As relações familiares
O ensinamento da igreja desde S. Paulo e Santo Agostinho inspirou em parte o direito francês, consuetudinário e escrito, sobre a subordinação da mulher face ao marido, detendo este, a autoridade plena e inteira. Com o incremento da influência do direito romano, esta subordinação da mulher agrava-se ainda no séc. XVI em relação ao que era na Idade Média. A forma notarial clássica, em especial no oeste, “Uma tal esposa e sob a autoridade de um tal” traduz bem a situação de direito e facto. Não somente o marido impõe à esposa o seu nome, o seu domicílio, a sua condição (nobre ou plebeia), não somente ele gere os bens (salvo, teoricamente os parafernais do regime dotal) e tem plena autoridade sobre os filhos, mas mais ainda a mulher casada é juridicamente uma incapaz. O art. 223 do costume de paris diz:
“A mulher casada não pode vender nem hipotecar os seus bens herdados sem a autoridade e consentimento expresso do seu marido. E se ela fizer qualquer contracto sem a autoridade e consentimento expresso do seu marido tal contracto é nulo, tanto aos olhos dela, como aos do seu marido e não pode ser perseguida por isso nem os seus herdeiros após a morte do seu dito marido.”
Além disso, ela não pode aceitar uma doação ou intentar uma acção judicial (…) sem o consentimento do seu marido e a sua queixa, como se viu, não é aceitável em caso de adultério deste, enquanto que este pode pedir a separação em caso de adultério da sua cônjuge que é a maior parte das vezes condenada a ser fechada ou num convento ou numa casa de correcção. Alguns costumes proíbem mesmo à mulher testemunhar em tribunal ou de fazer testamento sem autorização do marido. A mulher, eternamente menor não faz senão passar da tutela do pai para a tutela do esposo.
Esta maneira de ver, sagrada pela lei, é objecto de um consenso quase geral. A maior parte dos autores, juristas ou moralistas, que tiveram ocasião de falar disso, Jean Bodin no séc. XVI, Cardin Le Bret ou Pierre Bayle no séc. XVII, Voltaire, Rousseau ou Pothier no séc. XVIII todos justificaram esta subordinação por considerações sobre a fisiologia do sexo fraco, por argumentos retirados à história e sobretudo à Bíblia, pela necessidade económica em que seria a mulher a exercer as funções domésticas com exclusão de qualquer outra.
Conhecem-se os propósitos que Moliére põe na boca de Arnolphe. Quanto a Rétif eis o discurso que ele atribuiu ao seu pai Edme dirigindo-s4e à sua esposa: “Dizei-me donde vem a força que a natureza deu ao homem? Donde vem o facto de ele ser sempre, além disso, livre da sua pessoa, ousado, corajoso, mesmo audacioso: é para se rebaixar, fraco adulador? Donde vem que a natureza vos tenha feito tão encantadora fraca, por isso temerosa? Donde vem que ela vos tenha dado esse tom tão doce de vossa voz, essas inflexões delicadas e afectadas é acaso para mandar com dureza e altivez? Não minha esposa, é para encantar e para falar com nitidez, é para inflectir o ser que é o mais forte e determiná-lo em vosso favor. O vosso quinhão é agradar e adoçar pelo encanto das carícias os trabalhos penosos que empreende por vós o ser forte que a vós está unido e que faz um convosco. (…) O primeiro meio para ser feliz no lar, aquele que dá o preço a todos os outros, é que o chefe mande e que a esposa ternamente querida faça por amor aquilo que se chamaria, com qualquer outra que não fosse esposa, obedecer.”
A “sabedoria popular” tal como ela se exprime nos provérbios, a imagética ou os contos da literatura de cordel, partilha inteiramente estes pontos de vista. “Quem tem marido tem senhor” diz um provérbio basco do qual faz eco o provérbio da Picardia “Quando o galo canta a galinha deve calar-se”. E certos propósitos de Edme Rétif sobre o ridículo que haveria se os papéis fossem invertidos, apenas traduzem em linguagem florida o tema do mundo ao invés popularizado pelas inúmeras imagens de Epinal como, “O marido açoitado pela mulher” ou esse outro com uma legenda evocadora: “A mulher tem um mosquete (arma antiga); o esposo a roca, e ainda embala o filho com os joelhos.”
Todavia desde o séc. XV observa-se na cultura letrada uma contracorrente feminista ao mesmo tempo minoritária e complexa: teológica e mística com Guillaume Postel (les trés mervelleuses victoires des femmes du nouveau monde et comment elles doivent à tout le monde par raison commander, 1553) ; céptica com Marie de Gournay (Egalité des hommes et des femmes, 1622) ; nacionalista e cartesiana com Poulin de la Barre (De l’ Égalité des deux sexes, discours physique et moral où l’on voit l’importance de se défaire des préjugés, 1673) ; filosófica mesmo com Montesquieu, muito isolado, é certo, na denúncia da « verdadeira tirania » exercida pelos homens sobre as mulheres, enquanto que o mais vigoroso defensor destas, em meados dos séc. XVIII é um beneditino, Dom Caffiaux autor de uma Défense du beaux sexe ou Mémoires historiques, philosophiques et critiques pour servir d’apologie aux femmes, 1753. A cultura popular só tardia e timidamente se fará e desta contracorrente com, no começo do séc. XIX, a ilustração do tema Les réformes du ménage que apresenta como desejável e possível uma nova repartição dos direitos e deveres.
A função reprodutora da família
Se os laços do casamento e da filiação estão no coração do instinto familiar, é que a sua função essencial é a reprodução. Para um homem, os católicos não viam, neste mundo, senão dois estados nos quais ele poderia normalmente conseguir a sua salvação: os estado conjugal e ao estado eclesiástico. Ascendia-se a um pelo sacramento do matrimónio, a outro pelo sacramento da ordem. Um tinha por função a reprodução da espécie, a sus multiplicação biológica, o outro a multiplicação dos cristãos pela pregação, a instrução religiosa. (…)
Santo Agostinho distinguia três bens no casamento: “proles, fides et sacramentum”, ou seja, a procriação, a fidelidade e a indissolubilidade. Ele já sublinhava que “proles” não implicava somente a procriação mas também o encargo material dos filhos e a sua educação. São Tomás fazia notar que em certas espécies animais, a fêmea não podia educar a cria sozinha. “Na espécie humana, muito particularmente, o homem é necessário à educação da criança que consiste, não apenas em alimentar o corpo, mas ainda mais em alimentar a alma”. Esta tarefa de “nutrir” os filhos parece tão fundamental à condição conjugal que ele se lhe referia para justificar a proibição de qualquer actividade sexual fora do casamento. Entendendo-se a sexualidade como dada por Deus, exclusivamente para a procriação e considerando-se que é sempre um grave pecado servir-se dela apenas como fonte de prazer, por que razão um homem qualquer não pode procriar com qualquer mulher? É que só os esposos estão em condições de ensinar a educar convenientemente os filhos que colocam no mundo. Dizendo isto, S. Tomás não pensava, apenas nas graças sobrenaturais que o casamento dá, mas na estabilidade do ligâmen conjugal, na dignidade da família legítima e nas suas possibilidades económicas. Só o casamento cria laços de parentesco que permitirão à criança integrar-se na sociedade, enquanto que as crianças nascidas da fornicação, do adultério ou do concubinato não são senão bastardos e seus pais, infames. A família legítima é, além disso, uma associação que dispõe dos meios económicos para sustentar e educar os filhos, e duma repartição de papéis individuais específica para cada tarefa. Finalmente e sobretudo, esta associação é estável por força da “fidelidade” e do “sacramento”. (…)
Insistir na responsabilidade que os pais assumiam procriando os filhos, poderia afastá-los dos seus deveres conjugais, essenciais do ponto de vista que interessava à igreja, a saber, do ponto de vista da castidade. Por isso, ela se esforçava por acalmar as preocupações dos fiéis que receavam não poder alimentar e educar convenientemente os filhos que colocavam no mundo. “O homem de bem não deve nunca recear ter muitos filhos – escrevia Benedicti – antes deve pensar que é uma benção de Deus e crer no que disse David: “Fui, diz ele, jovem e agora sou velho, mas nunca vi os justo abandonado nem seus filhos procurar pão em extrema necessidade”, porque se Deus lhos deu também lhe dará o meio de os alimentar, pois que é Ele que alimenta as aves do céu; de contrário Ele não lhos daria.”. Este tipo de exortação encontra-se até ao final do séc. XVIII, e ainda em 1930 na encíclica “Casti Connubii”.
François Lebrum “A vida conjugal na Antigo Regime”, ed. Rolim, Lisboa, 1983