CONECTARTE – EXCERTOS

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Um olhar sobre a evolução do Homem desde a Revolução Neolítica e o modo como esta ainda nos afecta.

Com a criação da primeira ovelha, com a colheita da primeira semente  começou o nosso desenvolvimento ou a nossa decadência?

 Excerto  do livro “ A MAIS BELA HISTÓRIA DO HOMEM “, de autoria conjunta de André Langaney, Jean Clottes, Jean Guilaine e Dominique Simonnet (Ed. ASA, col Ponto de Encontro, 1ª edição, set 1999).
Na parte transcrita Dominique Simonnet é entrevistado por André Langaney.

 

 —     A nossa identidade não difere em nada da que caracteriza os nossos antepassados?

 —     Sempre se propendeu a minimizar a influência deles. Ainda não há muito tempo, dizia-se que os artífices especializados tinham surgi­do com a Idade do Bronze. É falso: os caçadores-recolectores do Pa­leolítico que talhavam os sílex já eram artífices consumados. Houve quem dissesse que os templos só tardiamente se edificaram. É falso: os primeiros santuários existem desde as primeiras aldeias… No fun­do, começa-se a perceber agora que tudo o que constitui a identidade da Humanidade já estava estabelecido há muito tempo.

 Eles, somos nós!

 —     Se subestimamos os nossos antepassados, talvez seja para nos valorizarmos…

 —     Talvez… Em todo o caso, à medida que nos debruçamos sobre a vida deles, descobrimos que eram tão inteligentes, inventivos ou até mesmo tão ambíguos quanto nós o somos. No Paleolítico já se distin­guia bem o ciclo das estações, seguiam-se as fases da lua; previa-se que os frutos estariam maduros em tal momento, que as renas passariam em tal outro… Compreendia-se os ciclos da vida, possuía-se uma memória do tempo, antecipava-se, pensava-se o mundo… E os primeiros sedentários, que beneficiaram de tudo isto e que, ainda por cima, multiplicaram as inovações, não tinham um espírito muito dife­rente do nosso. 

—     Em resumo, ainda estamos no Neolítico.

 —     Sim. Eles, somos nós! Os nossos antepassados fizeram o melhor que podiam com os meios técnicos de que dispunham. Mas a maneira de se verem a si mesmos, as suas relações com a natureza, os seus laços com os seus semelhantes, estão muito próximo dos nossos pró­prios comportamentos. Não enxergo quaisquer diferenças. Os vestí­gios arqueológicos apontam no mesmo sentido: as jóias, os enfeites, as armas, os comportamentos de sedução, de poder, o gosto do pare­cer….. Nada mudou!

 —     Apesar de tudo, já não vivemos como eles!

 —     Isso ainda acontecia não há muito tempo. O que distingue a vida nas grandes herdades danubianas cerca de cinco mil anos antes da nossa era e a que se desenrolava nas herdades francesas do Antigo Regime? A charrua, os moinhos, algumas técnicas suplementares… É tudo, O essencial da Revolução Neolítica perdurou até à Revolução Industrial do século XIX. O Neolítico é a fonte da nossa História, o momento em que se começou a artificializar o mundo.

 Sede de selvagem

 —     Nesse plano, a missão foi bem sucedida: o planeta está intei­ramente conquistado, o mundo selvagem circunscrito, a natureza sub­metida…

—     Doravante, já não há meio natural. No Ocidente, todos os terri­tórios foram «humanizados», exceptuando talvez alguns cumes eleva­dos. O homem passou por toda a parte. Modificou tudo. Repare numa floresta do Sul da França, por exemplo. Outrora era composta por carvalhos pubescentes. No Neolítico, o homem deitou fogo para criar um campo, depois partiu noutra direcção. A floresta ressurgiu, mas a competição entre as espécies favoreceu mais os carvalhos verdes, que ganharam terreno. Em seguida, o homem voltou, provocando novas transformações da paisagem, cada vez mais socializada. O que vemos actualmente já não tem nada de natural. Ainda não se tomou plena consciência do facto, mas o nosso cenário é inteiramente artificializados. Por toda a parte, a cultura substituiu-se à natureza.

 —  No entanto, continua-se a caçar,  tem-se sede de natureza… Será que ainda precisamos de algo selvagem?

 —     Num recanto da nossa cabeça, conservámos o gosto pelo paraí­so perdido, a necessidade da mãe-natureza original. Estamos domes­ticados, artificializados, mas ainda cultivamos dentro de nós essa parcela de selvagem. Já mencionámos que quando os primeiros cam­poneses descobriram as vantagens da criação de gado, sentiram mes­mo assim o desejo de importar espécies animais selvagens a fim de poderem caçá-los e de conservarem um pouco do mito original.

 —  Os caçadores dos dias de hoje, que criam javalis e faisões antes de os soltar, não fazem outra coisa.

 —     A nossa cultura continua impregnada dos mitos da floresta, e da vontade de exibirmos a nossa superioridade. Sendo assim, de vez em quando também recriamos um pouco de selvagem para mostrar que ainda somos capazes de o dominar. Ao matar o animal em fuga, dra­matizamos a vitória do homem sobre a natureza, reafirmamo-la… Há dez mil anos que não cessamos de ratificar assim esta conquista, repetindo simbolicamente a Revolução Neolítica. O homem quer mostrar que o seu ascendente não admite contestação.

 A mentalidade neolítica

 —     O homem, no sentido restrito. Com efeito, não é seguro que a parte feminina da Humanidade sinta vontade de fazer a mesma demonstração. Uma tal clivagem parece vir igualmente da noite dos tempos. O género masculino teria então conservado a mentalidade do Neolítico?

—     Sim, a do vencedor, do conquistador. Submetemos a natureza, dominámos a matéria… Ainda acreditamos que nada pode resistir-nos. E experimentamos este mesmo sentimento de poder frente à nossa própria espécie. Poder sobre a natureza, poder sobre as coisas, poder sobre os outros homens.

 —     Deve conhecer a história: para atravessar um rio, o escorpião pede à raposa que o transporte às costas. «Não te picarei», promete, «pois se o fizesse, morreria contigo». Convencida, a raposa aceita. Chegado ao meio das águas, o escorpião pica-a mortalmente. «Por que me feriste?», pergunta a raposa agonizante. «Tenho muita pena», responde o escorpião, «mas está na minha natureza…», O poder,  a competição, estarão na nossa natureza humana?

—  Julgo que sim. O espírito de competição e a vontade de afirmar a superioridade sobre o vizinho parecem-me profundamente enraizados na natureza humana.

 —     Se tirarmos a lição desta história, não podemos coibir-nos de pensar que, ao plantar a primeira semente, o homem talvez não tenha feito nenhum favor a si mesmo!

 —  Ao colher o seu trigo em vez de apanhar três bolotas e dois abrunhos, o homem pôde acumular reservas, alimentar mais bocas, fazer crescer a sua família… Mas montou uma armadilha a si mesmo. De facto, foi obrigado a ocupar-se ao mesmo tempo dos campos e dos animais, desbravar, arrancar os cepos com pequenos machados poli­dos, sachar, plantar, colher…

 —     Em suma, trabalhar

 —  Sim, o homem generalizou o trabalho, capitalizou, criou riquezas, excedentes. Ao mesmo tempo, no entanto, formou uma sociedade piramidal, acentuou o constrangimento. A esperança representada pela revolução agrária e urbana do Neolítico voltou-se em parte contra ele. O homem tomou-se escravo daquilo que criou. É o vencedor, mas ao mesmo tempo é a vítima.

 Progresso ou declínio

 —     A grande revolução, a nova idade de que falávamos, é afinal o advento da sociedade de coerção, o início das nossas desgraças…

 —Tudo depende da visão que tivermos da evolução humana. Para o etnólogo Marshall Sahlins, o Paleolítico era a idade da abundância. Os nossos antepassados caçadores só consagravam algumas horas à caça, adquiriam comida facilmente visto que não eram numerosos. É o mito do paraíso terrestre, o qual permaneceu em todas as reli­giões. E depois vem o Neolítico, o começo de um longo declínio. Este período simboliza a queda, o pecado, a saída do Éden: trabalharás, ganharás o pão com o suor do teu rosto. Enquanto se espera um salvador que virá restabelecer a felicidade das origens.

 —   Há quem veja a História humana antes de tudo como uma evo­lução constante, uma libertação progressiva do homem.

 —  São as teorias do progresso desenvolvidas no Século das Luzes e no século XIX. O homem liberta-se da natureza e segue um caminho luminoso, em direcção a um conforto e a uma felicidade cada vez maiores… As duas concepções, tanto a do declínio como a do pro­gresso, dependem muito das ideias religiosas e filosóficas que as subentendem.

 —     E da situação económica em que se vive.

 —  Sim. Todo aquele que, hoje em dia, beneficia das vantagens do mundo moderno e habita num meio confortável, pensa obviamente que as suas condições de vida progrediram muito desde a época dos seus avós. E o desempregado, que só conhece a precaridade, as difi­culdades quotidianas? Este tem todo o direito de recordar com nostal­gia o tempo dos avós. A evolução humana é uma noção subjectiva, não se pode fazer dela uma apreciação geral, e não se considera a História da mesma maneira quando se é um ocidental rico e saciado ou um indigente de África ou da Ásia.

 Prazer e sofrimento

 —   Quanto a si, porém, que conhece simultaneamente a moder­nidade ocidental e o universo modesto dos nossos antepassados, que olhar lança sobre esta mais bela história do homem?

 — Devo concluir que, desde os tempos mais antigos, o homem progrediu sobremaneira nas suas técnicas e nos seus conhecimentos. Mas que o grande banquete da Humanidade, a libertação do homem que o Neolítico parecia anunciar, ainda não chegaram. Uma boa parte da população do globo não come o que sente vontade de comer… Julgo que o nosso destino é irreversivelmente paradoxal. O neolítico marca o início de um processo que não cessou de avançar até aos nossos dias. Todas as vezes que o homem resolve um problema, tem de pagar o devido preço. Cada uma das nossas melhorias traz consigo uma contrapartida; cada vitória sobre a natureza suscita uma nova tensão sobre o nosso meio ambiente; cada passo dado no sentido do bem-estar faz-se acompanhar de um novo sofrimento; cada liberdade conquistada é paga com um novo constrangimento. Caber-nos-á resignar-nos e acreditar que o homem nunca será verdadeiramente livre? Na realidade, as lutas permanecem sempre inacabadas. Na aventura humana, haverá sempre uma parte de felicidade e uma parte de desgraça, o bom e o mau, a sabedoria e a loucura. É próprio da nossa espécie.