O V IMPÉRIO
Antes dos excertos de Fernando Pessoa sobre este tema, permitam-me uma
muito breve reflexão.
Ninguém pode saber de tudo, muito menos o cidadão comum que apenas dispõe de uma parte do seu tempo livre para se dedicar ao saber. Por isso a chamada cultura indirecta – ler a crítica sobre o livro em vez de ler o livro – é um mal menor: dá-nos, no mínimo, algumas pistas e referências, bem melhor do que estar em branco.
Mas há um perigo: há adjectivos que com facilidade se colam a certas ideias e têm o poder de ou afastar os leitores antes de tentarem avaliar por si mesmos do que se trata ou, ao contrário, fazê-los tomar como boas essas ideias de que não conhecem o real significado.
O mito do V Império de que falaram o Padre António Vieira, António Nobre, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, entre outros, sempre foi visto como uma ideologia reaccionário, anacrónica, saudosista, religiosa e, até, pateta. No entanto ninguém deixa de ler estes autores, nomes fundamentais da nossa cultura, com base nesse argumento.
É um exemplo do mau papel que podem ter as tais classificações fáceis mas também pode ser visto como mais um exemplo do pouco interesse que costumamos dar às ideias que não sejam servidas em pronto a comer. Não nos agradam as ideias mais densas ou que exijam interpretação.
Não somos muito dados à poesia (ao contrário do que gostamos de dizer e que penso que se refere mais ao “rimar” e ao “desabafar em verso”) mas lá vamos lendo “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal” . Também todos ouvimos falar do Encoberto, o D.Sebastião que há-de voltar numa manhã de nevoeiro mas o interesse fica por aí, reduzindo-se o tema a uma lenda ou a um saudosimo sem sentido.
O que é curioso é que consumimos com avidez as dezenas e dezenas de livros e filmes sobre o Rei Artur, o Santo Graal, a Távola Redonda e Excalibur e não temos vergonha de falar disso. Qual a diferença, qual o problema em relação a D. Sebastião e ao V Império? Ainda que no puro campo literário do Fantástico, porque existe este estigma sobre O Desejado?
Não está em causa, aqui, ser a favor ou contra o Sebastianismo. O que
questiono é a censura generalizada ao tema por ser reaccionário. Terá os seus aspectos menos “correctos” até por ser indesmentível uma componente esotérica muito forte. Mas hoje já não repugna a ninguém esse epíteto e pode ser até muito aliciante a releitura de tais obras, com os olhos que quisermos, como está em moda fazer com a Bíblia, por exemplo.
Já agora, quanto ao ser ou não reaccionário, será que defender a ideia um futuro melhor e acreditar num destino especial é reaccionário só por ser simbolizado pelo regresso de um rei morto? O ideal comunista inundando a Terra com os seus símbolos de operários musculosos e perfeitos, a sua terminologia de futuros radiosos e marchas gloriosas, não é um pouco o mesmo?
A expectativa do “Encoberto” converte-se em mito, é certo, mas de esperança de melhores dias, felicidade nacional, de justiça e de grandeza. Consiste, pois, numa extrapolação do messianismo. Mas aposta e acredita no futuro, coisa que tanta falta nos faz actualmente.
Excertos de Fernando Pessoa:
A interpretação inicial dos cinco impérios remonta ao Velho Testamento.
“… O Império Grego (sintetizando todos os conhecimentos, toda a experiência dos antigos impérios pré-culturais); o Império Romano (sintetizando toda a experiência e cultura gregas e fundindo em seu âmbito todos os povos formadores, já ou depois, da nossa civilização); o Império Cristão (fundindo a extensão do Império Romano com a cultura do Império Grego, e agregando-lhe elementos de toda a ordem oriental, entre os quais o elemento hebraico); e o Império Inglês (distribuindo por toda a terra os resultados dos outros três impérios, e sendo assim o primeiro de uma nova espécie de síntese.
O Quinto Império, que necessariamente fundirá esses quatro impérios com tudo quanto esteja fora deles, formando pois o primeiro império verdadeiramente mundial, ou universal.
Este critério tem a confirmá-lo a própria sociologia da nossa civilização. Esta é formada, tal qual está hoje, por quatro elementos: a cultura grega, a ordem romana, a moral cristã, e o individualismo inglês. Resta acrescentar-lhe o espírito de universalidade, que deve necessariamente surgir do carácter policontinental da actual civilização. Até agora não tem havido senão civilização europeia; a universalização da civilização europeia é forçosamente o mister do Quinto Império.
Em geral concebe-se como cristão esse Império, e a ele se alude como
seguindo-se ao Reino de Anticristo, sendo a Segunda Vinda do Cristo. A
hipótese, não emergindo necessariamente dos factos – nem dos sociológicos, nem dos proféticos – é contudo aceitável. Não a defenderemos; não a opugnaremos. Contra a primazia, neste ponto imperial, da religião cristã, tem-se oposto o igual direito a uma primazia, que podem invocar as religiões maometana, budista, e outras. Se, porém, o império universal, ou quinto império, há-de ter um carácter religioso, o que, não estando provado, é contudo provável, não é de supor que seja fora do cristianismo.
Das duas outras religiões, que poderiam concorrer a esse império maior, a maometana é estreita. A budista, sobretudo na forma teosófica em que se tem espalhado, é mais aceitável como universal, pois, de facto, pretende ser não propriamente uma religião, senão o espírito de todas elas. Sucede, porém, que o budismo está fora do esquema moral da civilização europeia, dentro da qual se há-de dar, ainda que universalizando-se, a formação do quinto império.
Qualquer que seja esse quinto império, há-de incluir e sintetizar os quatro que o precederam, pois assim foi cada um deles incluindo, e sintetizando os que vieram antes dele. Ora a cultura grega, a ordem romana, a moral cristã mesmo, em alguns dos seus pormenores, estão fora do esquema budista. De todas as religiões, só o cristianismo tem o preciso carácter sincrético: formado com a base da metafísica grega, distribuído com a base do imperialismo romano, construído já com um sincretismo que inclul as religiões orientais, incluindo aquelas de onde o budismo emergiu, o cristianismo absorverá ainda com facilidade o individualismo inglês, que veio depois, por isso que o cristianismo é essencialmente individualista, como a cultura grega, em que obscuramente se funda. O que não poderá ser é o cristianismo católico. Esse tornou-se incapaz de um sincretismo novo; nem poderia incluir o individualismo inglês, que lhe é oposto, e que, como é o distintivo do quarto império, terá que entrar como elemento no quinto, dada a lei de formação dos impérios adentro de uma civilização…
…Aliás, este triunfo final do cristianismo encontra-se acentuado nas
poucas profecias que temos sobre o assunto, e às quais podemos atribuir, no
profeta, uma independência das suas próprias opiniões e desejos – único fundamento para tomar a profecia como profecia a valer, e não como expressão de um sonho próprio. Uma é a do verso de Nostradamo, posto no fim das centúrias para que se repare que se reporta ao fim das “coisas” – isto é, da civilização a que pertencemos.
Religion du nom des mers vaincra,
sendo que o cristianismo é a religião dos mares, governada pelo signo de Pisces, e nascido o seu fundador de Maria, que quer dizer “mares” em latim. A outra é a profecia, ainda mais curiosa, de S. Francisco de Paula. Este diz que haverá uma “religião nova” – repare-se bem, “nova” mas essa religião será imposta ou desenvolvida por uns a quem chama “crucíferos”. O serem crucíferos indica que a religião é cristã, pois a cruz é o símbolo essencial do cristianismo (embora exista, porém, só acessoriamente, na simbologia de outras religiões); mas o ser a religião “nova” indica que não é católica, pois para S. Francisco de Paula, que era, claro está, católiico, um cristianismo não católico é uma religião nova.
A profecia de Nostradamo é aceitável, por “imparcial”, pois assim são todas
as profecias desse homem extraordinário; essas e as do Terceiro Corpo do nosso Bandarra. A profecia de S. Francisco de Paula é igualmente aceitável, pois é evidentemente “imparcial” a profecia de um católico que, embora involuntariamente, profetiza a queda da sua própria religião.”
Outros excertos de Fernando Pessoa que aludem ao espírito imperial
português
“…Portugal grande potência construtiva, Portugal Império ( aqui, sim, é
que, através de grandeza e de decadência, se revela o nosso instinto, e se
mantém a nossa tradição. Somos, por índole uma nação criadora e imperial.
Com as Descobertas, e o estabelecimento do Imperialismo Ultramarino,
criámos o mundo moderno ( criação absoluta, tanto quanto socialmente isso é possível, que não simples elaboração ou renovação de criações alheias. Nas mais negras horas da nossa decadência, prosseguiu, sobretudo no Brasil, a nossa acção imperial, pela colonização; e foi nessas mesmas horas que em nós nasceu o sonho sebastianista, em que a ideia do Império Português atinge o estado religioso.
Portugal tem pois condições orgânicas para ser uma grande potência
construtiva ou criadora, um Império. Uma coisa, porém, é dizer-se que
Portugal tem condições para sê-lo; outra é predizer que o será. A pergunta
não exige esta segunda demonstração, que, aliás, por extensa não poderia ser aqui dada. Nem há mester que se diga, também, em que consistirá presumivelmente essa criação portuguesa, qual será o sentido e o conteúdo desse Quinto Império. Fora preciso um livro inteiro para o dizer, nem chegou ainda a hora de dizer-se.”
“….Há um terceiro português, que começou a existir quando Portugal, por
alturas de El-Rei D. Dinis, começou, de Nação, a esboçar-se Império. Esse português fez as Descobertas, criou a civilização transoceânica moderna, e depois foi-se embora. Foi-se embora em Alcácer Quibir, mas deixou alguns parentes, que têm estado sempre, e continuam estando, à espera dele. Como o último verdadeiro Rei de Portugal foi aquele D. Sebastião que caiu em Alcácer Quibir, e presumivelmente ali morreu, é no símbolo do regresso de El-Rei D. Sebastião que os portugueses da saudade imperial projectam a sua
fé de que a família se não extinguisse…”