CONECTARTE – EXCERTOS

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(Ed Veja, Col. Passagens, 1997)

1.A ética do governante

A ideia da falta de escrúpulos dos governantes é um lugar-comum, que provavelmente assenta numa experiência humana de séculos. O governante não hesita em impor a sua opinião, mesmo a expensas do sofrimento dos governados ou da injustiça, se com isso conseguir levar avante os seus fins e propósitos.

  I

  Aqui radica um dos motivos da desconfiança popular para com os governantes, para com os políticos pro­fissionais, nas sociedades modernas. «São todos iguais», afirma-se com desencanto. E, certamente, a tendência para manter e reproduzir a instância de poder, o facto de os governantes procurarem sobre­tudo perpetuar-se enquanto tais, unido à independência funcional da organização política moderna, leva a que nos perguntemos se algum tipo de instância moral regula o exercício do poder na modernidade. Os princípios éticos formais sobre que assenta a de­mocracia moderna: a soberania popular, a vontade geral e o horizonte do bem comum, são continuamen­te transgredidos na acção de governo, que encontra em si mesma a sua própria normatividade. Ética e política experimentam-se, em consequência, na vida moderna, como esferas em conflito.

Isto não quer dizer que o governante careça – como pessoa – de sensibilidade moral. O que quer dizer é que a referida sensibilidade se mantém fora da acção de governo. Mas então, reduzida a mera convicção pessoal, desprovida de toda a dimensão pública ou geral, a ética, a hierarquia de valores e necessidades sobre a qual assenta um modo de vida, fica contraposta à política. O que se aceita no plano objectivo das ideologias, ou no plano da fé das re­ligiões, fica convertido no seu contacto com o poder político em simples matéria de carácter individual, e tecnicamente afastado da acção «profissional» de governo.

A profissionalização da política na modernidade decorre, por outro lado, de um modo paralelo à profissionalização da «produção de conhecimento», da «criação cultural». Filosófica e antropologicamen­te, não se pode aceitar um conceito espiritualista de «cultura». Num sentido antropológico preciso, cultura é a produção das instituições, objectos materiais; comportamentos habituais e representações mentais, que predominam numa sociedade e que se transmi­tem também socialmente. Deste ponto de vista, «criação de cultura» é tanto o aparecimento de novos processos de produção de bens materiais como o processo de desenvolvimento das artes ou do pensamento. No entanto, no horizonte histórico da modernidade; e sobretudo no processo de configuração da técnica moderna, «a cultura» tende a converter-se num espa­ço dividido, num espaço ocupado por um conjunto de «profissionais», os profissionais da criação cultural, em que se integram os artistas, cientistas ou humanistas de todo o tipo, a que podemos atribuir o rótulo de «homens de conhecimento». É também esta uma das características distintivas da modernidade.

No mundo moderno, a cultura vive-se de forma di­vidida, como se existisse uma fronteira entre aqueles que recebem os processos de criação (e simplesmen­te os interiorizam ou assumem, em muitos casos passivamente) e os «profissionais» da criação cultu­ral, aos quais se atribui pelo contrário um papel activo e dinâmico (reservando-lhes além disso como património aquilo a que se chama «grande cultura»).

A cisão moderna do conhecimento é inseparável de uma determinada configuração histórica das rela­ções sociais de produção e de um universo de valores especifico. E neles é crucial manter uma divisão social entre dois planos. O daqueles que mandam, propõem mundos e estabelecem a articulação de outros mundos possíveis: um plano, portanto, em que convergem o poder e o conhecimento separados. E um segundo plano, o que corresponde àqueles que simplesmente se deixam levar pelas directrizes ou propostas do primeiro, e as interiorizam melhor ou pior. Ora bem, na repartição de funções a sociedade moderna atribui precisamente aos que chamámos «homens de conhecimento» o papel de controlo ético da acção de governo. Um especialista, o intelectual contrapõe-se, assim, a outro: o político.

Num texto clássico do pensamento social do nosso tempo, que remonta a 1919, Max Weber aborda o problema estabelecendo a existência de duas éticas diferentes no mundo moderno. Weber contrapõe a «profissão» e a «vocação» do político às do homem de conhecimento, às do intelectual. Através da dife­renciação dos dois especialismos, Weber mostra a geração de dois sistemas distintos de valores, não homogéneos entre si. A política, o exercício do poder, apareceria como um processo institucionalizado de acção inteiramente regulado, com a sua própria autonomia moral, diferentemente dos con­trapesos teológicos ou organicistas do político nas sociedades pré-modernas

Indo além de todo o simplismo, Max Weber re­cusa a suposição de que no comportamento político não existe qualquer tipo de critério moral. Assinala, pelo contrário, que esse comportamento assenta numa ética radicalmente diferente da ética do homem de conhecimento. Este guia-se, segundo Weber, por uma «ética de grandes convicções», aquela assenta na formulação de uma visão geral das coisas, numa proposta religiosa, política, ideológica, do que é a vida humana. Diferentemente do político, que, quan­do actua moralmente, o faz com uma «ética da res­ponsabilidade». Longe de uma eventual desqualifi­cação da acção política, Weber chama a atenção para a complexidade que essa acção apresenta no mundo moderno, e assinala como qualidades decisivas do político a paixão, a responsabilidade e a medida (Weber, 1919, 153). Simultaneamente, observa que a ética política tem de «preocupar-se com o que realmente corresponde ao político, o futuro e a responsabilidade perante ele» (Weber, 1919, 159), e dai o rótulo «ética da responsabilidade».

  Daqui podemos extrair elementos para explicar’ outro tipo de cisão, igualmente característica do moderno, e que surge na relação entre os políticos e os cidadãos em geral. Quando o homem da rua julga um político, o que primeiro costuma perceber é o seu aparente cinismo. E isto é assim porque embora o político faça afirmações ou propostas referidas a um sistema moral ou a um sistema de valores determi­nado, acontece depois que o seu comportamento quotidiano no exercício do governo, ao exercício da política, não se ajusta a essas grandes declarações dê princípios. Não se trata, no entanto, assinala Webp, de simples cinismo. Não se podem entender, por exemplo, os conselhos sobre a acção de governo de Maquiavel ao Príncipe como conselhos para se ajus­tar cinicamente aos fins que se desejam conseguir O que choca ao homem da rua na acção do político teria antes a sua raiz, segundo Weber, no facto de a ética política se ter de ajustar a esse processo de go­verno das coisas em que consiste a actividade política. E essa actividade não pode ver-se quotidianamente coarctada pelos grandes princípios morais, pelas afirmações gerais de valores, que em princípio inspirariam o político enquanto ser humano, mas não enquanto político.

  A análise de Max Weber é sumamente penetran­te: por muito que se nos queira apresentar um pro­jecto político em termos éticos, a sua execução não será levada adiante nesses termos, já que a comple­xidade técnica da política, a autonomia da acção de governo, implica situar-se num mundo distinto do das grandes convicções morais. Se já os conselhos de Maquiavel ao Príncipe sublinhavam, no começo da modernidade, a autonomia estrutural da acção de governo, que se pode esperar no presente? Num momento como o actual, em que a complexidade das instâncias de contrapoder ou representação popular das sociedades contemporâneas exige um confronto continuo com a opinião pública, essa autonomia re­força-se alimentando a ideia do carácter técnico e quase misterioso do exercício do poder, frente à ig­norância das massas populares. Isso sim, já se encar­rega o próprio governante de não nos tirar da nossa , de não converter em matéria pública o que tão-só deve ficar nas mãos dos poderosos.

A separação entre ética e política viria, assim, a configurar uma espécie de sistema de dupla verdade, que esclarece bastante bem os motivos do aparente cinismo dos governantes modernos. Não é que não tenham propósitos firmemente éticos (embora, talvez, muito, muito no fundo), é que os teriam de deixar todos os dias às portas dos gabinetes do poder. Como se fossem dois mundos inteiramente distintos.

2.      A extensão da demagogia

  Não tem cabimento pôr em causa a penetração e lucidez das análises weberianas. A experiência efec­tiva, real, das relações entre ética e política no nosso tempo não fazem senão confirmar o seu diagnóstico, contrastá-lo como descrição do estado de coisas exis­tente. E, no entanto, há em Weber uma espécie de aceitação «naturalista» da cisão entre os dois univer­sos morais. Entretanto, tem cabimento perguntar até que ponto a separação entre o intelectual e o político é uma situação dinâmica, resultado histórico do pro­cesso de independência crescente das instituições po­líticas no mundo moderno, que estão directamente interessadas em manter-se a coberto de qualquer in­terpelação moral. Dito noutros termos: em que medida a cisão da ética e da política é, em vez do resultado do choque entre dois mundos distintos, a cristalização da exigência de uma instância neutral, técnica, para dirimir o conflito nas sociedades ca­pitalistas, sem chegar nunca a pôr em causa «manutenção e reprodução do sistema no seu conjuto?  Os procedimentos segundo os quais o Estado exerce a sua função de salvaguarda dos interesses das classes dominantes exigem que a esfera política fique resguardada dos interesses particularistas da socieda­de civil, para assim servir os interesses globais do universo capitalista. A cisão da ética e da política revela-se, portanto, como um espaço de segurança e cautela, como uma garantia mais de que nas coisas sérias «não se toca», de que a ordem capitalista é inquestionável. A organização política fica, então, legitimada também eticamente na sua independência e separação. Nem o intelectual nem, ainda menos, o cidadão comum, poderiam situar-se num universo ho­mogéneo de valores a partir do qual fosse exercjdo o controlo moral e a crítica da acção de governo.

 

  Weber mostra que se quebrou a tradição emancipadora do conhecimento que, desde a época do Iluminismo, lutava na cultura europeia por um hori­zonte político constituído pela universalização do pensamento e pelo desenvolvimento de . uma racionalidade critica. Weber escreve sob o impacto da revolução de 1917 na Rússia e da própria revolução alemã. É a última vaga revolucionária na Europa. Os pontos de vista weberianos permitem apreciar o re­flexo defensivo que «nos homens de conhecimento» produzia a experiência de crise da ordem burguesa tradicional, do seu modo de vida: daí o abandono da luta política. Mas algo mais: a verificação pessi­mista da perda de um espaço político especificamente etico ou intelectual. A consciência de que o mundo do saber e das grandes opções morais ficava defini­tivamente à margem de toda a incidência prática, política, directa.

  A análise de Weber foi confirmada, nas suas linhas fundamentais pelo próprio processo histórico e social contemporâneo Convertendo-se assim, numa das chaves teóricas centrais para desvendar o uso político que a ordem burguesa fez da cisão entre conhecimento e acção. «Incomunicando» ambas as esferas, o exercício da critica e da acção emancipadora ficam recíproca e simultaneamente postos em causa. E, em consequência, a construção de sujeitos sociais de conhecimento e acção, capazes de gerar um modo de vida alternativo à ordem existente, vê-se fortemen­te dificultada pelo acentuar dos especialismos dos universos político e cognoscitivo, bem como pela So­fisticação cada vez maior dos mesmos, propiciada pelo emprego e desenvolvimento das tecnologias mais complexas. –

Mas as coisas foram ainda mais longe do que aquilo que talvez o próprio Weber tivesse previsto. Uma vez desencadeada, a independência e autonomia da organização política moderna tornou-se cada vez mais forte, insinuando nos nossos dias apropriar-se de todos os espaços sociais de conhecimento e inter­vir portanto, também na configuração da «ética das grandes convicções».

  O político actual não se contenta já com «a sua» esfera de responsabilidade, e «desce» ao terreno das «grandes» opções morais. Deste modo, os intelectuais e homens de conhecimento vêem-se duplamente di­vididos e afastados de toda a possibilidade de acção política directa.