos melhores, em que elas acordam cantarolando versos da juventude, com um brilho de renovação no olhar. Espreitam à janela e abençoam o bom tempo e as espreitadelas do Sol, pois, «enquanto a lua não mudar, o Zé pode sair para o mar e eu escuso de o ir buscar à tasca do Chico com uma carraspana de cair por terra». «Também as paredes precisam de ser caiadas, que as vozes da vizinhança já acusam o desleixo e ninguém necessita de tais murmúrios… e a roupa de ser posta à enxuga. Até para ver se a casa deixa, de uma vez por todas, de acumular bolor pelos cantos, pois os quartos ficam impestados de um cheiro a bafio tão intenso que ninguém lá consegue dormir ou respirar», nem mesmo quando o ar entra às golfadas de permeio com os soluços, os gemidos ou os silvos estridentes do comboio. O seu Zé tivera de partir logo de madrugada para a pesca, para aproveitar o clima bonançoso e tentar abastecer o frigorífico enquanto a sorte dura. «Mas ia radioso, ora se ia, transbordando um vigor de vinte anos, de quando pescava com o pai naquela casca de noz, que uma tempestade devorara havia muito tempo». E agora, estaria ele a recolher as redes, sem o ar carrancudo que ultimamente se lhe notava… «Bendito o meu ventre quente e palpitante, a minha têmpera bem-humorada e folgazã e a mão para a cozinha…» – murmurava para consigo, sem lhe interessar esconder um traço de malícia, enquanto passava em revista a soma das qualidades com que conquistara o marido.

São estes os pensamentos que lhe ocupam a mente enquanto compõe o quarto. E, olhando a luz do Sol que beija os casebres com orgulho, vai descendo o mosquiteiro sobre a cama com um suspiro de satisfação: «Que hei-de eu fazer hoje para o almoço?..»

                                                                 Setúbal, Inverno de 1996

Excerto do Livro “Águas Furtadas”

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“É de ouro o primeiro verde da natureza

O matiz mais difícil de conservar.

A primeira folha é como uma flor

Que pouco mais de uma hora vai durar.

Depois, a folha dá o lugar à folha.

Assim se malogrou o Paraíso,

Assim se vai da madrugada ao dia.

Nada do que é d’ouro pode durar:”

(Robert Frost, in “Poemas Completos”)

“Calou-se o murmúrio das antigas brisas,

Nem medos de ausências na hora encoberta!

Desenham-se imagens de areia, imprecisas,

sobre os limos verdes da praia deserta!”

(“Apontamento” (excerto),

in António de Sousa Freitas “Novamente Aventura”)

Caminhava pela praia lentamente, sentindo o vento trespassar a malha da blusa e colar-se-lhe à pele arrepiada e os cabelos frisados esvoaçarem turbulentos. Na areia fria e húmida, ligeiramente acima do rebentar das ondas, as marcas dos seus pés iam deixando um rasto ténue.
Sentou-se por fim e ficou, à claridade do amanhecer, a observar o areal em toda a sua extensão dourada, agradecendo no seu íntimo ao verificar que este ainda não fora vitimado pelo vírus da poluição, devastador de tantos areais dourados como aquele durante o esplendor do Verão. Uma bruma matinal cobria as águas, e recortava-se nela a silhueta esguia de um pescador que assobiando recolhia as redes. Os guinchos das gaivotas agitadas que sobrevoavam o barco e aquela perturbante melodia, sua conhecida desde a infância, ecoavam pela vastidão da praia. Nesse preciso momento, uma bola laranja, ardente, despontou preguiçosa no horizonte e, difundindo os seus raios sobre o manto de neblina que principiou a dissipar-se, fez as águas calmas da manhã passarem da prata ao ouro por truques de soberana alquimia. Fora um instante sublime, que ela recordaria para sempre, não só por ter coroado um dia de importância decisiva na sua vida, mas também porque dele guardou uma imagem na memória: tratara-se da visão de um quadro, do mais belo quadro que, até então, vira a natureza pintar. Reflectia agora, refazendo mentalmente o trajecto que a conduzira ao local onde se encontrava e à situação que vivia. «Acordara a meio da noite atormentada pelo pressentimento, talvez a sombra de uma necessidade, de que algo ia mudar definitivamente e com fortes repercursões futuras.

Desistindo de recorrer ao sono para apagar as sensações que a incomodavam, resolvera levantar-se. Não tomara cuidados de maior – ele não ia acordar! Dormia o sono profundo de mais uma conta excedida no número de copos tomado.  Recusava-se a enfrentar a situação: estava de novo desempregado. Era a segunda vez dos últimos 4 meses…

Não suportava a menor contrariedade que surgisse no trabalho e era incapaz de conter os seus ímpetos ideológicos, que muitas vezes se manifestavam em actos de insubordinação para com os superiores. Deixava-se dominar pelos acessos de revolta, não acatando ordens nem conselhos, e tornando-se tão agressivo na linguagem como violento nos gestos. A sua natureza custara-lhe já três empregos, relativamente estáveis, nos quais a paciência dos patrões não tardara a esgotar-se. E o álcool entrava em cena logo de seguida – os problemas e a bebida, a bebida e mais problemas…

Ainda tinha bem presente a imagem do automóvel, reduzido a uma amálgama de ferros retorcidos, naquela chuvosa  tarde de Dezembro em que as condições do condutor e do piso haviam determinado um aparatoso acidente. Surpreendentemente, ele escapara ileso. Por essa ocasião, ela tentara convencê-lo a procurar ajuda, mas ele recusara-se  a encarar a dimensão dos problemas que, aliás, assegurava não ter.

Deixando-o destapado sobre a cama, vestira-se no silêncio do quarto, tacteando a roupa com que pretendia enfrentar o fresco da madrugada. Um vulto reflectido no espelho assustara-a e fizera-a recuar: na obscuridade só os contornos se distinguiam. Não era possível reconhecer-se. E foi então que teve a certeza de algo já desconfiado – também psicologicamente há muito que vivia na escuridão. Desistira de tantas coisas por ele… De demasiadas coisas… O que permanecera, afinal, de si própria? Já no exterior, percorrera as ruas abrilhantadas pelo luar de Agosto e por anúncios luminosos das casas comerciais fechadas. Os seus passos na calçada antiga da cidade iam ganhando sonância, enquanto pensava no encontro que tinha marcado consigo mesma naquela praia deserta para assistir a um despertar. Seguira até ao mar sempre pensativa: ela nascera no campo, por entre pinheiros orvalhados e aromas de fertilidade que a terra acabada de arar exalava, e herdara desses tempos a admiração pela Natureza que alicerçava até hoje os seus ideais ecologistas. Possuidora de uma alma poética, que tanto o ambiente bucólico em que se encontrava inserida como o regime opressivo do lar paterno haviam favorecido, sentira um prazer diferente em estar viva quando o conhecera, quando a presença dele a iluminara. Julgara então ter descoberto o seu ambicionado porto de abrigo, o farol que orienta um marinheiro perdido na tempestade. Como tal, não hesitara em idolatrar a sua natureza apaixonada, ignorando a tendência, que ele desde cedo demostrou, para o vício e para o autoritarismo. Para poderem ficar juntos, abandonara os estudos e os amigos, mudando de terra e de sonhos sem qualquer sinal de pena. Mas, quando o encanto inicial esbateu a sua aura, surgiram as primeiras questões da vida em comum e, actualmente, as crises haviam-se tornado uma constante. Qualquer tentativa de diálogo esbarrava no desalento e no alcoolismo, e tanto o afecto como as ameaças, duas armas que utilizara o melhor que sabia, não surtiam o efeito desejado de lhe mudar os comportamentos.» Esquecida nas suas memórias, não se apercebera de como a manhã ia alta… A maré baixara e a areia que as águas tinham abandonado secava já sob o calor do sol, quando notou sem espanto que o chão ficava indistinto, começando a desenhar-se nele círculos pequenos e húmidos. Mas não ia desistir agora! Chegara a hora, por demasiadas vezes adiada, de apostar em si mesma.

Levantou-se com decisão e segurança, iniciando o caminho de regresso a casa. A mente recém-conquistada por velhos sonhos e o corpo vibrando de  uma energia desconhecida. Na areia que os seus pés calcavam ficava agora, em sulcos fundos, a marca dos passos que dava.

Aurora – Deusa romana encarregada de abrir ao Sol as portas do Este.

(in Mini Enciclopédia Círculo de Leitores)

Aurora – s.f. (do lat. aurora). Claridade que antecede o romper do sol; crepúsculo matutino. || Começo de qualquer coisa. || O princípio de uma época que se reputa boa ou ditosa. || Nome de uma árvore ornamental [da família das Esterculiáceas]. || Planta malvácea, também conhecida por rosa-da-China. || Cor entre o branco e o vermelho.

(in Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Tomo I)

      Verão de 1995

Este texto ganhou o “Primeiro prémio 25 de Abril”

Duas Pinceladas num Quarto de Tela

“Esta é a história de uma mulher e de um homem que se amaram plenamente, salvando-se assim de uma existência vulgar.”

(Isabel Allende in “De Amor e de Sombra”)

 Finalmente descobrira um local onde o tempo se prolongava esquecido, sem maiores pressas, pela tarde dentro. Eram poucos os visitantes da galeria naquela tarde acinzentada de Outubro em que, lá fora, se arrastavam já as primeiras folhas caídas sobre os ímpetos uivantes da ventania, que fazia mover os raios de luz e desviava até a rota original das aves. No entanto, ali dentro, mesmo protegida dos desalvoros do vento e da infinita melancolia do céu, continuava com uma disposição solitária, adequada à fria palidez e ao silêncio monacal dos corredores, apenas coloridos e quentes nas diversas manifestações de arte que ao longo deles marcavam presença. Devagar ia olhando todos os quadros, com uma expressão vaga que os menos atentos poderiam facilmente confundir com desinteresse. Subitamente estacou, incapaz de um próximo passo, com o olhar fixo e penetrante numa tela que, estando segura de nunca ter visto antes, juraria conhecer desde a nascença. Sentiu-se de imediato vencida pelo magnetismo impreciso da obra e deixou-se conduzir aos seus pormenores mais velados, em sagrados momentos onde a celebração da vida se lhe revelou, transmitindo-lhe uma imensa sabedoria. «Entra. Sente-se quase invisível, possuidora da figura evanescente dos espíritos, mas, como não tem a certeza dessa imaterialidade, esforça-se para que o soalho não lhe estale debaixo dos pés. O quarto é mediano e simples, quase pobre. Tem por única mobília uma antiga cama de pinho e uma mesa de cabeceira vencida pela idade, sobre a qual descansa um candeeiro a petróleo, de vidro embaciado e chama vacilante. Frente à cama os vidros de uma pequena janela, cujos caixilhos denunciam a passagem dos anos, evidenciam contornos do exterior. Adivinha-se através deles a quietude bravia do lugar, o cheiro ácido da terra e a própria dormência da Natureza. A luminosidade dentro do quarto é a suficiente, realçando-se o brilho da chama à medida que se aprofunda o entardecer. Tem-se uma imediata sensação do peso do ambiente, pois a sensualidade ali contida não parece soltar-se apenas dos dois corpos saciados que repousam na desordem dos lençóis. A sensualidade está presente sob todas as formas possíveis, desprendendo-se do mobiliário, da tinta das paredes e do negrume do tecto. A noite, feiticeira, traz vida àquela imagem e impregna o ar com invulgares cintilações de poesia que ajudam a desanuviar a tensão ambiente. Afinal, não estão adormecidos: tocam-se, desencadeando os primeiros movimentos do ritual amoroso. As mãos, deslizando, vão quebrar-se como ondas no seio sereno e os lábios, queimando, decoram a fina textura da pele. Ao mesmo ritmo, com a mesma cadência, os corpos desprendem-se da penumbra: já não são meros vultos escuros de perfil indistinto como sombras chinesas recortadas na parede à contraluz. São dois corpos seguros e ardentes, que se elevam do leito mantendo-se flutuantes a escassos centímetros da colcha de linho amarrotada que desce pela cama até roçar no chão. Parecem quase desmaterializar-se, perder a forma, dissolvidos numa poalha de reflexos. Deslizam na fluidez do espaço e na lentidão do tempo, que são ali autênticos, que se deleitam até ao êxtase, imitando o prazer dos dois seres que estão incumbidos de velar. Dois seres que vivem intensamente o prodígio de se descobrirem um no outro, de se envolverem uma vez mais em mútuo conhecimento, sempre deslumbrados pelo repetir da revelação. Se têm pensamentos nesse instante, estes são por certo incapazes de caber no tempo e no entendimento da civilização. Nota-se em ambos uma espécie de ligação livre de atalhos e fronteiras interiores entre o corpo e a mente. Um é, em permanência, o guardião do outro e, mesmo a dormir, vigiam-se mutuamente através de sonhos. Encontraram um desses raros amores, construído com demora, que parece já ter resistido a distâncias e guerras e vencido monotonias e desilusões. Partilham-se numa relação superior, desenvolvida e dominada por silêncios e intuições e, permanecendo unidos do mesmo lado da sensibilidade, consumam o seu amor longamente, como uma chama que pode durar até um tempo que a Humanidade não conhece. Aprenderam a amar-se serenamente, cada um a tocar a pele do outro, descobrindo os seus segredos e o desejo de cada fibra. Muitas vezes conseguem mesmo situar-se longe da realidade, que as horas suspensas naquele local ajudam a apagar ou que a imaginação ilude. Tinham deste modo alcançado uma plenitude que permitia a qualquer um dos dois a libertação através dos gestos do outro, ambos se lendo e se despindo na delicadeza de um olhar. – Encontram-se momentos sagrados quando entramos num mundo de conhecimentos de tom tão secreto – pensa com assombro, ali estagnada no calor, enquanto percepciona tudo com nitidez e embaraço, numa quase transparência. Por instantes, a sua própria sensibilidade impressionada esquece que a fusão total e perfeita de duas pessoas mais não é do que uma utopia romântica. E, no entanto, não lhe é possível saber algo de mais simples, de menos profundo: a simplicidade, o óbvio, parecem estranhamente não corresponder às partes tangíveis daquele amor. Só ao complexo lhe é cedido o acesso.

Não sabe se os dois seres estão naquele quarto pela primeira vez ou encarcerados pelos anos. Desconhece qual a razão por que não se escuta ali um só som: nem dos estalidos secos da madeira da cama, nem do suave toque dos lençóis, nem da voz  sussurante dos amantes. Dir-se-ia que os sons ali não se propagam, que a cena decorre num vácuo ou para lá das vulgares barreiras espácio-temporais.

Acalmia. Agora encontram-se já em sossego, cada um enfrentando a sua momentânea solidão. Estão invadidos por uma paz de recém-nascido, e  possuem um brilho raro na nudez semeada por gotículas de transpiração. Deixam-se contemplar: ele de rosto largo, bem demarcado e tronco endurecido, trabalhado com arte; ela, de cabelos agrestes, olhar de silenciosa atenção e pele dourada, com um ardor de sal. São belos, são incrivelmente belos porque são autênticos nas suas expressões imperfeitas, o que lhes imprime contornos de misteriosos animais selvagens. Por entre sorrisos trocam olhares onde a mansidão dos prados nos olhos dele suaviza a terra ardente dos dela. O aroma adocicado, intrínseco aos dois, lembra o da tinta fresca, do verniz da moldura e do tecido da tela, associado ao extravagante cheiro a luxúria dos quartos de pensão. Quando só um dos dois amantes ali estiver, vai certamente sentir o corpo ancorado ao leito e a alma encolhida no espaço que a ausência do outro deixou vazio. Sempre que tal sucedia, ela procurava-o com desespero em cada recanto de si mesma e ele agia de igual modo, embora nunca o tivesse confessado, pois o assunto era parte integrante da sua natureza enigmática. No entanto, ela soube-o, tal como sabe toda a verdade sobre ele agora: nunca um homem é tão transparente, frágil e vulnerável como quando repousa ao nosso lado na sua completa nudez. Inicialmente, essa falta deixava-lhes a existência sem rumo possível, mas a experiência levou-os a descobrir um mundo de invisibilidade onde podiam orientar-se como entidades transcendentes. Aprenderam a guiar-se pelo ardor impalpável do desejo, que se recusava a desimpregnar a pele atormentada e invadia a candura dos lençóis, transformando, em cada ausência, a cama numa prisão. Só um tinha então autoridade para entrar nos sonhos do outro, despindo-se na sua noite, vindo da penumbra do quarto, das fragrâcias da distância e da dor do silêncio. Enquanto isso, sucediam-se sonhos tão intensos que por pouco não incendiavam os lençóis, transformando a cama de madeira exausta numa pira dantesca. E durante todo o dia essas lembranças permaneciam como sombras na face da memória, ameaçando persistir para vidas posteriores.

– Esta é a milésima segunda noite de encantar, aquela que Scherazade nunca chegou a criar durante a sua longa odisseia de contista virgem – pensou quase alto, numa tentativa de sobreviver ao seu próprio espanto. Na sequência destes pensamentos, uma total imobilidade regressou à cena e ela sentiu a leveza nascer-lhe nos pés, possibilitando-lhe de novo o caminhar, e a capacidade de decisão ser-lhe restituída: já podia optar por sair livremente da tela e, contudo, hesitava em fazê-lo… a energia tinha-se-lhe esvaído…»

  Por fim, despertou das brumas e abandonou a tela ao seu erótico perfume. Sentia os membros pesados e dormentes e a vista inadaptada à intensidade da luz. Ainda se ficou a contemplar o quadro, demoradamente, mas não se despediu porque isso lhe era impossível. Nunca o veio a adquirir pois soube desde logo que as suas paredes, tal como as daquela galeria, não eram suficientemente amplas para a mensagem que, num envolvente e delicioso secretismo, o autor tencionava transmitir. A tela devia ser pertença exclusiva da Natureza, ou de alguma outra entidade igualmente grandiosa e indomável.

Além disso, temia demasiado que àqueles dois corpos, construídos em duas simples pinceladas rosa, ocorresse em alguma ocasião o cansaço do seu quarto encolhido na tela e se resolvessem a escapar dos limites da moldura. Então, seriam livres para lhe povoar os sonhos de arrebatamento, a perseguir na noite imensa e lhe transformar em fogo os alvos lençóis e a amarrotada colcha de linho que, nos momentos de maior desordem, pende cama abaixo até roçar no chão!…

Verão de 1995

Excerto do livro “Duas pinceladas num Quarto de tela”, que ganhou o “Prémio conto erótico”

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