Mais do que o artesanato, o cajú e as memórias de paisagens inesquecíveis, a amizade é a melhor coisa que se pode trazer de África. Relato na primeira pessoa de uma viagem de afectos.
Sou irrecuperável nisso: prefiro as pessoas aos sítios. Não há sitio que não me recorde logo uma pessoa. E quando ela surge, fica, povoando, finalmente, o lugar de vida. Sei que vou irritar muitos, mas devo dizer que, sem ninguém, um lugar parece-me morto. Deprime-me pensar que não há sequer um olhar que sobre ele repouse. Os meus lugares são as pessoas sobre os sítios.
Nos últimos dois Verões, realizei um sonho: estive em África. Primeiro em Cabo Verde, depois em Moçambique. E fiz dois amigos nesses países. Mais, muito mais do que os encontros com políticos determinados pelo programa do grupo de estudo que integro, e as próprias virtudes da paisagem, o que realmente me ficou de Cabo Verde e Moçambique foi a amizade que fiz com duas pessoas: o Jerson, um miúdo cabo-verdiano, que tem o sonho de, um dia, poder vir estudar para Portugal e o Arão, um moçambicano de riso franco e comentário certeiro.
O Jerson, encontrei-o na Achada de Santo António, em frente à residência onde estive alojado. Sabendo da importância que o futebol português tem no imaginário das crianças cabo-verdianas, perguntei-lhe para meter conversa: “És do Sporting, ou do Benfica?”. Ele, muito dono de si, pôs-me logo em sentido: “Sou do Futebol Clube do Porto”. “E este ano que o Porto vai perder?.” Respondeu-me que não e enumerou os jogadores que iriam lutar pelo título. Pois, o menino de catorze anos das mas da Achada de Santo António mostrou talento raro em matéria de previsões – o Porto ganhou o campeonato nessa época.
A partir desse momento, estabeleceu-se uma boa amizade entre nós. Ele aparecia na residência e pedia para falar com “O Nuno, um rapaz branco, alto”. Eu descia e ficávamos a conversar. Perguntava-lhe pelos estudos, desejava que ele fosse brioso para assim poder ir estudar, como os meus amigos cabo-verdianos, para Portugal. Prometeu, sorrindo com os olhos, que ia trabalhar para isso.
Um vez, estava a tomar banho, quando me vieram dizer que o meu amigo Jerson estava lá em baixo à minha espera. Era o meu penúltimo dia de estadia na cidade da Praia. Segundos depois, ouvi a voz dele, vinda do corredor: “Nuno, preciso de falar contigo?”. Perguntei-lhe: “Estás bom?”. “Mais ou menos”, foi a resposta tristonha que me arranjou. Não quis explicar o motivo desse estado de espírito intermédio. Mais tarde, à porta da residência, deu-me uma resposta mais completa fazendo-me um pedido: “Deixa-me qualquer coisa, para eu depois me lembrar de ti”. Pensei em deixar-lhe uma t-shirt, mas depois lembrei-me de uma prenda que ele haveria de gostar de receber. “Mando-te depois uma coisa do FC do Porto”. Aceitou, sim, a contraproposta de bom grado. Pode-se imaginar. Na cabeça dele, deve ter circulado uma imagem viva de si, envergando um símbolo portista, num passeio orgulhoso pelas ruas da cidade da Praia.
Enviei-lhe uma bola do seu clube de eleição e uma pequena carta para a morada que me deu. Nunca mais soube dele. Enquanto espero notícias, limito-me a cumprir um exercício, o bastante para me encher de alegria. Sim, agora é a minha vez de imaginar: vejo-o, rapazinho da Achada de Santo António, a dar toques mágicos na bola sobre os campos pedregosos e difíceis de Cabo Verde.
O Arão Arnaldo Macie, como escreveu num papel, também tem sonhos de bola. Para além de ser ajudante de motorista de uma camioneta, é avançado dos juniores do Costa do Sol, clube que parece ter retirado ao famoso Ferroviário a exclusividade dos títulos. Sonha ter, um dia destes, uma oportunidade no Estrela da Amadora.
Ria-se, ria-se muito com as partidas que fazíamos uns aos outros. Posso ouvi-lo agora a dizer: “Ele é um malandro”, virado para o seu tio, o senhor Arnaldo, que nos conduziu pelas avenidas de Maputo, muitas das quais com nomes ainda não adaptados à nomenclatura do sistema de economia de mercado (Avenida Karl Marx e Avenida Mao Tse Tung, por exemplo).
Se ficasse mais algum tempo, levar-me-ia à Matola, a localidade onde vive:
“Gostava de mostrar lá no bairro que tenho um amigo branco”. Para além da sua caligrafia estendida no pequeno papel que me deu, tenho a voz dele gravada numa cassete. Uma pequena frase, anichada antes de uma entrevista longa que fiz ao autor do livro de contos “Apóstolo da Desgraça”, Nelson Saúte. Repete, por outras palavras, o pedido do Jerson: “Eu gostaria que deixasses uma coisa para mim fazer lembrança. És muito meu amigo. Três, quatro anos, eu ficava a ver-te, pá! Se não deixas uma coisa, como é que hei-de saber que tenho amigo em Portugal?”. Ouve-se na gravação, depois do desabafo do Arão, o riso aberto e sonoro do senhor Arnaldo.
Na despedida, disse-me que ia fazer tudo para conseguir, o mais rapidamente possível, mostrar o seu talento para os golos no futebol português. «Se for preciso, vou à bruxa”, quis, no fim da conversa, vincar.
Foi fácil fazer as arrumações na hora do regresso. Apesar de ter restado pouco espaço na mala, por causa do artesanato e dos panos pintados, não houve problema nenhum: o essencial já estava guardado no melhor lugar.
In “DNA” nº 184, de 10.06.00 (revista exclusiva do Diário de Notícias)