CONECTARTE – TRABALHOS DE GAVETA

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Era sempre aquela corrida vertiginosa, doida, pela estrada no flanco da serra escaldante, zurzindo as bestas que espumavam abundantemente, a guisalheira e os rodados atroando com a voz dele os ares calmos e os ouvidos dos que passavam para a cava. A galera enorme, puxada pelas três parelhas, entrava na povoação com estrépito alarmante, envolta em nuvens de poeira, com o António Maria, de pé segurando as rédeas, rugindo imprecações contra os animais que chicoteava desalmadamente… Transpunham os portões velhos, de ferro carcomido, que abriam para a fazenda, eirados e casa de habitação, e só então cessava aquele fragor tremendo que assustava todos. Depois, eram os berros:

– Ó Zé Maria! Ó Celeste! Então esses baldes, almas danadas!

Os filhos corriam, não fosse o pai zurzir-lhes o chicote, como era costume. Baldes com água, mantas, tudo aparecia, porque o António Maria, depois de um serviço duro, cuidava dos animais com um zelo que nunca mostrara pela família.

Era conhecido, o António Maria, como homem de instintos brutais. Não havia, duas ou mais léguas em redor, raça de homem que se medisse com ele! Era verdade, também, que o António Maria não fomentava discórdias cá por fora. Homem de poucas falas, despejava as suas fúrias em casa, sobre a mulher e os filhos! Forte, vigoroso, alto e direito como um I grande, homem sem ilustração alguma, sempre mal-humorado, sobranceiro no falar, não gozava de simpatias, conquanto o utilizassem para levar ao caminho-de-ferro distante, na sua galera de três parelhas, carregamentos de madeiras ou de tijolos (que ali ainda se fabricavam), fardos de toda a espécie e de todos os tamanhos. Constituía isto quase todo o seu labor, o resto do tempo ocupado no trato da fazenda. Por isso mesmo era pouco aparecido. Muitas vezes, quando não havia serviço que o afastasse ou quando não desancava os filhos, negligenciava o resto e estendia-se a dormir, ao mesmo tempo que as parelhas, debaixo do alpendrado da cocheira e em cima de fardos de palha aramados, num restauro benéfico de energias. Pessoa rude, de sentimentos adulterados por uma existência pouco feliz, não nutria pela família um mínimo de compaixão. Os filhos não lhe tinham amor, a mulher receava-o, sempre que o via presente. Os dois do meio – o José Maria e a Maria José – tinham concluído a escola primária. As outras duas, a Celeste e a Nazaré, trabalhavam em casa e na fazenda. Mas aquela vida ia-se tornando insustentável, à medida que os anos passavam e eles cresciam. O pai continuava excessivamente severo, sem o mais leve motivo, e muitas vezes a mulher apanhava em defesa dos filhos.

Até que uma noite o rapaz, que já fizera as «sortes» e ainda recebia as violências paternas, chegou-se junto do pai quando iam cear, e disse-lhe:

– Venho despedir-me, pai. Amanhã parto para Lisboa!

António Maria, de barba grisalha a emoldurar-lhe o rosto comprido e gretado, fitou com surpresa o filho, como se não tivera ouvido bem:

– O quê? Vais-te embora? Mas…  

– Sim, pai!

– Não… não pode ser! E para onde vais tu?

– Para longe. O meu tio arranjou-me os papéis…

– O teu tio…!

António Maria quedou-se de novo silencioso, olhando o filho com intraduzível expressão. Percebeu de repente que todos conspiravam na sombra… Levantou-se, entornou com um safanão brusco a tigela da sopa sobre a mesa, e estendeu a mão grossa à mão do filho, num gesto nada habitual nele:

– Pois vai! Mas vê o que fazes!

E nessa noite, esquecida a ceia, não voltou palavra a ninguém.

A mulher e as filhas, incrédulas, engoliam o silêncio…  

………..

  Lá por casa nada mudara, depois da saída do filho mais velho. Eram os mesmos berros, as mesmas violências, os mesmos receios, a mesma vida angustiada. Muitas vezes a mãe, escutando ao longe o fragor da galera que descia a estrada, corria a chamar as filhas para que estivessem prontas à chegada do pai.

– Ó Maria José! Celeste! Nazaré! Despachem-se! Aviem-se! Ouviste, Celeste? O teu pai vem aí! Preparem a água e as mantas! Eu já aqui tenho o comer dele pronto! Vai tu abrir o portão, Nazaré!

E as raparigas, lestas de medo, lá corriam para a cavalariça com a água nos baldes e as mantas nos braços para ajudarem o pai na lavagem dos animais. Já se ouvia o estrépito da galera rodando velozmente e a guizalhada ensurdecedora, e as imprecações do António Maria sobre as parelhas que espumejavam. O chão estremecia.  A poeira enovelava-se no ar quente. De pé, junto do assento, o António Maria, ao mesmo tempo carrancudo e animado, gritava sempre:

– Andem!!! Vá! Aí, ó tu lá da ponta! Vê se puxas com termos ou racho-te a meio!

Saltava para o chão, olhava as bestas encharcadas, tirava-lhes os arreios sem demora de um minuto.

– Vamos, rapariga, mexe essas pernas! – berrava ele, de má catadura. – Põe aqui a água! Não é aí, sua parva! – dava-lhe um sopapo forte, e as outras ficavam a tremer de medo…

  … E só conheciam um pouco de sossego quando o António Maria de novo se ausentava com a sua galera e as parelhas bem cuidadas…

  …….

  E assim o tempo passava, insuportável dia e dia. As filhas, ansiosas por uma liberdade que o pai lhes não consentia, desprezavam a casa e abalavam como o primeiro. A Nazaré e a Maria José haviam já partido para Lisboa, com o consentimento da mãe e a vontade forçada do pai. Receberam-nas uns tios.

Nem por isso, contudo, o António Maria mostrava melhor afeição à mais velha, a Celeste. Voltara à mesma rispidez, ao mesmo desprezo, à brutalidade de sempre, e Celeste, uma manhã em que ele saíra com a galera, decidiu-se: despediu-se da mãe e abalou para a cidade.

À tarde, o António Maria chamou por ela:

– Ó Celeste! – E para a mulher que surgira com os baldes: – A Celeste? Onde é que se meteu?

– Agora, estou eu só! – respondeu ela, poisando os baldes junto da galera. – A Celeste foi-se embora! Não aguentava mais esta vida!

O António Maria avançou um olhar atónito para a mulher, cerrou os dentes com raiva:

– A Celeste?! Também ela?!…

Desferiu uma chicotada sobre os varais do carro. Depois, aproximou-se dos animais que roçagavam o feno e tremiam os flancos para afugentarem as moscas. Pegou nos baldes e deitou costas à mulher.

– Nunca perdoarei isto à Celeste! E é bom que nenhum deles cá volte!

  Durante uns dias ninguém ouviu uma palavra ao António Maria…

………

  Poucos anos depois, a Celeste estava em vias de matrimónio. Participou o acontecimento às irmãs e ao irmão (este em África). Queria fazê-lo também aos pais, mas a lembrança do António Maria atemorizava-a. Nunca recebera notícias directas do pai. Sabia que ele era ainda o mesmo, sombrio e duro, apesar de envelhecido, com a diferença de que vendera os animais e trocara a fragorosa corrida da galera pelo trato da fazenda até então muito descuidada. Não praguejava tanto, bem que os seus modos não tivessem mudado. Havia naquele homem de rosto pesado e endurecido, alma rude pela natureza da sua vida, algo de estranho que emocionava ao mesmo tempo que revoltava e infundia respeito.

Posta assim ao corrente da vida do pai e sabendo de quanta revolta o enchera a sua abalada sem a anuência dele, Celeste não se atrevia agora a participar-lhe o casamento, a não ser por escrito. Mas pensou na mãe, e decidiu-se a dar-lhe, pessoalmente, a boa nova.

Tremia à ideia de um acolhimento frio ou dramático, mas preparou-se para o pior, arranjou a mala e partiu.

Após seis horas de viagem, dominada por crescente nervosismo, a filha mais velha do António Maria chegou à terra natal. Como a receberia o pai, assim de surpresa? A tarde caía, morna, serena, e os pintassilgos sarabandeavam, alegres, nas sarças que ladeavam o caminho. O coração de Celeste parecia querer saltar-lhe do peito. Recordava, cheia de amargura no meio do sonho lindo que a levava ali agora, os tempos relativamente recentes em que o pai a zurzia impiedosamente, a ela e aos irmãos, tal como fazia às parelhas durante as carreiras alucinantes com a galera na estrada poeirenta a descer o flanco da serra…

Já via os velhos portões, ali em baixo, de ferro carcomido. E a casa, na sua frente, brilhava na brancura da cal, talvez branca de emoção por sentir-lhe o hálito da alma a aproximar-se… Pairava uma grande calma, um silêncio quase agonizante na meia-luz da tarde a expirar. Nem ruído, nem vida. Silêncio, e o sol morno já a empalidecer as paredes da casa que lhe fora berço. À direita, encostada ao muro, a galera meio desmantelada dir-se-ia um fantasma moribundo abandonado ao pôr-do-sol…

Celeste escapou flébil suspiro, sentiu-se invadida por uma lassidão de morte, e, por fim, transpôs os portões e bateu à porta da casa. Dentro, ouviu–se um caminhar lento e pesado. Estremeceu. Seria o pai? Que iria acontecer? Andaria a mãe na horta?

A chave girou na fechadura e a larga porta rodou, lentamente, chiando nos gonzos. António Maria, gasto e pesado, surgiu e olhou a recém-chegada, que sentiu fraquejarem-lhe as pernas e humedecerem-se-lhe os olhos. Ao reconhecer diante de si a filha, branca como as paredes brancas da sua casa, embora as tintas do crepúsculo a recortassem em silhueta, António Maria endireitou-se subitamente, franziu a testa, olhou-a com pasmo, depois como que deslumbrado, mas não articulou palavra nem desviou dela os olhos parados, sombrios… Atrás, surgira a mãe, de olhos brilhantes e as mãos cruzadas sobre o peito, em atitude expectante.

– Olá, pai! Olá, mãe! Não se assustem! Venho de Lisboa dizer-lhes que vou casar e queria a vossa bênção.

Celeste notou que algo no pai lhe subia de repente do peito para a garganta, que o sufocava. E pela primeira vez viu, emocionada, uma grande lágrima deslizando tortuosamente, aos estremeções, pelo rosto curtido e barbado do António Maria. Vendo a mãe correr para ela, Celeste dispunha-se a quebrar o silêncio angustiante daquele momento que parecia embaraçá-los. Mas de repente sentiu o choque violento do corpo do pai caindo-lhe nos braços com um frémito que, se não era de amor, a rapariga nunca até ali sentira nos sentimentos rudes dele…

Uma síncope matara-o, ali mesmo.

 António  C. Ferreira (Ferreira de Lerena) 1954

In Flama, 1952