CONECTARTE – EXCERTOS

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“Ele Fuma Charros” 

– O que fazer?

Enquanto no país, e aliás por toda a Europa, se discutem quais as melhores políticas a tomar no que à “droga” diz respeito, vamos observando muitas atitudes preconceituosas e ignorantes, muitas pessoas que “pensam com o medo” e não com a razão, sendo incapazes de fazer uma análise objectiva do problema. Que o país possa encontrar a forma mais inteligente e eficaz de fazer frente à situação é, não só desejável como, aliás, algo em que todos nos devemos empenhar. Mas a verdade, e julgo que quem está à volta desta revista também já percebeu, é que não é o “pai-estado” protector que nos vai formatar uns meninos muito saudáveis, cheios de amor, de sucesso, e de qualidade nas suas vidas. A nós, que todos os dias lidamos com eles, cabe-nos fornecer-lhes as armas possíveis para que possam sair à rua com alguma protecção, contra a ignorância, é claro, mas também contra as atitudes apologéticas de algumas consciências mais inconscientes, que tratam o assunto como se do consumo de água pura da fonte estivéssemos a falar.

É por isso que este artigo, ao contrário de todas as ideias convictas que têm vindo à luz, não serve para descansar ninguém.

 A droga – continue a passar esta odiosa expressão que põe no mesmo saco uma série de substâncias psicoactivas de diferentes graus de risco e apenas as que são, por lei, ilegais no nosso país – não é um assunto trivial sobre o qual se possam dar receitas universais. Como vai ver, não há uma droga igual à outra, nem há pessoa para quem os seus efeitos e riscos sejam equiparáveis.

Se se preocupa, provavelmente pode continuar a preocupar-se. As drogas (todas!) podem ter efeitos nocivos sobre a vida dos nossos filhos a única verdade segura que aqui fica é que nós, como pais e pessoas que convivemos com eles, podemos ter efeitos mais positivos que cheguem ao ponto ideal de os fazer passar no largo do problema.

Para começar, uma entrevista com Manuela Brito, psicóloga clínica no Centro de Atendimento à Toxicodependência de Cedofeita, e Manuel Esteves, médico psiquiatra no Hospital de São João. Em comum, preparem um livro sobre a experiência de campo que ambos fazem diariamente e “ao vivo”, com os jovens toxicodependentes. Uma conversa não para expor posições mas para mostrar experiências. E, provavelmente, para nos ajudar a agir com bom senso se o pânico nos bater à porta.

  

Adolescentes (Adol) – De vez em quando vêm a público “notícias” de que em certas discotecas andam a pôr drogas nas bebidas…
Manuel Esteves (ME) – Essa ideia de que andam para aí umas pessoas a oferecer droga às criancinhas para as iniciar no consumo parece-me um mito.
Manuela Brito (MB) – Repare numa coisa: ao consumir drogas, grande parte do prazer que tiramos tem também a ver com as nossas expectativas. Se nos põem só uma droga dentro da bebida e nós nem sequer fazemos a mínima ideia que ela lá está, é natural que não tenhamos grande parte das sensações que, se soubéssemos, poderíamos obter.
ME – Penso que o primeiro contacto com a droga continua sem dúvida a ser a necessidade que a pessoa tem de se sentir aceite no grupo, e depois, a curiosidade.
MB – É preciso lembrar que a adolescência é um período particularmente sensível à curiosidade, com o natural gosto pelo risco, pela aventura e com a típica sensação de invulnerabilidade: os outros vão ficar dependentes mas eu jamais ficarei. Eu controlo as coisas.
ME- E não é só com as drogas. Eu também não fico grávida, eu não apanho doenças, eu não tenho um acidentes de moto mesmo que entre na curva aos SSSS.
MB – Para agravar o perigo deste sentimento de invulnerabilidade, há ainda muito pouca capacidade de se projectar no futuro. O que importa mais é o momento presente, aquilo que é agradável.
Adol – Porque é que uns ficam dependentes enquanto outros saem ilesos?
ME- O que nós sabemos é que há pessoas que fazem o seu consumo ao fim-de-semana, ou quando estão com alguns amigos mas depois fazem a sua vida normal. E depois sabemos também que há pessoas que aumentam sistematicamente a quantidade e frequência dos consumos. Se os primeiros fazem consumos recreativos e nunca ficaram dependentes, a verdade é que não podemos dizer à partida que o Joãozinho vai ficar dependente se consumir drogas e que o Joaquinzinho não fica. É por isso que a mensagem da prevenção tem sido “não toques em nenhuma droga’. É a mensagem mais segura. Só assim podemos assegurar que se está de certeza protegido. Porque, afinal, quais são os marcadores de risco da dependência? Eu tenho que falar como técnico de saúde e como tal só posso dizer que não os há.

Podemos, isso sim, encontrar alguns indicadores. Por exemplo, duas pessoas, uma que tem uma personalidade mais madura e confiante, comparada com outra mais imatura, que tem baixa auto-estima e está pouco convicta das suas capacidades, vão provavelmente sofrer efeitos diferentes.
MB- De qualquer maneira, aquela velha ideia do “droga, loucura, morte”, começas no haxixe e vais inevitavelmente acabar na heroína, essa visão de um escalada, penso que hoje já ninguém acredita nisso. Pelo menos as pessoas que trabalham nesta área.
ME- É certo que não há um percurso inevitável de umas drogas para as outras, como é certo que o haxixe não apresenta os riscos que representa uma cocaína ou uma heroína. Mas representa apesar de tudo alguns riscos e as pessoas também têm que ter uma noção disso. Não é uma droga inócua.
O síndrome amotivacional provo­cado pelo haxixe é uma evidência clínica: há pessoas que fazem os seus consumos regulares de haxixe e não vão desenvolver uma psicose, também não vão entrar na marginalidade, nem vão precisar de roubar para arranjar a droga. Trabalham e vão continuar a fazer as suas coisas. O problema está em que não atingem as metas que atingiam antigamente. Este jovem antigamente estava muito interessado em tirar notas altas, subir no emprego, escrever umas coisas giras, tocar viola, estava sempre pronto para se reunir com os amigos e ir ver o ultimo filme que estreou, mas agora já não. A moti­vação vai ficando hipotecada.
Adol- Mas isso não é propriamente uma lei. Há muito boa gente que fuma haxixe sistematicamente e que continua a fazer o seu trabalho ou a correr para o cinema com o mesmo entusiasmo de há 20 anos atrás. Não é assim?
ME- Claro que não é uma lei.
MB- Provavelmente o que se passa é que hoje em dia estamos a ter inícios de consumos muito precoces. Cada vez mais vemos inícios no haxixe por volta dos 11, 12 anos, idade em que a pessoa iria começar a fazer determinado tipo de investimentos. Neste caso, um dos efeitos típicos do haxixe – a sensação de relaxamento – mostra o lado mau da moeda. Isto é, todos nós precisamos de qualquer coisinha que “nos pique”, para nos levantarmos da cadeira, e com o haxixe eles ficam um bocadinho emperrados.
ME- E quanto mais cedo se começa, maior a interfe­rência sobre o desenvolvimento da pessoa e sobre o sistema neurológico mais imaturo.
Adol- Quer dizer que numa criança dessa idade nem sequer existem as estruturas de apoio com que um adulto pode contar como, por exemplo, ter exigências na vida que o “poupem” a más opções. Coisas do tipo “hoje fumei porque se proporcionou mas amanhã não fumo porque tenho uma série de coisas que quero fazer, e no pleno domínio de todas as minhas Faculdades”…
ME- É isso mesmo. O problema é que nas pessoas mais imaturas o consumo nem sequer as vai deixar amadurecer, não as deixa passar as fases que deviam ter passado.
Adol- E as drogas em si, não há umas com um carácter mais aditivo?
ME- Na minha perspectiva, há um conjunto de factores que vão ou não, depende da pessoa, induzir uma dependência a curto ou a longo prazo. E não são só as substâncias químicas: é o jogo, o sexo, a internet, a televisão, por vezes até as relações afectivas. São as pessoas que podem ter uma personalidade que as predispõe à dependência. Mas depois, a acrescentar a isto, e existe então a farmacologia da substância que se consome. Dependendo da farmacologia das substân­cias e das características da pessoa, assim uma dependência se desenvolve mais depressa ou mais deva­gar. É a questão da perda do controlo. Quer dizer, quando é que eu perco o controlo com o álcool? Ou com o jogo? Ou até mesmo com o haxixe? Algumas pessoas nunca. Mas sabemos que há drogas que, pelas suas características farmacológicas, provocam uma dependência muitíssimo rápida. Por exemplo a cocaína ou o crack.
Adol- E o ecstasy?
ME- O ecstasy provoca principalmente uma depen­dência psicológica mas, sendo urna substância nova no nosso meio, ainda não podemos definir exactamente como é que se vai processar a dependência. Mas sabemos que tem riscos sérios para a saúde.
MB- Nomeadamente a desidratação e problemas cardiovasculares.
ME- É uma substância que não permite à pessoa sentir o cansaço. Os avisadores do cansaço desaparecem e a pessoa está capaz de fazer esforços para cima dos seus limites, podendo estar a pôr a vida em jogo.
Adol- E a heroína?
MB- Há uma coisa que é importante saber apesar de que é preciso cuidado com as interpretações. Enquanto que o haxixe dificilmente causa problemas sócio-económicos e legais, há muita coisa que acaba por acontecer aos consumidores de heroína, que não sabe­mos bem se é efeito da própria droga ou de todas as contingências que depois rodeiam essa droga. Como seja o indivíduo ter que estar constantemente a pensar como é que vai arranjar dinheiro para a próxima dose, ter que descer na sua escala de valores morais e ter que roubar dinheiro em casa para a comprar, depois ir assaltar nos autocarros etc, etc. Começar a ser excluído e marginali­zado…
Adol- Isso é a questão da ilegalidade da heroína e por conseguinte dos mercados paralelos que “fixam” um preço perfeitamente irreal?
ME- É. E se não tivéssemos que lidar com isso, poderíamos estudar com maior objectividade o problema da química da heroina.
AdoI – Mas mesmo que a questão fosse só química, os efeitos imediatos da heroína nunca se podem pôr ao nível dos do haxixe, pois não? A minha performance depois de consumir heroína é necessariamente mais pobre, correcto?
ME- Certamente.
MB- Mas o mesmo já não podemos dizer, por exemplo, da cocaína. Você pode funcionar adequada­mente em determinados contextos.
ME- Apesar de que dentro da cocaína temos ainda efeitos muito diferentes. Enquanto que com a cocaína ‘snifada’ a pessoa fica cheia de speed (depois começa a ter problemas, mas a principio fica cheia de speed) e pode funcionar perfeitamente, se a pessoa consumir uma base de coca (fórmula diferente fumada em cachimbo e preparada com outras misturas que a tornam mais barata e que tem um efeito muito mais rápido e potente do ponto de vista da criação da dependência) ou ainda o crack (outro derivado da cocaína), já não consegue a mesma performance. Vai ter que estar permanentemente a consumir numa espécie de orgia até se acabar o dinheiro.
ME- Uma coisa que vemos por exemplo com a heroína é que os doentes que sabem que vão ressacar de manhã, conseguem guardar alguma coisa até essa hora para evitar o sofrimento. Isso com a cocaína é impossível de fazer. A pessoa não consegue resistir a tê-la ali e não a consumir. O impulso de consumo da cocaína é muitíssimo alto.
MB- Com a heroína consegue-se estar por um certo período relativamente saciado, quer física quer psicologicamente. Com a cocaína essa sensação parece muito difícil de obter.
Adol- Se soubermos que o nosso filho fuma haxixe, como é que pode­mos aferir se os consumos que já fez ocupam um lugar importante na sua vida?
MB- Se na relação com o filho já existe abertura suficiente para ele assumir que bebeu ou fumou, prova­velmente, se continuarem a conversar ele vai dizer com que regularidade o faz, em que circunstâncias e se calhar isso ajuda-nos a perceber um bocadi­nho qual é a função que no momento aquela droga está a ter para ele.
Adol- Então no fundo o impor­tante é percebermos a função?
MB- Eu acho que é. Mas atenção, só até à depen­dência porque ai a substância química toma o comando e temos que agir de outra forma, muitas vezes com ajuda especializada.
Mas partindo do principio que estamos a falar ao nível da experiência pontual e não da dependência, se alguém tem de fumar para estar mais à vontade, essa função já pode ser em si perigosa.
ME- Outra função pode ser a utilização de uma droga como automedicação. Se um indivíduo está deprimido a droga pode libertá-lo de alguns sintomas (dando a ilusão de que já não está deprimido), como acontece com uma pessoa que tem uma fobia social ou uma pessoa com níveis de ansiedade muito altos. Mas agora depende da droga. Obviamente que uma pessoa com níveis de ansiedade muito altos nunca fica dependente da cocaína porque vai sentir a cocaína como pouco agradável para ela. Ao contrário, para uma pessoa com uma depressão inibida, apática, a cocaína faz muito mais sentido.
Depois temos ainda a droga para testar os limites da família. Ou a droga para manter a família unida porque se não a família desagrega-se.
MB- Muitas vezes temos que perceber qual a função que aquele filho toxicodependente está a cumprir na família. E detectamos que os pais se teriam separado não fosse o facto de naquele momento terem o problema do filho para resolver em conjunto.
ME- Agora é óbvio que os adolescentes também consomem se não tiverem coisas mais interessantes para fazer. Se eu tiver uma actividade de que gosto, em vez de fumar um charro estou empenhado nessa outra coisa.
MB- Mas cuidado. Hoje em dia corre-se muito o risco da massificação das alternativas. A solução não tem que ser massificada tipo: desporto para todos. Se o desporto, por exem­plo, não tem nada a ver comigo, então caímos no mesmo perigo de não lhes estar a apresentar alternativas. Faz lembrar muitos centros de recupera­ção de toxicodependentes onde eles têm todos que ir fazer carpintaria ou fotografia ou artes gráficas, quando muitas vezes isso não tem nada a ver com eles.
ME- É por isso que é preciso estar atento às necessidades reais de cada um e àquilo que representa. para cada adolescente, uma ocupação satis­fatória dos seus tempos livres. Por outro lado a família também deve ensinar o jovem a “aborrecer-se’, isto é, a preencher os períodos de tédio ou pelo menos a saber lidar com eles. E muitos de nós não sabemos fazer isso, não somos capa­zes de descobrir um entretenimento, de fantasiar quando não temos uma actividade à mão.
Adol- Isso se calhar acontece porque hoje em dia andamos sempre atrás das crianças com medo de que não estejam “bem ocupadas”, sem lhes dar tempo de descobrirem por si actividades que lhes dêem prazer. Pro­vavelmente é uma falha que já vem de trás.
MB- É verdade que vemos cada vez mais o tempo livre das crianças ser ocupado com coisas exteriores, coisas que lhes fazem muito bem, com certeza, mas que de facto não deixam um minuto livre para a pes­soa inventar ou ter tempo de tomar a iniciativa, dizendo eu gostava de fazer isto ou aquilo. Ninguém está a ser educado para saber lidar com o tédio e isso, se calhar, é um dos melhores motores para a pessoa ir experimentar coisas que às vezes dão asneira. Porque as pessoas não têm oportunidade de descobrir a tal fantasia, a imaginação.
Isto para além do facto de verem a mãe nervosa, infeliz ou com dificuldades em dormir a enfiar um compri­mido, o pai a chegar a casa cansado de um dia de traba­lho dizendo agora ninguém me chateie e a “emborcar dois whiskies.
ME- Mas sabe que as drogas socialmente integra­das, como no nosso caso é o álcool, são muito menos danosas. Há algum problema de toxicodependência na Colômbia porque os campesinos mastigam as folhas de coca enquanto estão nos campos a trabalhar? Consomem para ir trabalhar, naquele contexto. O cogumelo alucinogénico nas culturas índias entra em rituais sagrados, não é fora. Há regras para o consumo.
MB- Para a quantidade de pessoas que em Portugal bebem – porque são raros os que nunca tocam numa bebida – acabam por ser relativamente poucos os que ficam dependentes. (Não subestimando o facto de que o alcoolismo é a principal toxicodependência no nosso país).
ME- E isto porque há regras para o consumo da substância. A pessoa consome álcool à mesa. De manhã, por exemplo, fica mal beber um copo. Existem regras que domesticam o consumo.
MB- Mesmo na altura dos hippies, as drogas não apresentaram a dimensão do problema que hoje repre­sentam. Eram consumidas num contexto de partilhas emocionais, partilhas de experiências, no fundo partilha ideológica. Hoje em dia, o que vemos é que, apesar de os jovens se iniciarem no grupo, ao fim de algum tempo estão a consumir sozinhos. Ou se se juntam é apenas para comprar, dividir, “empresta-me a seringa”, etc. A relação é uma relação com a droga de onde os outros estão excluídos.
ME- É ainda o exemplo dos opiáceos utilizados para a dor dos cancerosos. Raramente alguém fica depen­dente. O fármaco é dado a horas certas, nas doses certas, para um determinado fim e enquadrado num contexto preciso.
MB- E aqui aparece outra vez a questão das expecta­tivas de que já falámos. O LSD por exemplo, que é um alucinogéneo, sempre que experimentado num animal que não tem expectativas, é sentido como negativo e ele não lhe volta a tocar. Nós vamos ficar fascinados com as cores, as formas diferentes, etc, etc, mas para um animal isso é assustador. Só se lhe dermos o sentido do prazer é que a experiência pode ser diferente. Já com a cocaína a história é outra. Nos testes feitos com ratinhos de labora­tório, eles procuram a cocaína até à morte.
Adol- Voltando à questão do que fazer como pais e educadores. Podemos definir os factores protectores, aqueles que podem evitar a experiência ou, pelo menos, a dependência?
ME- Um deles é ajudá-los a encontrar um rumo na vida porque se eles tiverem um rumo definido as drogas fazem menos sentido. E as pessoas hoje em dia têm pou­cos rumos. Antigamente, se não era o rumo profissional era o rumo das ideologias, o rumo político ou cultural. Hoje em dia temos a sensação de que existem menos condições para os jovens se exprimirem e realizarem nes­tas áreas.
MB- Por outro lado, se lhes damos amor e atenção, se nos mostramos disponíveis, se somos pais “perguntáveis” e os nossos filhos são capazes de vir ter connosco, se lhes dermos este espaço de comunicação e estabilidade, ajudamo-los a desenvolver autoconfiança. E a autoconfiança também é um factor protector. Se eu con­fiar em mim e nas minhas capacidades não vou ser tão vulnerável a que essas capacidades sejam modificadas por coisas de fora. Não preciso de ir “buscar as capacida­des” a substâncias exteriores. Depois, é importante que os pais evitem os moralismos fáceis, porque se vierem logo com o discurso do “droga, loucura, morte’ onde tudo está no mesmo saco, o filho corta a conversa que não lhe está a servir para nada e nunca mais vai perguntar seja o que for. Não acredito que seja assim que conseguimos passar os valores protec­tores. Se nós contribuirmos para o facto de os nossos filhos terem determinados interesses intelectuais ou culturais e se eles perceberem que a droga condiciona o acesso, o gozo, o prazer que podem tirar dessas coisas, é capaz de ser bem mais eficaz. Há uma coisa muito gira que me lembro de ter visto num vídeo americano de prevenção primária do haxixe e que acho que com os adolescentes funciona muito bem. Têm que ser coisas assim, concretas e objectivas, tão sim­ples como eles terem filmado dois miúdos a jogar tetris, um que não fumou haxixe ao lado de outro que esteve a fumar. Prova-lhes por A+B como as suas capacidades ficam diferentes. Não é preciso ir mais longe, a coordena­ção motora, a velocidade, a atenção, nada disso está nas melhores condições. Não adianta estar a dizer-lhe não fumes porque tens muito menos capaci­dade para estudar. Tudo bem, a gente diz, mas se calhar surte menos efeito do que se for algo que lhes diz respeito no momento. E não nos podemos esquecer que informar não é sentarmo-nos à mesa, como dantes, “está no dia de ter­mos aquela conversa”… Os assuntos têm que ser natural­mente abordados de cada vez que surgem e desde sem­pre, não apenas quando se chega à adolescência.

Depois temos que ter cuidado para não precipitar discussões acaloradas com posições extremadas. Se por exemplo o filho diz: “Eu acho que um charro não é pior que o tabaco ou que o álcool” e os pais respondem furio­samente com um “és doido”, em vez de aproveitarem para perceber o que é que ele está a querer dizer com aquilo, é óbvio que já não se vai a lado nenhum, fechou-se a ponte de comunicação.
Adol- Estava a dizer que um dos factores protectores é saber indagar o que eles pensam, quais as dúvidas que têm. Mas se perguntarmos a um adolescente “diz lá o que é que queres saber” ele manda-nos bugiar. Como é que isso se faz sem parecer­mos intrometidos?
MB- Quando pergunta­mos ao longo da vida “o que é que tu achas”, “o que é que tu pensas”, vamos recolhendo pistas. Falando muito concre­tamente, por exemplo em ter­mos de sexualidade, nós às vezes andamos a explicar aos meninos de onde vêm os bebés e o que eles querem saber é se podem engravidar mesmo tendo relações de pé. Isto já me aconteceu quando tive que ir a uma escola falar com miúdos do 9º ano sobre sexualidade. Se eu tivesse preparado uma comunicação, nem chegava a saber as dúvidas incríveis que eles tinham e que assim conseguiram expor.

Se nós formos dando espaço para eles colocarem as questões que lhes surgem, se calhar não são aquelas com que nós estávamos preocupados, se calhar são outras coi­sas que a nós nem passava pela cabeça que lhes pudesse passar a eles.
ME- Nestas coisas de querermos fazer prevenção, há um risco muito concreto, por exemplo quando vamos às escolas dar aquilo que achamos que devemos dar. E isto porque algumas mensagens que passamos podem ser descodificadas ao contrário. Se eu chego lá a dizer “as drogas, meus amigos, são uma coisa perigosa e arriscada!”, tenho todos aqueles que gostam de sensações for­tes a esfregar as mãos de contentes. Se eles saltam de elástico de uma ponte abaixo, se fazem parapente, então as drogas também devem ser interessantes…
Dentro dos factores protectores é também muito importante aprender a lidar com a frustração.
Adol- Como é que isso se aprende?
ME- Ë com o Não claro, e com o Sim. Não agora mas sim mais tarde. Não podes tomar banho agora no mar mas daqui a três horas já podes. Queres a bicicleta, tem paciência mas tens que passar o ano. São coisas tão simples como isto. A pessoa fica frustrada mas o que aprende é a gerir bem esse sentimento. As primeiras vezes sinto raiva, bato o pé e choro, mas depois vou encontrando um mecanismo de compensação.
Adol- Mas, concretamente, como é que o facto de eu saber lidar com a frustração me “defende das drogas”?
ME- As drogas fornecem uma gratificação imediata e se eu souber lidar com as minhas frustrações, já aprendi a adiar o prazer, já aprendi a dizer que Não. Eu tenho sempre que lidar com as dificuldades. Se me sinto capaz de lidar com elas e se tenho capacidade para isso, sou bem sucedido. Se eu não sou capaz ou se sinto que não sou, começo a entrar em sofrimento. O que é que me causa stress? É avaliar uma situação que vou ter que enfrentar e começar a ter a sensação de que não tenho mecanismos para lidar com ela. O que acontece é que alguns jovens utilizam as dro­gas como mecanismo para lidar com os problemas. Isto é, como eu não tenho meca­nismos para lidar com este problema, em vez de apren­der a lidar com ele, alheio-me dele. E não é só com as drogas químicas. Tenho amanhã um exame de Matemática Aplicada mas se estiver a navegar na Internet durante oito horas seguidas não tenho que estar a pensar no exame que me causa sofrimento. E uma maneira de eu lidar com o sofrimento. Evitando-o. E se eu o evitar sempre não descubro outros mecanismos. Os mecanismos aprendem-se à custa de algum stress.
Adol- Mas, como pais, como é que percebemos se os nossos filhos estão dotados desses mecanismos?
ME- Podemos estar de olhos abertos para a forma como ele vai solucionando uma série de questões. Por exemplo, ele está muito angustiado com a exigência da entrada para o ensino superior. O que é que ele pode fazer? Pode estudar mais, pode arranjar um explicador, pode falar com os pais e dizer: “Isto está a exigir demais de mim, vamos pensar noutras metas..”. Assim estará a utilizar os tais mecanismos adaptativos. Pelo contrário, pode alienar-se, consumir uma droga, e enquanto isso a cabeça não está presente. O problema é que não apren­deu nada. É a diferença entre modificar a situação e modificar só a percepção da situação… 

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CannabisPlanta cujo composto activo é o delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), aparece sob diversas formas tendo cada uma delas diferentes teo­res de THC e, portanto, diferentes níveis psicoactivos.

 HaxixeResina extraída da planta, pressionada até formar uma barra mais sólida e acastanhada.

Marijuana ou ErvaFolhas secas da cannabis.

Óleo de cannabis –quido com aspecto de melaço, refinado a partir da resina ou da própria planta.

Charro ou joint – Modo mais comum de utilização de qualquer um destes produtos, é um cigano enrolado em mortalha com mistura de tabaco, excepto no caso da erva que pode ser fumada tal e qual. Prática comum há alguns anos, hoje já não se fuma em cachimbos feitos com a prata do maço de tabaco.

Bolo de Haxe – O haxixe pode ainda ser misturado num bolo, sendo nesse caso o seu efeito mais lento a aparecer e os seus efeitos eventualmente mais duradouros e imprevisíveis. É pouco provável que algum “bom samari­tano” ande a ter o trabalho de cozi­nhar verdadeiros bolos para depois ir para a rua oferecer fatias às crianci­nhas. Pelo contrário, esta é uma forma mais “sofisticada de consumir à produto, frita em acontecimentos sociais episódicos.

O que se sente — O cannabis provoca uma modificação da percepção, com um aumento da acuidade. Ao ouvir música, por exemplo, um indivíduo pode surpreender-se a dissecá-la com uma atenção operfeiçoada, como se até aí nunca a tivesse ouvido real­mente. O mesmo pode acontecer ao ver um filme, ao conversar com alguém, ao sentir o sol… É a percep­ção do mundo que fica, de repente, mais apurada.

 Intensidade e duração os efeitos variam com o tipo de produto, quali­dade, dosagem, modo de absorção, contexto, personalidade do utilizador e o seu estado mental.
Muitas pessoas podem fumar e nas primeiras vezes não sentir nada. É pre­ciso por isso uma aprendizagem para reconhecer os seus efeitos, que come­çam a senti-se cerca de
15 minutos depois de fumar e podem durar 3 a 4 horas.

 Efeitos fisiológicos – Os gestos e reflexos estão ao ralanti.  Dependendo do tipo de cannabis utilizado, podem advir estados de sonolência. É típico ficar com os olhos vermelhos e sentir a boca seca. Em algumas pessoas a experiência pode provocar ataques de ansiedade. Pode ainda aumentar o ritmo cardíaco mas problemas físicos de maior não são comuns.

 Fumar para quê?  – Ao contrário do álcool e de outras drogas, o cannnabis não permite a evasão. Se bem que com uma percep­ção diferente, a realidade mantém-se ali. Para a maioria dos seus consumidores o motivo é festivo, convivial e social Fumar reforça a conivência e, ao fazê-lo em conjunto, partilha-se o mesmo “comprimento de onda”.

 Há riscos de dependência? – Não há nenhum estudo que indique que o cannabis dá dependência. Ratos de laboratório, sempre prontos a pressio­nar o botão que lhes dará nova injec­ção de heroína, torcem o nariz ao can­nabis. Quando lhes é administrado o THC, nunca voltam a reclamá-lo. O cannabis é “submisso”, quem o mani­pula é o utilizador Mas, se bem que o produto em si não prima pelas suas qualidades aditivas, isso não quer dizer que seja inofensivo. Neste caso, risco da dependência está na interac­ção com a pessoa que o consome. Mais evidente, é o risco de provocar uma síndrome amotivacional (ver entrevista).

 Há riscos de overdose? – Poder-se-ia dizer que este risco é nulo. Nos ratos de laboratório a dose letal de THC é de 40 mg, o que equivale num ser humano a fumar 6oo charros “bem servidos” sem sequer parar para respi­rar. Coisa que até o mais inveterado fumador de tabaco sabe que é huma­namente impossível

 Os charros levam às outras drogas? – Todos os estudos epidemiológicos feitos a nível mundial convergem para a mesma conclusão: Se é verdade que a quase totalidade dos utilizadores, por exemplo da seringa, começaram por enrolar joints, a verdade é que apenas uma percentagem mínima dos que fumam passaram para qualquer outro tipo de droga. E uma das razões pode ser tão simples quanto o facto de muita gente admitir modificar um pouco a sua percepção da realidade, sem contudo querer alguma vez perder o controlo sobre ela.

 Há riscos em guiar?Como qual­quer outra substância psicoativa, o cannabis não faz bom casamento com actividades em que se exija grande destreza. Manipular máqui­nas perigosas ou conduzir não é por isso a melhor ideia. De qualquer maneira, sob a influência do álcool, por exemplo, o condutor perde os seus reflexos e ao mesmo tempo perde a consciência do seu estado. Sob o efeito do cannabis também perde os reflexos mas tem a noção do que se está a passar. Por isso reduz a velocidade e evita manobras que lhe seriam difíceis.

Revista “Adolescentes”, nº 15, págs da 54 à 60.