CONECTARTE – TRABALHOS DE GAVETA

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António Ferreira(ver laterais)

FEBRE INTESTINAL 
(Conto à maneira de crónica)

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QUASE sempre, as crianças estão sujeitas a constantes distúrbios de saúde (à parte os incómodos da primeira dentição…). Quando adoecem, médicos e familiares centram nelas todos os cuidados e preocupações. Claro que o tempo é o grande laboratório da vida, e assim a criança vai desenvolvendo-se, vencidas as maleitas cíclicas, cada uma com as suas características hereditárias – forte ou enfezada, saudável ou com menos saúde, a compor-se (ou a decompor-se, se o meio originário já se encontra em decomposição…). 

Vem a talhe de foice narrar aqui a pequena história de uma febre intestinal de que fui protagonista creio que aos sete ou oito anos de idade. Vivia num lugarejo ali para as bandas de Ferreira do Zêzere, com minha avó materna e um tio cego que, coitado!, consumia os seus dias sentado numa cadeira junto à porta da entrada, cantarolando, com um sorriso fixo e os olhos imóveis perdidos no vago.

 Foram difíceis aqueles tempos de vida familiar, pessoas humildes, de minguados recursos e de quase nula instrução. Vivia-se de umas minúsculas belgas semeadas de batata, ou de fava, ou de feijão-verde a trepar pelas empas entrecruzadas, ou calcorreavam-se sete quilómetros até ao mercado semanal da vila para vender um punhado de tremoços ou comprar algumas (poucas) vitualhas. 

Eu começava a frequentar a escola, em Paio Mendes, dois quilómetros de longada a corte de atalhos entre silvedos e barreiras altas, e divertia-me a ver as lagartixas correrem de pedra em pedra, os besouros a zoarem nas estevas, as borboletas adejando de flor em flor das flores misturadas com as urzes… Se o tempo estava de chuva, enfiava na cabeça, à laia de carapuço, uma saca velha de serapilheira que me cobria as costas.

 Havia alturas em que eu e mais três da minha idade, irmanados no mesmo espírito infantil de liberdade, faltávamos à escola e escondíamo-nos, toda a manhã ou toda a tarde, num pinhal ainda verde, muito cerrado de vegetação, e ali contávamos histórias parvas, fazíamos barquitos das carrascas (que são a casca dos pinheiros velhos) ou garatujávamos bonecos na pequena ardósia que trazíamos no saquitel da escola. Outras vezes, munidos de pescócias armadas com agudes , corríamos à caça dos taralhões nos restolhos e baldios vizinhos. 

Certa tarde, estranhando a demora do meu regresso – ou porque da escola tivessem alertado da ausência costumeira -, minha avó apurou o ouvido ao sentir a nossa presença no pinhalzito ali próximo. Munida de uma corda com que atava a lenha que juntava na serra, avançou arvoredo dentro e deu connosco em alegre e ruidosa brincadeira, descalços e sujos de resina. Num abrir e fechar de olhos agarrou-me por um abraço e a corda cortou-me as costas, com forma e dor, enquanto os outros se sumiam para lá da rama verde. 

Mas um dia amanheci com febre alta e dores de barriga. Faltei outra vez à escola, e a avó Joana meteu pés ao caminho comigo à Frazoeira, uns bons quatro quilómetros dali, à consulta do Dr. Real, o médico mais próximo e, segundo soube mais tarde, muito amigo dos pobres que viam nele o salvador dos seus males. Lembro-me de que habitava uma casa enorme, com pequenos vidros coloridos em largas janelas, rodeada de um gradeamento de puas afiadas; no jardim, à entrada, havia um grande lago (ou eu é que era pequeno?) com peixinhos vermelhos.

 O bom doutor observou-me e concluiu que eu contraíra uma febre intestinal. Receitou uns comprimidos, repouso absoluto na cama e – tormento dos tormentos! – por alimento apenas dois litros de leite por dia. Ora, eu não gostava de leite. Repugnava-me, vomitava-o, abominava-o. Foi sem dúvida o primeiro grande “sacrifício” imposto à minha tenra idade – tenra e frágil, tão frágil e tão tenra que (contava minha avó) aos dois anos o mesmo Dr. Real, vendo-me tão enfezado de subnutrição, logo vaticinou que “este menino não chega aos oito anos”…. 

Enfim, tive que suportar o leite, bebendo-o, a princípio, de olhos fechados e muito depressa para minorar o sabor, quanto possível. Depois, aceitei-o como coisa inevitável, e minha avó lá ia buscá-lo diariamente, logo de manhã, aos estábulos da D. Jacinta, em baixo, nos Vales. 

Aguentei o transe naquele quartito com um janelico de madeira, desengonçado e cheio de frestas, metido na cama de ferro de meia polegada, já sem pintura (nem sei se alguma vez a teve…). A casa, erguida a favor, fora dividida, inicialmente, em quatro minúsculos compartimentos por paredes de tábuas forradas de papel de jornais que nos davam na tenda. Aranhas, centopeias e outros bicharocos metiam-se entre as tábuas e o papel, e no sossego da noite ouvia-se a estranha música da sua constante restolhada… 

Passaram entretanto oito dias e o médico foi ver-me. Dois litros de leite? Não, não. O menino passa a beber dois litros e meio, mais uma semana! 

O tormento continuava. Mas uns dias depois senti uma fome louca a roer-me o estômago e desatei num berreiro incontrolável. O tio cego cantarolava em surdina, sentado na sua cadeira à porta da entrada. A avó cozinhava o almoço (chama-se ali o jantar, ao meio-dia, e à noite a ceia) numa panela de ferro negra e com três pés, posta na trempe sobre a lenha em fogo ou pendurada na corrente cheia de fuligem suspensa do barrote que às vezes pegava lume. Um odor a couves aferventadas com batatas enchia a quadra, o que acirrou ainda mais o meu berreiro. Atarantados, excitados, avó e tio não achavam maneira de me acalmar. 

“- O rapaz o que tem é fome, ó minha mãe! – exclamou o cego. 

– Dê-lhe as couves que já não lhe fazem mal!” 

“- Deus me livre! Isso é que não faço! – respondeu minha avó. – Olha se o rapaz morria, benza-me Deus!” 

“- Não morre nada! Dê-lhe as couves, a ver se o cala” – insistia o cego. 

Não sei se me teria calado de vez. Mas daquela vez calei-me… 

É certo que a ignorância pode conduzir a mente a caminhos ínvios, ainda que movida dos bons propósitos que a ignorância não contraria. E estes parentes que me viam crescer, desde que minha mãe abalara para Lisboa em luta de sobrevivência, agiam dentro daquele sentimento de quererem obter a melhor solução. E a solução, neste caso, eram as couves… Decidida, convencida de que era assim mesmo, minha avó foi levar-mas ao quarto, fumegantes num prato com batatas e azeite. Manjar dos manjares! Atirei-me, sôfrego, às couves, que me confortavam o estômago encharcado de leite… 

… E dormi calmamente, docemente, toda a tarde, toda a noite. Quem não descansou foi a avó. Desconfiada daquela acalmia, não me largou a cabeceira até que o sol da manhã espreitou pelas frinchas do telhado sem forro. Preocupada, pegou em mim e correu à Frazoeira. O médico recebeu-me no consultório, observou-me, apalpou a barriga, sorriu de satisfação e disse à minha avó: 

“- Pois é, senhora Joana. O menino está a melhorar. O leite fez-lhe muito bem. Vai a parar com os comprimidos e já pode comer uns caldinhos de carne.” 

Avó Joana não tugiu nem mugiu. Apenas suspirou – um profundo suspiro de alívio. E no regresso a casa, os pés doridos na estrada cascalhenta, exclamou, não sei se para mim ou se para os aloendros que se debruçavam para nós:

 “- Caldinhos de carne, hem?! Isso é que era bom! Couves! Couvinhas, que são muito boas! Olhem se eu não tas dava? Foram elas que te curaram, meu menino!

Uma sorte. Curaram mesmo!

Janeiro de 2001. 

António C. Ferreira (FERREIRA DE LERENA)

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