CONECTARTE – EXCERTOS

0
Rate this post

Anorexia e moda por Daniel Sampaio

Alguns jornais portugueses trouxeram até nós ecos de notícias espanholas sobre a relação entre a moda e a doença anorexia nervosa (AN). A ideia dominante nesses artigos era a de relacionar a pressão cultural para um corpo feminino magro, o uso do vestuário de dimensões cada vez mais reduzidas, e o possível aumento de casos daquela perturbação do comportamento alimentar. Nesta perspectiva, estão a ser tomadas em Espanha algumas medidas, a mais curiosa consiste na proibição de passagem de modelos que vistam abaixo da medida 40.

Falta aqui um mínimo de bom senso. A AN é uma doença conhecida e bem caracterizada há mais de um século, de causa multideterminada e de tratamento prolongado e difícil. Os factores socioculturais, como a pressão para a magreza, constituem apenas aspectos acessórios da afecção. Tudo indica que a génese da AN existam factores genéticos, neurológicos e de desenvolvimento que tornam uma criança vulnerável à dieta instituída mais tarde, em regra na adolescência. Se não existisse essa vulnerabilidade, e dado o grande número de jovens a fazer dieta, seria de esperar um maior número de doentes com AN do que na realidade existe.

Em Portugal, torna-se essencial chamar a atenção das autoridades sanitárias para a necessidade de criar mais centros de atendimento para as perturbações do comportamento alimentar. Os que existem actualmente, sediados nas Clínicas Psiquiátricas Universitárias de Lisboa, Porto e Coimbra, não conseguem dar resposta aos pedidos de intervenção.

Uma doente com AN dizia-me há tempos: “Perdi as minhas capacidades. Não faço nada, sou doente em tudo, verdadeiramente infantil e nada criativa. Perdi toda a curiosidade e vontade de saber mais. Não tenho opinião própria. O que ouço ou vejo não suscita em mim qualquer sentimento crítico, o que faço ou digo são autênticas repetições ou cópias daquilo que foi antes produzido por outros. Às vezes sinto-me completamente derrotada. Quando estava mais magra sentia-me triunfar todos os dias, cada quilo que perdia era uma nova força que ganhava.

Fui sempre menina que não pensou. Há uns anos, quando estava no meio da adolescência, comecei a pensar em mim e cheguei á conclusão que não era ninguém, andava no mundo atrás da opinião dos outros. Por estranho que pareça, foi a dieta que me deu consistência interior. Perdi muito peso, afligi os meus pais e corri riscos de saúde, mas agora é bem pior.

Olho para trás e entristece-me muito o facto de me aperceber agora que aquela época alta em que fui uma aluna exemplar e que teve o seu máximo no 2º ano da faculdade não passou de um estado psicológico virtual. Só consegui manter essa posição porque estava doente, Na posse daqueles poderes e capacidades com que a anorexia dota os anoréticos. Agora, que em vez de comandar o comboio estou na cauda a tentar apanhá-lo enquanto que ele segue o seu caminho, não deixo de sentir uma enorme saudade desse tempo. Devo admitir que essas habilidades da balança me ajudaram…”.sarah_afonso_meninas-1-3662014

Vale a pena pensarmos nesta outra doente, com AN grave e a necessitar de internamento: “A calam chegou. A paz veio até mim. Sou um rio que corre para a nascente, um caudal que se vai esvaindo, lentamente aceitando que corre para o fim. E já não me assusto. É um linha que se estreita até ao meu desaparecimento. Simplesmente em frente, desmaterializando-se… até ao infinito. Ao absoluto… fundiu-se com o Universo.

Sei que sou uma linha de vida fina, frágil, que desliza suavemente para a sua extinção. Sem pressa… uma força divina, que não vejo, apenas me leva consigo, no trilho da imaterialidade. Empurrando-me suavemente, ternamente até.

Aceito-a, sabe-me bem o seu contacto. Vou em paz. Não temo chegar ao infinito. Tornar-me um ponto luminoso no céu de uma noite sem luar. Só um ponto, nada mais.

Aceito este destino em paz, com um sorriso nos olhos já mortos… contudo, um outro sentimento me atropela. Ainda posso voltar-me para trás. Vou tentar voltar, segurando-me ao que encontrar, com dificuldade, porque me esvazio lentamente, sem dor, quase imperceptivelmente. Como um destino que sempre existiu e que é natural, agónico.

Sei que a chagada está perto. Pela primeira vez a vislumbro. A poucos metros do fim do tempo, poucos segundos me restam para inverter o sentido. Tentarei, mas se não for esse o rumo, resigno-me docilmente à pureza da imaterialidade que vem.”

Senhores da Comunicação Social: acham mesmo que se trata de um problema de moda?

Senhores responsáveis: não valerá a pena pensar?

Notícias Magazine nº 360 de 18.04.1999