[ Setúbal na Rede] – SAÚDE

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por João Bárbara 
(Médico)

O porquê da pedofilia

É natural que muitas pessoas ao lerem este título se desinteressem do conteúdo desta crónica. É que, se por um lado, o papel da comunicação social foi essencial e meritório na denúncia de casos de abuso sexual de crianças (não só na Casa Pia, mas também em muitas outras instituições), depressa se caiu numa espécie de “voyeurismo” mediático que saturou as pessoas e desvirtuou o debate.

Tão importante como o apuramento dos eventuais implicados e das óbvias cumplicidades e, o seu julgamento criminal e democrático, é tentar saber o porquê. Afinal, o que é motiva os pedófilos e os seus cúmplices?

A resposta a estas questões é decisiva para que se estabeleçam a pedagogia e as mudanças necessárias para que estes casos não voltem a acontecer. Este é o debate necessário, que deveria ser feito não só por especialistas, mas que deveria também envolver toda a sociedade, que eu temo que não esteja a ser feito, pelo menos, com a amplitude e a abrangência que a gravidade dos factos vindos a público exige.

No seu artigo do Público de 1/12/02, o Psicólogo Clínico Jorge Ribeiro, dá-nos algumas pistas essenciais na análise do problema.

Escreve ele que, muitos dos pedófilos foram, eles próprios, crianças abusadas. Crianças que crescem com uma culpabilidade insuportável e que, quando adultos, se transforma em ódio. Ódio que vai ser dirigido contra outra criança na tentativa de se aplacar, criando uma espécie de ciclo infernal que tende a perpetuar-se. De resto, o ódio é o elemento chave na pedofilia, o que leva o Psicólogo a escrever que a “pedofilia é a erotização do ódio” e que “os pedófilos ‘alimentam-se’ das crianças para sobreviverem à agonia primitiva de uma experiência de vazio, de ruína e de uma grande humilhação”.

E é neste sentido que ele recomenda o acompanhamento, necessariamente complexo e delicado das crianças abusadas, não só no imediato mas também a longo prazo. Mas, tal como no debate, que não deve ser exclusivo dos especialistas, também nós cidadãos temos a nossa quota de responsabilidade e de participação no acompanhamento das nossas crianças. È preciso saber ouvi-las e é preciso reconhecer os seus direitos, acrescidos do facto de serem seres particularmente frágeis e vulneráveis.

Por outro lado, é necessário que questionemos a nossa sociedade e os valores que a norteiam. E quando se sabe que muitos destes casos, embora continuados no tempo, vêm de antes do 25 de Abril, é necessário que questionemos aqueles que, mais ou menos sub-repticiamente, defendem o regresso aos valores que animavam a sociedade de então.

Assim, é bom que se perceba que, para além das cumplicidades individuais, a maior das cumplicidades é a que decorre da defesa de modelos societários concentracionários e de uma moral sexual hipócrita. Finalmente, é bom que se perceba que a maior das cumplicidades reside numa sociedade que faz do ódio, ainda que de forma inconfessável, o seu cimento aglutinador, de modo a justificar e a permitir a exploração e a violação do mais fraco pelo mais forte.