Do programa de valorização, para além do conhecimento de novas áreas desta cidade industrial, designadamente das fábricas de salga, constava também a implementação da sinalética que, agora, permite melhor entender a visita que também se prevê possa ser guiada, mediante marcação prévia.
Podem assim conhecer-se, agora em boas condições, a maior fábrica de salga de peixe do complexo, as termas, o mausoléu, a necrópole e a área residencial.
Infelizmente a extraordinária basílica paleocristã, embora estando acessível, ainda não o é em iguais condições, havendo, no entanto, intenções de vir a ser objecto de um projecto de recuperação próprio e de ser também construído um Centro Interpretativo.
Cumprimento, assim, como já o fiz noutras ocasiões, a IMOREIA/SONAE pela iniciativa, bem como a equipa liderada pela Doutora Inês Vaz Pinto pelo trabalho que têm vindo a efectuar, pois, apesar de múltiplos esforços empreendidos por vários arqueólogos que aí trabalharam, não havia sido possível implementar uma acção tão integrada.
Não posso, contudo, deixar de dizer com algum pesar, pelo que representa de uma certa inércia por parte do próprio Estado Português que me orgulho servir, mas nem sempre objectiva as suas intervenções de forma a que os resultados possam ser devidamente conhecidos e optimizados os seus investimentos técnicos e financeiros, que já haviam existido circuitos de visita – lembro, por exemplo, entre tantas outras que se fizeram no local, duras campanhas efectuadas no final dos anos oitenta com a colaboração dos Fuzileiros portugueses onde foram colocadas lajes por toda a extensão das ruínas e terem sido executados painéis de sinalização executados que nunca chegaram a ser colocados nos locais apropriados e os próprios bilhetes com a planta das ruínas.
Não posso deixar de lembrar também o empenho de alguns arqueólogos que por ali passaram durante o Século XX, entre tantos outros, D. Fernando de Almeida, e Professor Manuel Heleno, ambos Directores do Museu Nacional de Arqueologia, Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares, António Cavaleiro Paixão e que, certamente, veriam ou poderão ainda ver os que a morte não vindimou hoje com satisfação que, embora não tenham conseguido levar por diante algumas das suas ideias, o seu trabalho valeu a pena, cumprimentando todos os investigadores que estudaram os seus materiais, de que hoje destaco, pedindo desculpa a todos os seus pares no estudo de Tróia por não os citar nominalmente, Maria Garcia Pereira Maia, pois porque de entre nós recentemente partiu e é a minha forma de lhe prestar aqui a minha sentida homenagem.
Assim, relembrando também velhas páginas soltas do meu arquivo, venho trazer-vos um pouco mais das memórias deste extraordinário Sítio Romano, que já esta Verão, pode ser, finalmente, partilhado por todos nós.
Para além de Gaspar Barreiros e André de Resende a que já aqui fizemos referência, muitos outros autores conheceram Tróia e a descreveram.
Num notável trabalho de recolha e sistematização efectuado por Fernando Castello Branco e publicado em sucessivas revistas “Ocidente”, nos anos sessenta do século passado, foram-nos deixadas extraordinárias pistas sobre Tróia e sobre a problemática da sua localização, salientando ainda o trabalho de Fernando Bandeira Ferreira sobre o mesmo tema, já ante publicado na Conímbriga (1959).
Mas Tróia não foi sempre um Sítio a preservar. Num interessante artigo de Carlos Dinis Cosme, referem-se vários documentos sobre a doação em regime de sesmaria das terras da Península à Ordem de Santiago, em 1502, e outro sobre o emprazamento de Tróia, que curiosamente ressalvam a pedra que não existe na Península, senão a que os Romanos tinham deixado da sua cidade entretanto abandonada e que fazia falta para novas edificações, que ressalvam explicitamente: “fica de fora a pedra, que todos poderão tirar para fazerem casas e moinhos e os possuidores de sesmaria não poderão tolher a qualquer pessoa que a queira ir buscar.”.
Este tipo de referências repete-se por todo o século XVIII, em registos notariais, o que manifesta a destruição e abandono progressivo, e “saque” consentido, de que este sítio foi alvo desde o começo do século XVI.
Mas, o século XIX traz nova luz a este local, e iniciam-se as mais antigas escavações arqueológicas em Tróia no tempo da Infanta D. Maria, futura Rainha D. Maria I que incidiram na zona residencial das ruínas, pelo que é denominada essa zona, desde essa altura, como “Rua da Princesa”.
O espólio exumado nessas explorações foi totalmente disperso, e à então Vila de Setúbal foi oferecida uma coluna e um capitel coríntio, reutilizado, mais tarde, como pelourinho, colocado na Praça Marquês de Pombal, nessa cidade.
Em período posterior, em 1850, a
Sociedade Arqueológica Lusitana iniciou aí trabalhos de que há relato e cujos Diários das escavações de Tróia, foram publicados na Revista Popular: “Foi por entre todas essas festas e galas, sempre acompanhadas de um vivo enthusiasmo, nascido das mais seductoras esperanças, alimentadas e fortalecidas à sombra grandiosa da alta protecçäo de um monarca e de um duque notavel e poderoso, que a Sociedade Archeologica deu começo às escavações.
As primeiras foram effectuadas desde o 1º de Maio até 2 de Junho de 1850 e logo com optimos resultados, cujas notícias muito satisfizeram a El-rei e não menos ao Duque.
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Em resultado das pequenas excavações feitas colheram-se muitas e diversas antigualhas romanas, mas não tendo podido ser collocadas no Museu de Setubal como determinavam os Estatutos, força foi que ficassem em poder de alguns socios em quanto, por falta de meios, não houvesse casa apropriada.
A Sociedade Arqueológica Lusitana tinha surgido em 1849, impulsionada pelo Padre Manuel de Gama Xarro e por João Carlos de Almeida Carvalho, a que se foram, a pouco e pouco, juntando outros estudiosos.
O primeiro Duque de Palmela, que visita as ruínas de Tróia, a convite desses estudiosos, em 1849, é também convidado a ser protector da Sociedade, qualidade que reclina para El-rei D.Fernando II, que virá a ser o protector da Sociedade.”
Deste modo, o Duque de Palmela profere em Setúbal um discurso em que afirma:
“Foi hoje a primeira vez que tive o gosto de visitar as ruínas da antiga Cetobriga e, pelos vestígios das construções que ali observei, fiquei sumamente esperançado de que grandes vantagens arqueológicas, científicas e artísticas se podem obter por meio duma bem dirigida escavação, e da qual poderão resultar muita honra e vantagem para esta País e com particularidade para a Vila de Setúbal, sede desta respeitável associação.
Quando porém mesmo esses achados de preciosidades se não realizem de todo, ao menos sempre um grande proveito se tirará das escavações intentadas: descobrir-se-ão essas ruínas, marcar-se-á a sua extensão, e finalmente fixar-se-ão mais as ideias para se resolver um ponto de história e de geografia, que até agora não tem sido esclarecido pelos nossos escritores, história na verdade muito misteriosa, relativamente à fundação desta populosa cidade, cuja existência deve ser de mui remota antiguidade.”
Em 1850, são publicados na Imprensa Nacional os Estatutos da Sociedade Archeologica Lusitana, cujos artigos que consideramos de maior interesse passamos a citar:
“Artigo 1º – Debaixo da protecçäo de Sua Majestade El-Rei o Senhor D.Fernando é creada na Vila de Setúbal uma Sociedade denominada = SOCIEDADE ARCHEOLOGICA LUSITANA =
Artigo 2º – O fim desta Sociedade é exclusivamente promover por todos os meios ao seu alcance, e effectuar uma excavação nas ruinas da antiga Cetobriga, e adquirir luzes e conhecimentos sobre a historia, geographia e costumes antigos, de que se tenham originado os que hoje existem.
Artigo 3º – Formar-se-ha na Villa de Setúbal um Museu Archeologico dos objectos que se descobrirem
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Artigo28º – Todo o Socio que extraviar qualquer objecto descoberto na excavaçäo, além de incorrer nas penas comminadas nos Alvarás retrò citados, será responsável pelo triplo do seu valor estimativo,excluido da sociedade, e seu procedimento publicado pela imprensa.”
O Duque de Palmela morre ainda durante o ano de 1850, tendo a Sociedade sofrido bastante com isso pois perde um grande financiador das escavações.
No entanto, ainda se realizam trabalhos de 5 de Novembro de 1855 até Outubro de 1856.
Num relatório publicado no Setubalense de 1875, da autoria de José de Groot Pombo, Sebastiäo Maria Pedroso Gamito e Joäo Carlos de Almeida Carvalho, pode ler-se:
“Em resultado desta escavação encontrou-se, proximo da Ermida de Nª Sra. de Troia e junto à embucadura da lagoa, um edifício de planta circular, com o diâmetro de 15 pés e 10 polegadas (5,225metros), encontrando-se ainda no alto das paredes o princípio da abóbada ou cúpula.
Nas paredes há três nichos que seriam possivelmente adornados com estátuas, a uso dos Romanos.
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Esta casa parece destinada a balneário, porque apresenta dois tanques ou banheiras. Cada banheira tem 4 pés e 10 polegadas de profundidade (ou sejam 1,595 metros), tudo construido com uma amálgama de cal, areia e pedra miuda, semelhante àquela que reveste as muitas salgadeiras, que se encontram no meio das ruinas de Cetobriga.
Dentro desta casa, encontrou-se uma moeda de cobre Fl.Constantinus Nob.C. e alguns pedaços de ânforas de barro e bocados de vidro.”
Ainda no relatório da S.A.L. a que nos referíamos, podemos ler:
“À distância talvez duns 100 metros a Sueste deste edifício e ao longo da lagoa (ou Caldeira), dessoterraram-se umas Thermas, e nelas em uma das salas, onde ainda se divisava haver sido guarnecida de mármore, encontro-se uma banheira também de mármore guarnecida. A esta sala ligava-se outra, cujo pavimento de pedra dura é de optimo trabalho, havendo porçöes em muito bom estado.
Uma outra sala se descobriu, encontrando-se ali a base duma coluna de mármore branco, cujo fuste devia ter tido uns 2,5 palmos de diametro e nesta sala acharam-se umas 180 medalhas romanas, todas de cobre e em geral frustas. Foi o que com täo fracas posses pudemos tactear naquele imenso areal, que cobre os despojos da antiga Cetobriga.
Setubal, em assembleia geral da Sociedade Archeologica Lusitana, aos 21 de Dezembro de 1856″.
Era praticamente a última intervenção da Sociedade, afirmando em 1867 Almeida Carvalho: “Do Governo não vinham nenhum auxílio, nem um simples toro de pinho, para conter as areias, tirado das matas do Estado.”
Finalizavam assim as românticas incursões da Sociedade pois, à falta de condições, vieram juntar-se o “esmorecimento de alguns e a indiferença da maior parte.”
Mostrando em 1863 a Sociedade Arqueológica Lusitana pouca actividade, funda-se em Lisboa a “Real Associação dos Architectos Civis e dos Archeologos Portugueses”, de que provém a actual Associaçäo dos Arqueólogos Portugueses.
Inicialmente esta nova Associação tenta um trabalho conjunto com a S.A.L., tendo em vista a continuação das escavações das ruínas de Tróia, acordo que não foi possível, o que contribuiu em grande parte para a interrupção dos trabalhos nessa estação.
O espólio da Sociedade Archeologica Lusitana, incluindo livros e documentos foi depositado na Academia Real de Belas Artes, onde deve ter permanecido até 1904. Por essa altura iniciam-se as diligências de Leite de Vasconcelos, fundador e director do Museu Etnológico Português para que as peças sejam transferidas para esse Museu, o que virá a acontecer por essa altura.
É, ainda hoje, no Museu Nacional de Arqueologia que se encontra depositada a grande parte do espólio de Tróia, não podendo, contudo, deixar de referir que se encontra disseminado por mais de uma vintena de locais de que, em próxima crónica, vos tentarei dar conta.
Bem haja, pois, podermos ver hoje Tróia renascida.