“ Nós somos apenas poeira de estrelas…”
Pensava ela, esquizofrenicamente…
Era uma mulher flácida e pintava as unhas dos pés desde os seus doze anos.
Agora rabiscava grosseiramente os lábios de vermelho, e borboleteava pelo quarto, indiferente ao mundo e às outras borboletas.
O seu volumoso corpo balançava-se incessantemente. Ao seu lado tinha uma garrafa de J.B vazia. Olhou o azul no céu. Um pássaro absurdo desenhava circulos perfeitos no ar.
– Porque é que os homens usam gravatas?
Dá-lhes um ar formal, intelectual, convincente. Tudo o que são incapazes de ser interiormente.
O pássaro delineou mais uma circunferência no ar. A noite grávida de estrelas e galáxias vestia-se monótonamente de pálido.
Despiu-se. Olhou inexpressivamente a inestética do seu corpo cru, e sem sabor. Repugnou-se.
Somos escravos da estética, do superficial, do mundano.
Olhou-se mais uma vez e vomitou o ódio.
Era verão. Alguns bronzeavam-se, outros suavam debaixo das suas elegantes gravatas. Escancarou-se sobre a janela e contemplou o rio fedorento.
Contemplou-se.
Assemelhava-se à virgem auto-sodomizada pelos chifres da sua própria castidade, segundo Salvador Dali.
Olhou a sua nudez e soltou um riso sarcástico. Gostava que alguém a pintasse. Odiava realismo, gostava que pintassem o seu intelectual. Gostava que um surrealista veterano, um abstracionista tibetano, ou mesmo um cubista que odiasse matemática a desenha-se. Interiormente.
– Como gostaria de fugir dos hábitos.
De ter coragem de fazer a recruta, queda livre, de fumar umas ganzas, de fazer um piercing na lingua, de fazer sexo numa praia das Bahamas com um homem que usasse preservativos às cores, queria aparecer na televisão e expressar as suas ideias filosóficas, gostava de ter um romance escaldante com um monge budista, de rapar o cabelo. De revolucionar o mundo e organizar uma orgia com o Brad Pitt.
Queria exteriorizar os desejos mais intimos de 50% da população mundial feminina. Talvez um dia, quando não tivesse mais nada a perder…
Apesar de tudo, teve os seus fragmentos de segundo de felicidade. Aqueles breves momentos, quase inexistentes, em que o nosso ego atinge o climax, quando nos comparamos estupidamente a Picasso no auge da inspiração.
Pegou no seu Fiat 600 azul claro e foi até uma falésia qualquer. Levava apenas uma garrafa de Baileys e o seu gato Simão. Era um gato cinzento. Caminhava por entre as ervas, centrado nos seus trejeitos efemeninados. Usava rimel sobre os seus já longos bigodes, e odiava leite. Era sem dúvida um gato caricato.
Sentaram-se serenamente. Olhavam fixamente as ondas que se precipitavam contra as rochas, lá em baixo. Olhavam o precipicio.
Era tarde. O sol pôs-se.
– Como as nossas mentes estão repletas de hipocrisia, de ideias pré-concebidas.
Ironias, de burocracias e fronteiras que não existem. Subsistimos sobre uma felicidade superficial. Entramos num café, olhamos em redor e vemos alguns a falar de negócios, convencidos que a economia é um dos problemas vitais na nossa vida terrena; outros que bebem o seu café apressadamente e que olham constantemente o relógio; e ainda outros que gritam obscenidades e se riem sordidamente deles próprios.
Trabalhamos arduamente para atingir a perfeição quando nós próprios somos imperfeitos. Mas como admitir que nos esforçamos em vão seria um atentado à nossa auto-estima, aceitamos pacificamente o papel de ignobeis, e rendemo-nos à mediocridade da existência.
Simão perseguia atarefadamente uma borboleta azul, indiferente à utopia filosófica que se passava apenas a dois metros de si. Ela fechou os olhos, inspirou o ar pouco puro que a rodeava e adormeceu. Depois de ter triturado freneticamente a frágil borboleta, Simão também dormiu…
O seu corpo gordo espreguiçava-se. Despertou. Chamou: Simão! Simão!
Mas o gato não acordou nunca mais. Ela apercebeu-se finalmente da tragédia e sorriu. Envolveu o cadáver no seu casaco de malha e lançou-o sobre o abismo. A diferença entre nós e os animais é que nós temos direito a proferir as últimas palavras, eles…só os últimos pensamentos!
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