Quando Tristão encontrou Isolda
A ideia de amor romântico, a mais precária e a mais diáfana das emoções, não acompanha o homem desde o início dos tempos. É uma ideia do nosso milénio, mas deve sobreviver a ele
por JOYCE CAROL OATES Escritora,
autora de Para jamais Esquecer e O Boxe
O amor no mundo ocidental – para tomar emprestado o termo de Denis de Rougemont – passou a significar quase exclusivamente amor romântico. Emoção pura, paixão, “amor à primeira vista”. Para quem aceita normalmente o significado do amor romântico, pode ser uma surpresa descobrir que é relativamente novo na história da raça humana o conceito de “amor” como emoção e não como paixão proibida. O amor romântico não é exactamente um amor que desafie convenções, pois, entre todos os tipos de amor, é o mais convencional, o que surge com aparente espontaneidade: não-proposital, não direccionado pelas sugestões ou reprovações dos outros, cru, não-premeditado, não-cerebral e não-genital. Amor romântico é para sempre e se opõe às prescrições formais de comportamento: casamentos arranjados, por exemplo, nos quais noivas e seus dotes são possessões entregues a um noivo e sua família, em arranjos do tipo comercial, que têm pouco a ver com os sentimentos individuais. A mais celebrada das figuras públicas do final do século 20, Diana, Princesa de Gales, parece ter sido uma mártir desse tipo de arranjo. Seu casamento político com o príncipe Charles terminou em dissolução e divórcio, e sua “procura por felicidade pessoal” (isto é, amor romântico) terminou em uma morte pública e grotesca num boulevard de Paris. No mundo antigo, o amor romântico parece ter sido virtualmente desconhecido e raramente celebrado. O termo genérico “amor” nem existia. O sentimento de amor romântico como o conhecemos foi o amor homoerótico dos gregos mais velhos pelos rapazes gregos. O amor marital, que certamente existia, parecia não ter muita consideração, ao menos na literatura que chegou ao nosso tempo. A longa metáfora da República de Platão – ou o Estado perfeitamente equilibrado – apresenta o casamento como companheirismo. Em contraste, o Symposium do mesmo Platão celebra o amor homoerótico nos termos românticos mais enrubescedores. Que diferença da atracção extraconjugal dos heterossexuais, que termina sempre em devastação e morte violenta! No Hippolytus, de Eurípedes, a rainha Fedra se apaixona pelo filho ilegítimo de seu marido. O rapaz a rejeita e termina por levá-la ao suicídio. Fedra não é romântica. Ao contrário, é a vítima de uma paixão incontrolável, indesejada, imposta a ela por Afrodite. Esse desejo é o mesmo que uma maldição. No pensamento clássico, a intervenção de Eros nas relações humanas assinala caos e desastre. No pensamento mais moderno, romanticamente inclinado à sensibilidade, Eros é a própria força motriz da história da vida, um aparentemente interminável fundo de fantasias e desejos (principalmente heterossexuais). Embora escrito em 1469, o conto de adultério de Lancelot e Guinevere, descrito por Thomas Malory em A Morte de Arthur, é surpreendentemente contemporâneo. Os romances ilícitos de Heloísa e Abelardo, Tristão e Isolda e outros amantes medievais trazem uma intensidade de sentimentos genuínos até então inexistente na literatura. Nos séculos 14 e 15, ao menos nas sociedades aristocráticas europeias, Eros se tornou uma arte refinada, merecedora da máxima atenção de um homem da corte. Não se tratava de sexualidade grosseira, mas de uma gentilesse. O amor do cortesão por sua lady, normalmente a mulher de um outro homem, tem sido interpretado como uma secularização do culto medieval à Virgem Maria, uma “feminilização” da Igreja Católica Romana patriarcal. Essas histórias inevitavelmente foram escritas de um ponto de vista masculino. A lady é santa, de uma beleza de outro mundo. Ou, em aperfeiçoamentos posteriores, é cruel, até mesmo diabólica, e o cortesão é punido por sua própria paixão. “Tristão” descortinou uma intensidade de sentimentos até então desconhecida Nos séculos seguintes, no Ocidente, o amor romântico triunfou como uma espécie de mística pessoal, ligado a um alto valor cultural. A quintessência da heroína de mente romântica é Emma Bovary, de Flaubert, o fino retrato de uma mulher condenada à infelicidade no amor. Emma é corrompida não por um homem real, mas por sua leitura. Ela quer encontrar no mundo a elusiva imagem da paixão romântica. O problema com esse desejo, sugere Flaubert, é que ele invariavelmente leva ao desapontamento. Pelo menos um grande novelista norte-americano, F. Scott Fitzgerald, não escreveu virtualmente nada além de amor romântico (e suas imprevisíveis consequências). Poderíamos argumentar ainda que escritores tão diferentes como Carson McCullers e Jack Kerouac foram essencialmente celebradores do romance homoerótico. John Updike, nosso intrépido explorador das perversas ilusões do amor, parece um herdeiro norte-americano de Proust, tanto na precisão poética de seu estilo quanto por sua fascinação pela paixão erótica. As preocupações de Updike trazem à mente uma pergunta de Rougemont: “Sem o adultério, o que aconteceria à escrita criativa?”. Para muitos de nós, envelhecer na América tem a ver com tombar sob o encanto de sedutoras promessas do amor: crescer nos anos 50, como no meu caso, era ser bombardeado por imagens de todo tipo de ideia de amor romântico. Anúncios publicitários mostravam garotas – infalivelmente bonitas e femininas – em vários estágios de felicidade, sempre relacionados com homens. Os filmes de Hollywood dramatizavam a predominante – para as mulheres, possivelmente a única – história com significado: a história de amor. Tirando as imagens de indivíduos cheios de romance, havia algumas outras não tão glamourosas. (E quanto a imagens de vida intelectual, por exemplo? Vida artística?) É claro que eram clichés. Mas que poder têm os clichés quando somos jovens e vulneráveis? “Romance”, para mim, de alguma forma ficou separado de qualquer figura ou ícone em particular e se ligou à procura por aventura, à exploração selvagem. Sorte a minha que não posso sofrer desapontamentos nesse “romance”, precisamente porque ele é abstracto e imaginativo. Amor romântico, a mais precária e diáfana das emoções, certamente sobreviverá ao milénio que o pariu, desde que uma civilização razoavelmente rica permaneça, pois o segredo do amor romântico é económico: um luxo de que só alguns podem usufruir, assim como o gosto refinado pela comida é consequência de um suprimento completo de alimentos. O amor romântico é ilusão? Alucinação? Um sonho ideal? Assim como a maioria da humanidade continuará a acreditar em deuses de várias denominações, quando nenhum deus jamais foi visto, homens e mulheres continuarão a cair no encantamento do amor romântico e vão guiar suas vidas por isso. Os biólogos podem descrever cruelmente as bases do acasalamento entre os mamíferos, mas, sendo humanos, sabendo muito bem, como avisa a música, que “se apaixonar pelo amor é se apaixonar pelo faz-de-conta”, somos a espécie que exige ser enganada, da forma mais agradável.