[ Dia 23-02-2001 ] – AINDA HÁ SAL NO CAIS por Salvador Peres.

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AINDA HÁ SAL NO CAIS
por Salvador Peres (assessor de comunicação) Travessia A travessia do Sado é uma experiência inesquecível, mesmo para mim, que já a fiz vezes sem conta e a sinto como se cada uma fosse a primeira. Quer partamos de Setúbal em direcção a Tróia, quer façamos o percurso em sentido inverso, sobrevem a mesma sensação de paz e plenitude. Não é de admirar, por isso, que em cada setubalense more um poeta.

É um ponto de observação único, a travessia do rio, pois permite abarcar, ao longo do trajecto, o imenso significado daquele triângulo magnífico que envolve as águas azuis do Sado, cujos vértices são Setúbal, a Arrábida e Tróia.

Ali, embalados  no zumbido morno dos motores do barco, hipnotizados por aquele sereno silêncio líquido, deixamos que os olhos bebam a essência pura daquela rara beleza natural e a evidência do destino deste lugar magnífico chega até nós com a violência de uma revelação.

Mas, para um dos lados da paisagem, despontam pontos negros. A zona industrial, secreta e paulatinamente, foi fazendo o seu trabalho na zona mais nobre do estuário do Sado. É verdade que a neblina nauseabunda dos fumos só de tempos a tempos chega às narinas dos setubalenses e o recorte ameaçador das chaminés fica praticamente escondido pela colina que se ergue lá para os lados de nascente. Mas a ferida está lá, sangrando…

E, para o outro lado, surge, suja e furtiva, a sombra da Secil. A parte velha, cuja desactivação nos “oferecem” em troca do inferno da queima de lixos tóxicos, descai, triste e abandonada, sobre o rio; a parte nova, meio escondida  entre a folhagem exuberante da Arrábida, impõe sobre nós o pêndulo inexorável e mortífero do futuro.

De ambos os lados, um legado ameaçador para os nossos filhos e uma herança fatal para o futuro esse triângulo magnífico formado pela Arrábida, Tróia e Setúbal. Por isso, a travessia do Sado incute em nós a certeza da urgência de uma outra travessia, aquela que nos afaste completamente do ponto de não retorno, que é deixar que os pontos negros da paisagem cresçam até se tornarem a própria paisagem.