Ao sabor da pena
Exercícios de escrita automática – I
Neste novo espaço deixaremos correr a caneta (os dedos sobre o teclado). É um exercício interessante: escrever sem saber o que se vai escrever ou apenas com uma primeira ideia resumidíssima, como neste caso.
Ao começar, decidi apenas que falaria por dizer sobre o que ia escrever. E foi isso que atrás ficou dito e ao dizê-lo estou já a construir assunto: o de escrever sobre o que escrevo. Mas não continuarei por aí pois ficaria uma pescadinha de rabo na boca.
Olho algumas notas do meu caderno. Registos rápidos de ideias que surgem e que decido tratar mais tarde. Um acumular de lixo, quase sempre. Como a ideia de guardarmos jornais, revistas, comunicados, informação para ler mais tarde. Regra geral uns anos depois (actualmente umas semanas ou meses bastam) olhamos para esses montes de papéis e perguntamo-nos para que queremos aquilo. Passo seguinte: caixote do lixo, umas vezes com algumas hesitações, com algum sentimento à mistura outras vezes com um inequívoco alívio por jogar fora um passado inútil.
Alguns de vós devem lembrar-se do velho hábito de guardar, por exemplo, cadernos e livros do curso.
Dos novos quem ainda fará isso, hoje em dia? Dos velhos quem ainda não se convenceu que tem um monte de papel inútil? É impressionante a velocidade com que vai diminuindo o espaço de tempo a que se chama “actual”.
Como fazer planos quando não se tem a mínima ideia dos cenários que nos esperam?
Daqui a seis meses estarei no mesmo emprego? A minha empresa que hoje está dotada de tecnologia actual não estará obsoleta daqui a um ano? Devo investir num novo computador ou esperar? Devo apostar no DVD? E o WAP?
Calma Bety, calma!
Quem me disse que o futuro é que é bom? Quem me garante que estar à frente é que é bom? Não será também este um conceito endeusado, inquestionado mas sem valor absoluto?
Fazendo uma imagem: se vou à frente também posso ser o primeiro a cair ao passo que se for atrás posso ter tempo de me desviar e continuar em frente.
As metáforas tal como as estatísticas podem dar para justificar para tudo. É por isso que gosto de me distanciar da enchente de publicidade metafórica e olhar o conceito escondido antes de aderir ou não à mensagem publicitária.
“O futuro está no X-bla”. Caramba! Quem me dera ter o X-bla, pois se ele é o futuro! É então que gosto de perguntar: mas porque é que antecipar o que há-de ser o presente é bom? E porque é que o presente do futuro há-de ser melhor?
É o caso da panóplia de aparelhómetros futuristas que passam a ser os do presente daí a um mês, que em cada versão têm mais dez funcionalidades, cinco facilidades, vinte menus, três ligações a outra coisa qualquer, uma facilidade de pagamento, etc.
Às vezes penso e quase já decidi debruçar-me sobre o assunto para elaborar um teoria acabada a publicar nas revistas da especialidade:
“A melhor versão de um produto é a número três. A partir daí é só o culto da personalidade”
Porquê a número três? Porque a um é sempre uma espécie de teste, a dois já vem com a maioria dos problemas corrigidos e a terceira é O Produto.
Mas claro, como os fabricantes sabem que hoje em dia qualquer produto é copiado em dois dias pelos outros 234 concorrentes, há que pensar constantemente em novos serviços para manter o cliente, nem que sejam artificiais e inúteis. Há é que convencer o cliente que, sem aquele novo botãozinho… o aparelho não vale nada. Então mas não foram eles que disseram, na altura, que o aparelho era tudo o que se podia desejar?
Quem inventa as necessidades? Os clientes ou os fabricantes?
E porque vamos tão cegos atrás do que eles querem que nós sintamos?
É facílimo, hoje em dia, imaginar os cenários mais absurdos como sendo possíveis e só me pergunto se ainda teremos capacidade crítica ou possibilidades reais para não aceitar tudo o que nos quiserem impor. Porque ainda que percebamos que a inovação Z é uma treta, se todos à minha volta a usam… ou me mantenho no passado pré-histórico, quer dizer, com a versão do mês passado ou lá tenho que ir a reboque. Mas porque não me mantenho na idade da pedra? Porque os fabricantes sabem fazer as coisas. Ou vão faltar os consumíveis e acessórios de que preciso, ou os aparelhos “actuais” já não são compatíveis com o meu, ou o meu modelo não tem direito às facilidades, descontos, etc, que agora oferecem.
O cerco fecha-se. Estamos a ficar sem capacidade de reagir. Imagino então os cenários. Um deles: daqui uns tempos (meses? Um ano?) toda a gente vai passar 80% do seu tempo activo com um telemóvel na mão, ou a falar ou a ver internet, a consultar as cotações da Bolsa, a fazer operações com o seu banco, a efectuar compras, a enviar mensagens escritas, a consultar a agenda.
Que raio! Isto será normal? É o progresso? Antes falava-se da alienação da televisão. Hoje já quase acho a televisão uma das coisas mais românticas, mais familiares que ainda existe na tecnologia. Que bom a família vendo televisão na sala, comentando o show, rindo ou guerreando pelo canal a ver.
Isto porque imagino agora não só os autistas dos videojogos e cibernautas obcecados mas sobretudo os zombies que encherão os nossos escritórios, restaurantes e ruas.
Um quadro de Magrite com aqueles homens de negro e chapéu de côco, todos iguais e estáticos, de telemóvel na mão. As pessoas cruzando-se falando incessantemente não uns com os outros mas, aparentemente, consigo próprios. E aqueles ainda mais estranhos que parece que nos estão a perguntar alguma coisa pois não têm telemóvel na mão mas que afinal têm o auricular invisível no ouvido. Ah! E os fabulosos do auricular e microfone frente à boca!
Que mundo futurista está a surgir! Que admirável mundo novo que nos obrigará a escolher entre o mal menor: tentar manter-se humano apenas com a simples televisão digital com surround system, tv por cabo, internet no computador e um telemóvel sem wap ou passar a viver com um aparelhinho na mão.
Bolas! Só não percebo uma coisa: tudo aquilo que antes se via em filmes ou lia em livros com sendo um retrato horrível do que poderia ser a escravidão humana se os “maus” se apoderassem de certos segredos científicos terríveis, está a acontecer diariamente. É possível que já não pensemos da mesma forma? É possível que os “maus” de ontem sejam os bons de hoje? Estará a realizar-se a profecia de S. João em que a Besta já nos domina com o nosso próprio consentimento? Ainda somos humanos? Somos humanos mutantes? Devemos aceitar isso com naturalidade e inteligência do mesmo modo que aceitamos que já não somos homens das cavernas nem queremos ser? É inevitável acabarmos num mundo do BigBrother com um sorriso e um obrigado Progresso?
Hum…. Vamos ficar por aqui hoje que tenho umas chamadas no telemóvel para atender e a minha amiga no chat a piscar.
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