Excerto de
“O QUE DIZ MOLERO” – DINIS MACHADO
“…
Austin folheou o relatório e continuou:
«Já vi que não tens muita tusa, dizia Evaristo, isto de fazer versos é falta de tusa, com a tua idade um gajo deve é andar a tratar da saúde às mulheres, olha para elas, andam mesmo a pedir, deixa lá essa porcaria dos versos e do Miró, o Miró não dá tusa a ninguém, logo vou levar-te à Marie Claire, se ela não te der tusa então, filho, nada te pode dar, a mim já me interessa pouco porque tenho de estar sempre a mudar de mulher, e agora é só de vez em quando, vamos comer uma boa lagosta e vamos à Marie Claire, ela tem muita paciência e habilidade, o quarto dela é todo cor-de-rosa e cheio de sedas, e cheira a jasmim, há gajos a quem o cheiro a jasmim dá tusa, havia um gajo que tinha tusa quando cheirava peixe cru, havia outro gajo que para ter tusa tinha de se vestir de bombeiro, há gajos que têm a tusa desviada, são mirones dos outros, e há aqueles que ficam debaixo da cama só para ouvir o barulho, outros querem que lhes chamem nomes, havia um gajo que queria que lhe chamassem professor de matemática, ele não conseguia acabar se a mulher não se pusesse a chamar-lhe professor de matemática, professor de matemática, outros gostam que lhes batam com chicotes, ou que os pisem, ou que os façam andar à roda do quarto com uma pena de índio na cabeça, mas isto já é mais complicado do que a tusa na ponta da língua, a tusa na ponta da língua pode ser uma arte, enquanto os gajos que eu disse são os que ficaram xaropes e querem estimular a tusa, o que me chateia é esta espera e a tusa sem vir, às vezes dias e dias, um gajo come umas coisas, fala com este e com aquele, vê as pernas das gajas, ouve-lhes a voz, há na voz das mulheres, só te digo, filho, uma espécie de canção que nos fala de cama, isto até parece poesia, o que é que que achas?, afinal tu não gostas de lagosta, não ligas às mulheres, se calhar tens a tusa desviada, está bem, faz lá os teus versos, se isso der tusa diz-me, que é para eu fazer versos.»
Houve outra pausa. «É preciso cuidado, Austin», disse Mister De-Luxe, «com a terminologia que Molero tenha às vezes utilizado, veja isso quando o relatório for passado a limpo». «Não há problema, Mister De-Luxe», disse Austin, «como é habitual em casos semelhantes, o relatório terá de passar pelo Departamento de Correcções e Acertos, onde John Computer o submeterá a análise. É uma garantia».
«A tusa», disse subitamente Mister DeLuxe, olhando através da janela, «que palavra espantosa».
«Nesta altura da história entra Cláudio, que jogava judo e tinha o romance de Aurora na cabeça, disse Austin. «Atordoado por aquilo a que Molero chama, com deliberado mau gosto, vendaval de tusa de Evaristo, o rapaz virou-se para Cláudio, que tinha o tal romance de Aurora na cabeça, já tinha a intriga estruturada, era a história dee uma mulher que, certo dia, decidiu abandonar o marido e os filhos para viver a sua própria vida e que, por circunstâncias várias, noutro ponto do globo, volta a casar e a ter filhos, repetindo assim a experiência que considerara falhada, agora acrescida do peso do desencanto que a repetição da aventura ocasionara, e vem-lhe uma lucidez laminar a que nada resiste, atravessa a polpa de tudo com a radiografia do olhar, desfaz objectos e memórias, repete gestos cada vez mais cheios da mais assombrosa inutilidade, vem-lhe a doença cancerosa de perspectivar tudo através do absurdo de viver, era um romance todo descritivo, não havia nele o recurso ao diálogo, essa invenção abjecta para macular sacrilegamente a pátine dos mais profundos e limosos sentimentos, o que lhe interessavam eram as catacumbas sombrias e inexploradas, as reentrâncias e saliências, os mais distantes ecos da alma de Aurora, lá onde o pó do tempo sepulta o sonho, e mais camadas de tempo, umas sobre as outras, se insinuam nas primeiras, e a morte à espera, alheia ao tempo, e tudo se resolvia nessa mesma espera inevitável, antecâmara do mais impiedoso esquecimento, e vinha-lhe a estupefacção, o cheiro das flores para os mortos com o movimento balético das crianças brincando à sua volta, com já tinham brincado as outras, e as breves alegrias, tão frágeis e tão breves, soterradas, antes de nascerem, pelas medonhas oscilações de um raciocínio gelado, o edifício um dia, muito ao longe, arquitectado, a rasgar fendas, o tecto abrindo, portas batendo, o lento, viscoso desabar de um céu sem tempo, ….”
(Bertrand, 12ª edição, 1981, pg121-124)