ANTONIO VIVALDI
(o das 4 Estações)
… Veneza é a apoteose da decadência (No séc. XVIII )— e já escalava essa rampa de paradoxos fatais no tempo em que Antonio Vivaldi, o controverso «padre ruivo», espalhava pelos pátios de maldizer o escândalo e a perplexidade…
A lenda de aventureirismo da família Vivaldi vem de longa data, pois fala-se que, no ano de 1291, os irmãos Vadino, Guido e Ugolino Vivaldi, eméritos marinheiros, depois de contornarem pelo sul o continente africano, pereceram afogados numa tempestade, quando estariam na rota certa da Índia, prontos a roubar ao pecúlio das glórias lusitanas a façanha do Ilustre Gama!
Deus não o quis talvez porque os italianos, em geral, e os Vivaldi, em particular, já tivessem muito com que se comprazer em matéria de fama…
O pai de Antonio Vivaldi, Giovanni-Battista Vivaldi, era um excelente violinista, amigo e companheiro de muitos dos melhores músicos venezianos do seu tempo. O prestígio artístico dessa tertúlia nunca foi posto em causa, mas comentava-se que se tinha especializado na criação — à porta mais ou menos fechada, mas arrombada pela policia, em várias rusgas assinaladas — de espectáculos pornográficos, ainda que sempre acompanhados por música da melhor qualidade!
Mas deixemo-nos de especulações.
Como acontecia frequentemente, o primogénito de cada família destinava-se à carreira sacerdotal, o que oferecia, para todos os efeitos, assinaláveis vantagens, granjeava protecções, permitia indultos, regalias, silenciava condutas menos dignas de figuras públicas…
O pequeno Antonio Vivaldi não escapou a essa regra e foi educado, desde a tenra idade dos dez anos, pelos padres da Igreja de San Geminiano. Mas convém notar que esse templo tinha a curiosa característica de destinar uma parte das suas instalações às aventuras amorosas dos devotos mais prestigiados, personalidades políticas influentes, grandes senhores da alta-roda financeira e intelectual — e também, sem especial rebuço ou fingimento, dos próprios membros do clero: a Igreja de San Geminiano era um local de encontros discretos, sim, mas sem secretismo, reconhecido até pelos inquisidores do Estado.
Amante notório dos ambientes brejeiros ou mesmo devassos, Giovanni-Battista Vivaldi escolhera assisadamente o local onde seu filho e futuro sacerdote poderia receber a mais adequada educação — culminada, apenas com quinze anos, uma idade limite, pelo acto soleníssimo da tonsura, realizado pelo patriarca de Veneza.
Também não por acaso, o jovem religioso recebeu as chamadas ordens menores na paróquia de San Giovanni in Oleo, a qual rivalizava com San Geminiano como centro de orgias muito frequentado!
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Nesse tempo, Vivaldi já se tornara um personagem lendário, comentado por toda a parte, não só pela qualidade da música que produzia mas ainda pelo facto de ser, para todos os efeitos, sacerdote, andar sempre de sotaina e com o breviário debaixo do braço, mas sem nunca dizer missa…
Compositor de uma fecundidade quase alucinante, violinista de técnica demoníaca, com o afirmaram vários ouvintes da época, empresário astucioso e infatigável, frenético de actividade, Vivaldi parecia ter força para tudo menos para celebrar o ofício da missa, obrigatoriedade a que se esquivava, alegando uma ignota doença a que ele próprio chamava strettezza di petto e que lhe roubaria estranhamente o fôlego para recitar orações junto do altar… Um caso que, cerca de dois séculos mais tarde, poderia interessar Siegmund Freud!
Entre as personalidades que mais privaram com Vivaldi e nos deixaram testemunhos escritos dessas relações, aponta-se Goldoni, o notável homem de teatro italiano, autor de alguns libretos para óperas do compositor.
Nas memórias de Goldoni — e noutros escritos do seu tempo —, Vivaldi aparece sempre acompanhado por uma cantora célebre, uma diva caprichosa, como todas as demais, de apelido Giraud, pois era filha de um cabeleireiro francês, embora usasse o nome artístico de Annina Giró.
A sua presença junto de Vivaldi, que lhe dedicava sistematicamente os principais papéis, adaptando-os às capacidades da cantora, um tanto limitadas, tornou-a conhecida por a «Annina do padre ruivo»…
A realidade é que o trabalho pedagógico de Vivaldi dentro da Pietà foi algo de extraordinário, conseguindo obter agrupamentos orquestrais de urna qualidade surpreendente — o que não seria possível, parece-me, se a organização de trabalho fosse inevitavelmente lesada por aventuras de teor lascivo com as alunas.
A estranhíssima figura do padre ruivo não era fácil de definir, pois se é certo que viveu sempre acompanhado — e servido, pode dizer-se… — por uma autêntica corte de mulheres, entre as quais Annina Girô seria apenas a mais assídua e empenhada, nem por isso deixava de se mostrar extremamente discreto, reservado e até beato, interrompendo todas as discussões que lhe agradassem menos com a leitura absorvente do breviário que nunca o abandonava…
Por outro lado, a intensíssima actividade musical, a genial qualidade das suas obras, muito para além do talento próprio dos diletantes, o seu profissionalismo indiscutível, requerendo todo um longo trabalho de preparação e envolvendo-o numa aura de seriedade, não se coadunavam com a imagem não menos real do empresário teatral que também era, sempre rodeado por gente do mais baixo nível moral, vigaristas, cadastrados, rufiões, indivíduos responsáveis pelo ambiente de terror que rodeava, frequentemente, a vida artística veneziana!
As rixas entre os empresários assumiam aspectos trágicos, com realce para as intervenções dos faquistas que também se encarregavam de punir — em motins habitualmente organizados à saída das missas — os locatários de camarotes ou ridotti que pretendessem esquivar-se ao respectivo pagamento.
Era um mundo implacável em que só a astúcia poderia evitar as consequências de uma violência latente. Vivaldi movimentava-se com inenarrável destreza nesses meandros, apoiando-se com frequência nas figuras mais sinistras: seria o caso de um tal Sebastiano Biancardi, perseguido pela policia napolitana, que optara pelo falso nome de Domenico Lalli, e que foi o libretista da primeira ópera escrita pelo compositor — Ottone in vila —, estreada em Vincenza, no ano de 1713.
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António Victorino d’Almeida, “Música e Variações”, Ed Caminho, col “Caminho da Música, 1987.